A historiadora e jornalista Anne Applebaum (Washington DC, 1964) dedicou boa parte de sua trajetória a estudar o agitado século XX do Leste Europeu e a URSS. O último de seus livros, A fome vermelha, relata a criminosa política de Stalin em relação à Ucrânia. Desde então, no entanto, esta escritora, também colunista de The Atlantic, centrou sua análise na crise da democracia liberal, um processo de degradação com a qual agora se cruza a epidemia do coronavírus, aumentando ainda mais as incertezas. Otimista ou pessimista? “Depende do momento do dia”.
A entrevista é de Fèlix Badia, publicada por La Vanguardia, 30-03-2020. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A epidemia do coronavírus chegou em um momento em que as democracias liberais não estão bem de saúde. De fato, esse é o tema de seu próximo livro. Como chegamos até aqui?
Para mim, o principal problema de muitas democracias liberais é que os sistemas políticos não foram capazes de evoluir na mesma velocidade que as mudanças tecnológicas, econômicas e da informação. Em um momento em que é possível fazer tantas coisas rapidamente, a democracia demora muito tempo e dá a impressão de que não oferece respostas de forma ágil. As pessoas, então, buscam atalhos em sistemas diferentes: “talvez o sistema chinês seja melhor, talvez o russo seja melhor, talvez eles possam tomar decisões mais rapidamente...”.
A isso se acrescenta que há duas crises, uma real e outra, digamos, mais imaginária, ambas vinculadas à globalização e que esta epidemia exacerbou. A primeira é que já há anos para muitas pessoas ficou evidente que seus governos não têm o controle das economias, veem que decisões tomadas na China ou em Washington podem afetar a seu negócio, por exemplo, em Barcelona. De certa forma, isso pode levar a reviver certos tipos de nacionalismos.
Mas há um segundo aspecto que reside na natureza dos novos meios de comunicação que estão fragilizando os meios de comunicação tradicionais. Como consequência, as sociedades que antes estavam acostumadas a um debate público, agora, ao contrário, encontram-se divididas em algo parecido com duas câmaras de eco, em cujo interior acontecem os debates.
As democracias estão se deteriorando, mas acredita que a epidemia do coronavírus pode acelerar este processo?
Não quero predizer o que ocorrerá, porque ainda estão acontecendo muitas coisas. Vemos, por exemplo, que as pessoas estão dispostas a ceder em muitas coisas, como a liberdade em troca de segurança. Na história, sempre é possível constatar que quando as pessoas temem a morte ou uma pandemia estão dispostas a ceder poderes ao Estado, diferente do que acontece em momentos de normalidade. A pergunta é o quanto e como os Estão vão utilizar essa possibilidade, se vão aproveitar essa situação ou não para acumular poder em uma pessoa ou em um partido político, se essas mudanças irão ocorrer por um período curto e depois esses poderes voltarão às pessoas. Isso depende muito de quais decisões os governos tomarão proximamente.
Está vindo uma grande mudança neste sentido, na qual a Ásia está à nossa frente, e, à margem da China, mas de países como Coreia do Sul e Taiwan, que são democracias. Trata-se de começar a entender o uso da tecnologia ou da inteligência artificial para monitorar e centralizar a gestão contra a pandemia. Muitas pessoas nessas sociedades estão dispostas a ceder um certo nível de privacidade em troca da segurança e de que as economias continuem funcionando. Acredito que em algum momento também teremos esse debate nos países ocidentais e, novamente, veremos que decisões tomaremos a esse respeito, se serão temporais ou permanentes e quem controlará os dados. Esse será um tema muito importante do debate no próximo ano.
Mas também há oportunidades para modernizar a democracia.
Quais as oportunidades de modernização?
A modernização do Estado, e não posso falar pela Espanha, mas, sim, pelos Estados Unidos e Polônia, que são os países nos quais vivo. Um dos aspectos que esta crise demonstrou é que tinham uma total falta de preparação do ponto de vista do sistema de saúde, da interpretação da informação e da política de comunicação, que nos Estados Unidos e na Casa Branca estiveram cheias de falhas.
Em um mundo moderno, não podemos seguir com este tipo de incompetência, que existam pessoas incapazes nos serviços de saúde pública. É preciso revisar os mecanismos pelos quais essas pessoas chegam aos postos em que as decisões são tomadas ou pelos quais o acompanhamento da saúde da população é realizado.
Por outro lado, o funcionamento do Governo e da burocracia, o deslocamento de muitas operações da administração para o âmbito on-line é algo que irá acontecer, e precisaremos ver como fazer isso de forma eficiente e segura para as pessoas, preservando a privacidade e a liberdade.
As democracias, de alguma maneira, estão em jogo. Caso dirijam mal a situação atual, podem dar asas aos movimentos autoritários.
É possível. Se os países ocidentais não conseguirem conduzir bem esta situação e, ao contrário, os países asiáticos sim, será um grande desprestígio para o Ocidente. Uma das realmente grandes tragédias do momento é que os Estados Unidos tenham, hoje, um presidente como Donald Trump. Em vez de termos alguém que buscasse unir pessoas e esforços para combater o coronavírus, temos a ele, e o problema não é apenas que seja um nacionalista, mas que seja um narcisista que não está interessado realmente no destino do país. Temos uma terrível má sorte nesse momento. O país líder do mundo ocidental, nas últimas décadas, está agora liderado pela pessoa mais catastroficamente errônea.
Talvez os europeus encontrem o modo de trabalharem conjuntamente nos próximos meses, talvez, passado o primeiro choque, a Alemanha e os maiores países da União Europeia possam encontrar uma forma de coordenação. Se, ao contrário, os países democráticos da Ásia, como Taiwan, Coreia e Japão, que têm bons sistemas de saúde e uma burocracia mais sofisticada, oferecerem uma melhor resposta, a liderança do Ocidente se verá seriamente questionada.
Nesses dias, a União Europeia, em conjunto, está sendo criticada por não ser capaz de dar a resposta necessária ao que está acontecendo.
Acredito que a crítica à União Europeia é injusta porque não tem autoridade em saúde pública, que depende das autoridades estatais. Aqui, o que está para ser analisado é como a União Europeia dirigirá a crise econômica que está vindo.
Uma das lições para a Europa é como está conectada, ou seja, que o que estava acontecendo na Itália, em relação à epidemia, duas semanas depois estava acontecendo em todas as partes. Esta é a lição: que cada problema europeu deve ter uma solução europeia. O problema não se combate simplesmente confinando a Itália, porque depois essa mesma situação ocorreu na França, Espanha e inclusive no Reino Unido, que está saindo da União Europeia.
Uma das coisas que espero que surja de tudo isso é que a Europa e o restante de países realizem uma gestão da epidemia muito diferente da que ocorreu até agora, que haja uma cooperação internacional que coordene a pesquisa da vacina e as campanhas de vacinação. Espero que as pessoas concluam, a partir de agora, que os estados sozinhos não podem resolver tais tipos de problemas.
Em geral, ainda que não tenhamos a perspectiva histórica, você acredita que esta crise representará um parêntese ou uma ruptura?
Não gosto de previsões e não sei o que acontecerá na próxima semana, mas não há dúvida de que esta época será recordada como uma ruptura importante. O que acontecerá na sequência depende das decisões que os países tomarem nas próximas semanas. Mas acredito que sim, estamos em um grande momento de mudança.
Você é otimista ou pessimista?
Sabe? Depende do momento do dia. Levanto-me pela manhã, vejo a luz do sol e me sinto otimista, mas começo a ler as notícias e me sinto pessimista. Mas se transitarmos por essa situação sem que ocorra uma grande tragédia e se tomarmos as decisões corretas, seremos mais pobres nos próximos meses e anos, sim, mas também não acredito que será o fim do mundo, não sou apocalíptica nesse sentido. É uma grande ruptura, o sistema mundial da forma como o conhecemos está deixando de funcionar nesse momento e quando se colocar em curso novamente, será muito diferente.
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“Esta época será recordada como uma ruptura importante”. Entrevista com Anne Applebaum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU