19 Dezembro 2019
“Nós estamos quase perdendo a habitabilidade do planeta”, afirma Antonio Donato Nobre, recém chegado de Altamira, no Pará, onde foi participar do encontro Amazônia Centro do Mundo. Em novembro, na chamada Terra do Meio, situada entre os rios Xingu e Iriri, cientistas e ambientalistas se reuniram com indígenas e ribeirinhos para criar uma aliança pela Amazônia e encontrar, juntos, uma saída para o mais importante órgão do metabolismo climático do planeta.
A reportagem é de Sibélia Zano, publicada por Mongabay e reproduzida por Amazônia.org, 17-12-2019.
Nobre conhece bem a Amazônia. O agrônomo, mestre em biologia e doutor em ciências da Terra morou em Manaus por 14 anos e foi pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) por 33 anos. Em 2014, publicou o relatório “O Futuro Climático da Amazônia”, em que detalha os mecanismos pelos quais a floresta ajuda a regular a atmosfera e propõe ações para evitar um colapso climático.
Cinco anos depois de publicado o relatório, esse “futuro” se revela particularmente sombrio. As mudanças no clima global e a hostilidade do governo brasileiro em relação à Amazônia podem estar levando, segundo Nobre, ao “ponto de não-retorno”, em que a floresta caminha de modo irremediável rumo à desertificação.
Hoje pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Nobre tornou-se também ele um ativista: logo após participar do encontro Amazônia Centro do Mundo, esteve na Noruega para conversar com o Ministro do Clima e Ambiente sobre o Fundo Amazônia e avaliar as possibilidades de cooperação com o Brasil.
Nesta entrevista exclusiva à Mongabay, ele compartilha as notícias que trouxe de Altamira e de Oslo e comenta sobre o atual quadro de degradação que ameaça o futuro da Floresta Amazônica.
Antonio Nobre na Noruega, em 2015, durante evento promovido pelo Ministry of Climate and Forest. (Reprodução/Arquivo Pessoal)
Como foi sua recente viagem a Altamira para o encontro Amazônia Centro do Mundo?
Foi muito instrutiva, especialmente para conhecer como os povos da floresta protegem a Amazônia eficiente e lucrativamente. A Amazônia é de fato o centro do mundo, é o mais importante órgão para o metabolismo do sistema climático, garantindo a estabilidade e conforto ambiental. Na Terra do Meio, grande parte da floresta está em ruínas. O que sobra está dentro de áreas de conservação, terras indígenas e as chamadas Resex, que são reservas de extrativismo sustentável, onde a floresta está se recuperando. Mas naquela porção leste da Amazônia, devido ao desmatamento e à degradação, a floresta remanescente pode já estar passando do ponto de não-retorno.
Há indícios visíveis do ponto de não-retorno?
As florestas nativas têm alguma resiliência às adversidades climáticas. Mas elas não têm qualquer capacidade de resistir às motosserras, aos tratores com correntão ou ao fogo ateado em larga escala. Essas invenções maléficas e seus ataques bárbaros criam um clima de destruição final mesmo. [Além disso,] o ar, antes sempre úmido, está progressivamente mais seco, tornando a floresta inflamável. As chuvas chegam mais tarde a cada ano e o sequestro de carbono, antes feito pela floresta, diminui, ao mesmo tempo em que aumenta a mortalidade de árvores grandes. O pessoal lá da região está lutando contra a mudança do clima. As castanheiras têm um ciclo: num ano produzem mais castanhas, no outro produzem menos. Mas de uns anos para cá a produção tem despencado devido às secas. Essas perdas têm conexão com a mudança do clima e testemunham a degradação da floresta. Trabalhos científicos publicados nos últimos anos não deixam dúvida sobre a mudança climática associada à destruição da floresta.
Números preliminares, recém-divulgados sobre o desmatamento na Amazônia, referentes ao período de agosto de 2018 a julho de 2019, mostram um aumento de 29,5% em relação ao ano anterior. O governo se defende, porém a taxa de desmatamento em agosto de 2019 cresceu 222% em relação ao mesmo período de 2018. Como você vê essa situação?
Situação calamitosa! Este ano foi ativada uma grande frente de destruição, potenciada pela ações do governo federal, cuja retórica recruta principalmente os grileiros na ponta da lança do desmatamento. Esses ladrões invadem terras públicas e áreas de conservação, ocupam, e depois vendem para pecuaristas. Os pecuaristas ampliam o desmatamento e vendem as áreas para os sojeiros, que consolidam a devastação. Chegou ao ponto dos desmatadores combinarem o “Dia do Fogo” como forma de expressar um agradecimento incandescente, visível do espaço, à nova política para a Amazônia.
Desde o início do ano houve uma manifestação muito clara de hostilidade dos governantes com relação à questão ambiental. O primeiro sinal de que o novo governo iria estimular o desmatamento veio logo no início, com a declaração: “vamos acabar com a indústria da multa”. Mas não existia indústria da multa, existia um trabalho sério de controle que resultou na redução do desmatamento em anos anteriores, como de 2005 a 2012. Não se trata de mera interpretação: a retórica oficial, admitida pelo próprio mandatário como sua nova política para a Amazônia, potencializou o desmatamento.
Surpreendentemente, essa retórica se assemelha a uma fala de Lula em 2003, no início do seu primeiro mandato, quando disse que a floresta não era santuário e que seu governo iria desenvolvê-la. Em 2004, ocorreu um dos maiores desmatamentos da história. Indícios sugerem que o desmatamento em 2020 poderá ser ainda maior. Ou seja, a ideologia que sai da boca dos governantes influencia diretamente o que acontece na floresta.
Qual a diferença entre aquele período e o momento atual?
Apesar da retórica desenvolvimentista de Lula, Marina Silva, sua ministra do Meio Ambiente, conseguiu fazer um trabalho extraordinário no programa PPCDAM [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal], que resultou no aclamado controle do desmatamento. Compare a respeitada ministra com o atual. Todos os ministros do Meio Ambiente anteriores denunciaram o ministro atual como inimigo do meio ambiente. Em menos de 12 meses ele conseguiu o feito de desmontar décadas de trabalho duro do respeitado sistema brasileiro de meio ambiente. Como consequência, a destruição ambiental em curso não tem precedentes e ameaça o sistema climático com a desertificação.
O que seria essa desertificação?
Em 2003 e 2004 a floresta já estava bastante alterada, mas ainda não tinha chegado próxima ao ponto de não-retorno. Pesquisas recentes mostram que o ar sobre a porção leste da floresta está mais seco. Isso significa maior vulnerabilidade ao fogo e maior mortalidade de árvores, portanto menor capacidade de produzir serviços ambientais para o clima e menor resistência à mudança climática. A floresta está perdendo capacidade de sequestrar carbono porque está doente. A cada ano, a estação seca está ficando maior: antes a chuva começava no final de setembro. Agora, em meados de novembro ainda não começou a chover em grande parte da Amazônia.
Carlos Nobre e Marcos Oyama fizeram em 2002 simulações computacionais de equilíbrio entre clima e vegetação e descobriram que, ao chegar num determinado limite, a floresta remanescente não consegue resistir à mudança do clima, ficando mais suscetível ao fogo. Quando o fogo entra, ela deixa de ser floresta úmida e tende à condição de savana. Dados recentes mostram que esse processo já está em curso. Se ocorrer a savanização e a bomba biótica (teoria que explica a floresta como potência que propele os ventos canalizados nos rios aéreos, funcionando como coração do ciclo biológico) deixar de funcionar, os ventos podem mudar de direção e, em vez de soprarem do mar para a terra, poderão soprar da terra para o mar. Aí ocorre a desertificação. Regiões como a Península Arábica já foram floresta e hoje são deserto. Essa aridez está sendo fabricada agora, com a destruição artificial da floresta.
A imagem acima traduz 10 anos de dados de fotossíntese das plantas em todos os continentes. Cada pulsação representa um ano de observação feita por satélite. O gráfico revela a importância preponderante das florestas da região equatorial para o funcionamento do clima global. A África e o Sudeste Asiático chamam atenção, mas a Amazônia apresenta o maior metabolismo de carbono. (Fonte: Laboratório do professor Yadvinder Mahli, Universidade de Oxford, Inglaterra)
Você chegou recentemente da Noruega. Existe a possibilidade de retomada do aporte que faziam no Fundo Amazônia?
Eu conversei com o Ministro do Clima e Ambiente da Noruega e eles estão preocupados com a postura do governo brasileiro. A Noruega já havia colocado US$ 1 bilhão no Fundo Amazônia, atendendo junto com a Alemanha à solicitação do próprio governo brasileiro. Esse dinheiro estava produzindo efeitos muito benéficos, não só para a proteção da floresta, mas para o desenvolvimento da economia local. O contrato com esses países doadores era baseado no esforço do governo brasileiro em reduzir o desmatamento. O desmatamento voltou a crescer muito e isso viola os termos do contrato. Então, coerentemente, eles guardam os recursos previstos, para encaminhar ao Brasil tão logo o desmatamento volte à tendência de queda.
O relatório “O Futuro Climático da Amazônia”, publicado por você em 2014, falava que grandes cinturões de produção de grãos e outros bens agrícolas recebem da Floresta Amazônica vapor formador de chuvas, os tais “rios aéreos”. Qual o posicionamento do agronegócio diante do quadro de degradação da floresta?
Algumas lideranças reagiram. A senadora Kátia Abreu, que foi presidente da Confederação Nacional da Agricultura, fez forte oposição aos cientistas em 2010 e 2011, por ocasião da mudança do Código Florestal. Mas, recentemente mudou de posição e tem declarado isso. Blairo Maggi, ex-governador do Mato Grosso, há mais de 10 anos ganhou o prêmio Motosserra de Ouro (do Greenpeace) por sua atuação no estímulo ao desmatamento. Mas este ano declarou-se contrário à nova política de terra arrasada para a Amazônia.
Várias outras vozes do agronegócio, que produzem grãos e carnes, estão bastante alarmadas. Uma grande parte está preocupada em perder mercados porque o mundo eventualmente vai reclamar pela perda da Amazônia. Se perdermos a Amazônia, o Acordo de Paris ficará irremediavelmente comprometido. Não teríamos mais condições de atingir as metas por causa da grande emissão de carbono e principalmente pela perda de serviços ao clima.
Não estamos só abrindo área para ter mais uma fazenda. Estamos arrebentando o funcionamento do corpo planetário com grandes consequências para todos, não só para os brasileiros. Então, isso é uma questão muito séria. O que mais me perturbou ao longo da minha carreira de quase 40 anos na Amazônia foi ver a imensa riqueza da vida e as oportunidades de trilhar caminhos respeitosos e inteligentes ser jogadas no lixo. Não se trata de proteger a floresta apenas para deleite dos ambientalistas. A floresta viva é essencial para sobrevivência da civilização humana.
De que riqueza estamos falando?
Recentemente, um trabalho de colegas da Universidade Federal de Minas Gerais, liderados por Raoni Rajão e Britaldo Soares, mostrou que um hectare de floresta preservada, considerando apenas bens e serviços básicos, gera mais de US$ 700 por hectare por ano. A produção média da pecuária extensiva na Amazônia gera algo em torno de US$ 40 por hectare por ano. Se considerarmos uma lista maior de bens e serviços providos pela floresta, como fez Bob Constanza, um dos fundadores da área de Economia Ecológica, esse valor passa de US$ 5 mil por hectare por ano.
Tome a chuva por exemplo. Sem chuva, tem que irrigar. Quanto custa colocar irrigação? E, se não tiver água, tem que dessalinizar a água do mar, como é feito em países áridos. E o que estamos fazendo? Cortando tudo, botando fogo e substituído por uma indústria que produz US$ 40 por hectare por ano, que é o gado magro para produzir carne vermelha, que a Organização Mundial da Saúde já indicou como cancerígena.
E seguimos destruindo o coração do mundo, que produz todos os serviços para o clima, inclusive para a agricultura. Na hora que o sistema amazônico começar a falir, e já está começando, o primeiro impacto desabará justamente sobre o agronegócio, porque não há produção agrícola sem chuva e só a floresta preservada traz a chuva.
E que oportunidades a floresta preservada oferece?
O programa Amazônia 4.0 [proposto pelo irmão, Carlos Nobre] mostra o potencial de levar a tecnologia para dentro da floresta, gerando desenvolvimento e riqueza para os povos da floresta e tornando acessíveis produtos quase milagrosos para a humanidade.
A indústria do açaí na Amazônia, por exemplo, já movimenta US$ 1 bilhão por ano. Em pouco tempo passa a indústria da carne. No Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), na área de fruteiras, décadas antes do açaí virar um sucesso, o pesquisador Charles Clement catalogou as frutas da Amazônia com potencial de comercialização, que são desconhecidas fora de lá, e chegou ao número de 89 frutas. Então, se o açaí é só uma fruta e produz uma indústria de US$ 1 bilhão, com outras 89 frutas temos US$ 90 bilhões e manteríamos a floresta.
Sem falar na biomimética, que é uma revolução na tecnologia e consiste em olhar como a natureza soluciona os problemas. Você pega a cera que cobre a folha de uma planta na Amazônia e tem propriedades semelhantes ao teflon, não gruda nada nela. A indústria de tintas está copiando essa cera. Você pinta um carro ou uma casa que não sujam nunca; a sujeira não gruda. E sem falar também da medicina e de toda a parte de cosméticos. O valor dessas tecnologias da natureza é incalculável. É um cosmo de soluções, riquezas e maravilhas.
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“A floresta está perdendo capacidade de sequestrar carbono porque está doente”. Entrevista com Antonio Donato Nobre - Instituto Humanitas Unisinos - IHU