05 Julho 2019
Carlos Mendoza Álvarez, OP, é teólogo, pesquisador e membro do grupo de teólogos e pastoralistas que desde 2017 formam parte do projeto iberolatinoamericano, para aprofundar sobre as linhas básicas das reformas de Francisco. Falamos com ele no marco do terceiro encontro ibero-americano de Teologia, intitulado “A Sinodalidade na vida da Igreja. Aportes para avançar na reforma da Igreja”. De fala clara e incisiva, o teólogo dominicano aponta o essencial e, colocando as vítimas no centro de sua reflexão teológica, assim abrindo uma das vias mais novas e atrativas da teologia atual.
Mendoza diz, por exemplo, que a Igreja tem que revisar “suas teologias e vivência da sexualidade”; denuncia a “basurización” (desprezo e tratamento de descarte, tal qual o lixo) das vítimas e apoia as mudanças que Francisco está implementando na Igreja, para que “volte às suas fontes evangélicas”.
Assegura, assim mesmo, que a “homossexualidade não é uma doença” e que os abusos sexuais do clero se explicam no centro do poder. Por isso, os apontamentos do Papa emérito sobre o tema parecem “uma visão tendenciosa, sem rigor histórico e inadequada”.
Falamos também de outros temas que preocupam a Igreja que caminha com o povo como são os migrantes, os muros e o desprezo com a vida das pessoas provocada com a sociedade extrativista na qual estamos afundados.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 04-07-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Depois de três convocatórias, o grupo desses congressos iberolatinoamericanos está consolidado?
Para que é um processo ainda em construção. Avançamos. Primeiro foi em Boston, depois em Bogotá e agora, em Puebla. Há um grupo base, que somos trinta teólogos e teólogas de todo o continente e alguns da península ibérica. Me parece que na metodologia ainda nos falta uma afinação, para escutarmos melhor a diversidade de vozes e de tradições teológicas e encontrarmos os pontos de amarração.
Distingo que haja, ao menos, três grupos importantes que conformam esse grupo americano, latino-americano e ibérico. A Teologia da Libertação como corrente fundadora, de recepção do Vaticano II na América Latina. A Teologia do Povo, mais situada no Cone Sul, com sua metodologia própria. E os teólogos e teólogas latinos dos EUA. Três tradições teológicas muito do continente americano, que tiveram boa recepção na Espanha e Portugal.
Para entendermos, três tradições inscritas na “ala progressista” da teologia católica.
Exato. Eu diria que com suas especificidades, porém sim uma teologia mais liberal, em diálogo com o mundo moderno, com as grandes metrópoles latino-americanas e as mudanças sociais, políticas e culturais. Cada uma desses três ramificações faz mais ênfase em diferentes contextos. No sociopolítico e econômico, a Teologia da Libertação. No cultural e popular, a Teologia do Povo. Na migração e nas mestiçagens culturais nos EUA, a Teologia Hispânica nos EUA, pra dizer três grandes traços.
Mas sim, efetivamente existem outras correntes teológicas latino-americanos que foram, digamos, apologéticas. E estão ainda muito ativas em algumas em algumas instituições.
Que consistência tem o grupo enquanto número e incidência na teologia global eclesiástica, nesses momentos?
Primeiro uma consistência nas faculdades teológicas desde Buenos Aires até Boston College, passando por diferentes universidades em todo o continente. Algumas, como Comillas, na Espanha. Quero dizer que há uma consistência acadêmica que creio dão autoridade científica, para assim chamar.
Também uma consistência pastoral, porque existem vínculos com movimentos eclesiais e com movimentos sociais, como, por exemplo, as comunidades de base ou Ameríndias que, na visão da Teologia da Libertação, estão junto ao povo e, em particular, ao povo pobre e marginalizado.
Está sendo uma teologia que parte das bases. Com uma consistência pastoral em novos campos da mesma pastoral, em relação com mulheres, com povos originários, com a comunidade LGBT. Creio que isso nos dá certa consistência, tanto acadêmica quanto pastoral.
E em um âmbito mais internacional?
Nos contextos mais internacionais, isso é, fora do continente americano e da Península ibérica, há contatos com faculdades teológicas europeias, com revistas internacionais, como por exemplo, Concilium, com a que trabalhamos alguns dos que estamos nesse grupo. E com outras publicações, digamos, mais científicas, de diferentes disciplinas.
É um grupo que, predominantemente, está centrado em um tema que eu qualificaria com eclesiológico-pastoral. Estão a Teologia Moral, a Teologia dogmática e a Teologia fundamental, mas como disciplinas que apoiam essa reflexão da atualidade na urgência de uma teologia para tempos de globalização.
A relação de vocês com o papa Francisco é de um “do ut des”: ele os anima e os incentiva, e vocês o apoiam em suas reformas.
Disso se que se trata, segundo entendo, em particular, a liderança da Boston College e, em verdade, os professores que vêm de lá, como Rafael Luciani, Félix Palazzi e outros. As autoridades da Boston College tiverem uma claridade meridiana na necessidade de apoiar essa renovação eclesial do papa Francisco, no desenrolar dessas instituições teológicas fundamentais do seu magistério pontifício e, desde o contexto da tradição teológica plural latino-americana nos EUA, poder aportar um desenvolvimento dessa teologia.
A sinodalidade, que foi o tema da Conferência de Puebla, é um compromisso pendente?
Claro, derivada da conciliaridade. Isso é, da grande experiência de colegialidade do Concílio Vaticano II, sua recepção em Medellín e Puebla, até chegar a Aparecida. Porém, a sinodalidade estamos vendo aqui como um contraparte que está por se desenvolver e que é a vida do Povo de Deus. Um caminho de sínodo, de discipulado, de seguimento de Cristo e de sua diversidade de carismas, de ministérios com suas diferentes instâncias, também de governo.
Porém é preciso reinterpretar essa governança, não somente frente à crise social que vivemos. Ontem foi magnificamente exposto um ângulo dessa crise por Carlos Schickendantz: o tema da pederastia e como há uma exigência da cultura contemporânea à Igreja, para que revise a fundo suas estruturas de governo que, as vezes, favorecem um clima de homofobia, por exemplo, ou de disfunção da homossexualidade. É um assunto de justiça para com as vítimas – e isso vem de vozes externas à Igreja – a necessidade de que o cristianismo revise processos internos: como respeita a dignidade humana, como promove práticas de bom governo e os fundamentos teológicos nos quais muitas vezes esse modelo clerical e patriarcal dominou durante séculos na Igreja.
Está de acordo no que as reformas podem e devem ajudar à solução dos problemas dos abusos sexuais do clero? Acredita que se há reforma dos ministérios, pode se conseguir erradicar essa cicatriz?
É um elemento estratégico importante. Para analisa-lo, me parece fundamental tomar em mãos um livro de Christian Duquoc, que já tem 30 anos, “Precariedade institucional e Reino de Deus”. Duquoc falava de três disfunções da Igreja moderna: sua relação com o corpo e a sexualidade, o trabalho e os bens, e o poder.
Creio que a Igreja necessita se reformar para voltar as suas fontes evangélicas. E temos que tratar nesses três âmbitos: Respeito à sexualidade humana (porque não é somente a sexualidade dos clérigos), nos perguntarmos qual é a moralidade oficial da Igreja na vida matrimonial, na vida dos jovens etc. Qual é nossa relação com o corpo para fazer uma reinterpretação de nossa condição humana sexual. Porém também de nossos corpos vulneráveis. As teólogas feministas foram as mais criativas em ver que os corpos são territórios de autonomia, porém, também, de compaixão e de cuidado.
Como refazer uma teologia do corpo?
Isso já se está fazendo. O fazem as mulheres, em particular. E a Igreja tem que refazer sua teologia e sua vivência dessa sexualidade/corpo.
Porém também, é preciso tratar o tema do trabalho e dos bens: a questão da riqueza na Igreja, do trabalho, dos direitos das pessoas que colaboram em nossas instituições. E a questão do poder. Esse colóquio, falando do sínodo daqui, centrou suas análises na questão do poder eclesiástico e clerical que, eu acredito, é único, porém não o único que precisa debater.
O que você acha dos apontamentos do Papa emérito sobre o problema dos abusos?
Eu acho que uma visão parcial, falta de rigor histórico e que é lamentável, neste momento de crise na Igreja, porque eu acho que não vale a pena refletir sobre as causas do problema: não é uma questão simplesmente de uma libertinagem sexual devido a uma revolução sexual que foi vivida nos anos 60 e que, mais tarde, uma parte da Igreja assumiu-a como bandeira. Acredito que o problema da pedofilia é um problema multifacetado, que tem que ser analisado com suas bases psiquiátricas e legais, porque é um crime, mas também há um problema psiquiátrico. É um problema que não está ligado à homossexualidade, que é outra condição humana e não é uma doença.
O que se deve pensar é como desmantelar essas estruturas que geram abusos e que, no final, não são apenas no poder sexual, mas no poder: o poder clerical.
A ascensão da homossexualidade na Igreja está penosa. Até o Papa Francisco, que às vezes diz algumas coisas e outras vezes, outras. Na Espanha, alguns bispos ainda estão falando de "cura".
Existe um teólogo católico britânico, James Alison, que trabalhou muito nesse assunto. Ele fala em uma carta, em uma edição da Concilium, sobre o assunto "Carta a um jovem gay", dizendo uma frase que me parece afortunada: "Estamos explorando um novo continente da sexualidade humana no século XX; a descoberta de que a sexualidade humana é diversa é complexa e que o que está no fundo é a dignidade da pessoa. Em que cada pessoa tem que descobrir sua própria condição e ser responsável com ela. Viver o Evangelho, o seguimento a Cristo, anuncie o Reino".
Mas a Igreja, com seus preconceitos fóbicos, teve uma compreensão muito mais difícil. "Estamos explorando um novo continente", diz James Allen, e acho que é verdade: estamos descobrindo o que é.
Uma das últimas frases do papa Francisco na mídia, em seu grande zelo pastoral, foi: "quem não respeita os homossexuais não tem coração" ou algo assim. Com isso, abriu-se uma lacuna desse discurso mais institucional, que permitiu uma maior normalização da linguagem sobre a diversidade sexual e a encarou como uma riqueza sobre a qual temos que descobrir o seguimento de Cristo. E acredito que isso está sendo feito por muitos movimentos pastorais ecumênicos de pessoas que, de sua condição de diversidade de gênero, estão vivendo o seguimento de Cristo. E isso vai acontecer, vamos esperar, mais cedo ou mais tarde, as reformas das estruturas. Mas, primeiro, nas experiências e na espontaneidade.
Você espera frutos concretos do próximo Sínodo da Amazônia?
Eu acho que é um grande momento e onde vemos que o papa Francisco tem visões proféticas em escala global. Claro, o procedimento ser tão algo original, um pouco incerto: quem está envolvido, quais são as pessoas que estão reunidos são ... Mas a chamada para um sínodo Pan, para que a voz dos povos Pan-Amazônia de nove países ouvido Esse lugar, que é um dos pulmões do planeta e um território de dignidade e seguimento de Cristo, parece-me um sinal profético, daqueles que o papa Francisco tem, para ajudar a Igreja a ver outro caminho.
Como primeira experiência, é pastoral, canônica, etc. parece secundário para mim O que parece relevante para mim é que o papa abra um fórum no Vaticano para ouvir essas pessoas e ajudá-las a fazer com que sua voz seja ouvida no mundo. Porque é disso que se trata o Sínodo Pan-Amazônico: não é apenas a questão religiosa, mas geopolítica e territorial.
A chegada de AMLO ao México causou alguma esperança nos pobres, nos descartados?
Sim, mas precisamos aprender com a experiência do Brasil e de Frei Betto, criticando a corrupção em que o PT caiu na época. A Quarta Transformação com AMLO está prometendo uma série de reformas que não tocam no modelo econômico e, embora ele diga que o neoliberalismo acabou, ele permanece totalmente dentro desse modelo. Os zapatistas estão certos quando dizem, com a língua camponesa-rural: "nós mudamos de fazendeiro, mas não de patrão". Ou seja, o capitalismo neoliberal ainda está crescendo e, nesse sentido, a Quarta Transformação não significa uma mudança de paradigma.
Você concorda com a AMLO que a Igreja e a Espanha teriam que pedir perdão pela Conquista?
A questão da memória histórica é fundamental. Acredito que é um direito das vítimas recuperar sua memória histórica. Mas é uma reconstituição de um tecido social em escala global. Parece-me que não é apenas uma questão ética e política, mas também legal, no sentido de um novo pacto social, neste caso, em escala internacional. Parece-me que o tempo e o caminho foram lamentáveis. Além disso, aproveitando um livro que sua esposa publicou sobre o tema da memória histórica da Conquista. Eu não acho que o caminho tenha sido adequado.
E o México não teria que se desculpar também com os indígenas?
Claro. Nesta reconstrução do tecido social em escala global, teríamos que fazer uma revisão histórica de diferentes violências. O ponto é que quando há um aniversário como este se aproximando, que é os 500 anos da queda de Tenochtitlan em 1521, que também foi um império violento contra muitos povos que dominaram, é a ocasião, talvez, para fazer uma revisão histórica .
Donald Trump vai "molhar o ouvido", como dizemos na Espanha, com o enfadonho muro? Ou fará que vocês abaixem a cabeça e construam aquele muro da vergonha?
A questão do muro... Bem, ele quer construir seu muro e fará isso. E traficantes de drogas e pessoas farão túneis. Ou seja, não pode parar a migração em massa.
No México, nos últimos meses, estamos vendo um crescimento inesperado na migração. Da população que não é só da América Central. Muitos passam pelo México, mas vêm da África, países subsaarianos ou da Ásia. E o México está sendo um funil pelo qual muitos migrantes querem viajar para os Estados Unidos.
Agora, a política de Trump é forçar o governo mexicano a conter essa migração em nosso território, tornando-nos responsáveis pela atenção desses migrantes. Mas acho que o problema é o dos Estados que criaram esse modelo econômico de enriquecimento por espoliação, que agora estão vendo seu poder revertido com essas migrações maciças. Como no caso da União Européia, o Mediterrâneo e o Saara, que são fossos clandestinos ao ar livre. Como os que temos aqui no México, infelizmente. É um terrível fenômeno de crise humanitária.
A violência, a corrupção, a insegurança que você sofre já são crônicas no México e não têm solução?
Eles são um sintoma da violência global. Quero enfatizar que não é apenas um problema do contexto mexicano, mas que é uma ponta de lança da violência global. Às vezes, geralmente pensamos que o problema da violência é local, de um país que teve instituições corruptas. Enquanto isso é um elemento, estamos vendo uma violência sistêmica produzida por um pensamento hegemônico e uma civilização hegemônica. Boaventura de Souza Santos fala sobre a causa do capitalismo, do patriarcado e do sistema colonial. Acrescento que é um sistema sacrificial de religião. E isso gera corpos descartáveis, migração em massa, tráfico de pessoas, mulheres, crianças, órgãos humanos, armas, dinheiro ...
O problema é essa sociedade extrativista, como chama Raúl Zibechi, o grande sociólogo uruguaio, é o que gera a violência sistêmica e, portanto, esses grupos de migração de pessoas que estão sujeitas a uma vida plenamente descartável e são a primeiras vítimas das máfias que estão em todo o planeta.
Para terminar com algo esperançoso, a primavera de Francisco é irreversível?
Estamos vendo que há opositores da reforma de Francisco na Cúria Romana, mas também nos episcopados de diferentes latitudes do planeta. E de grupos leigos que viram em Francisco o perigo de uma visão social do evangelho e que aguardam sua vingança. Esperançosamente, passaram-se mais de cinco anos desde o seu pontificado, que ele pode realmente promover essas reformas mais estruturais, que a Igreja necessita urgentemente. Nesse sentido, esperamos que seja uma primavera que tenha bons resultados.
A hierarquia mexicana se localiza onde?
Papa Francisco está querendo nomear bispos que cheiram como ovelhas ... Bem, nós ainda não vemos esse tipo de perfil em nossa hierarquia. Infelizmente, predomina um episcopado que tem uma preocupação pastoral, mas também um status de vida de hegemonia de poder, de privilégio, uma negociação com os poderes constituídos. Há falta de radicalismo profético e evangélico em nossos pastores.
Mesmo com as mudanças que já ocorreram, por exemplo Ribera que saiu e Aguiar que chegou?
Nós esperávamos outro perfil.
Você queria mais radicalidade nesses cargos?
Mais clareza no que um pastor efetivamente implica caminhar com as pessoas, em sua diversidade de contextos.
Existe uma material para isso? Vocês tem bispos, "fogueados", como dizem, com alguma experiência?
Sim, mas eles são uma minoria na hierarquia mexicana.
Na linha de Samuel Ruiz?
Essa foi uma geração: Samuel Ruiz, Raul Vera..., estão entre os poucos que se propõem, mas acho que a aposta não é seomente nos bispos, mas também nos movimentos eclesiais, às vezes, fora da instituição, mas que estão com as vítimas, caminhando com as pessoas, com as mulheres, com os povos originários, com os migrantes. Há muitos religiosos, muitos padres juntos ao povo. Eu acho que é daí que vem a reforma.
E isso terá visibilidade, na sua opinião?
Já se tem isso. Há uma anedota feita por Javier Sicilia, (este grande poeta católico que era o líder do Movimento para a Paz), quando ele iniciou uma caravana de vítimas que percorreu o país três vezes, e um teólogo oficial disse: "A Igreja já se pronunciou a seu favor!" E ele então perguntou: "De que igreja você está me falando? Eu tenho três irmãs, cinco bispos e muitos agentes pastorais que estão caminhando conosco: essa é a Igreja para mim”. Existe esperança!
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“Os apontamentos do Papa emérito sobre os abusos me parecem uma visão tendenciosa, sem rigor histórico e inadequada”. Entrevista com Carlos Mendoza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU