04 Abril 2018
“Em torno da liturgia, há confusão demais – certamente não atribuível ao atual pontificado –, e quem paga a conta é precisamente aquele ‘magnum principium’, aquela orientação linear à ‘participação ativa’ do povo no rito cristão, que é um fruto muito precioso do Concílio Vaticano II e em relação ao qual, muitas vezes, prefere-se apoiar ou proteger ‘museus pascais’ como esse ou a paralisia devota de uma assistência silenciosa ao culto.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
Andrea Grillo é filósofo e teólogo italiano, leigo, especialista em liturgia e pastoral. Doutor em teologia pelo Instituto de Liturgia Pastoral, de Pádua, é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, de Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, de Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, de Pádua. Também é membro da Associação Teológica Italiana e da Associação dos Professores de Liturgia da Itália.
O professor Grillo será conferencista do XVIII Simpósio Internacional IHU. A virada profética de Francisco. Possibilidades e limites para o futuro da Igreja no mundo contemporâneo e ministrará as seguintes atividades:
O artigo foi publicado em Come Se Non, 02-04-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Acaba de se concluir o Tríduo Pascal, fruto da admirável reforma da Semana Santa, sobre a qual o falecido Patrick Regan escreveu páginas inesquecíveis (disponíveis aqui, em italiano), quando, na rede, me deparo com estas palavras:
“PCED permission for pre-1955 Holy Week.”
Assim diz o título de um post do blog Rorate Coeli (disponível aqui, em inglês), conhecido blog tradicionalista estadunidense. Um esclarecimento é imediatamente obrigatório, porque a linguagem do título é cifrada. Tento oferecer uma versão italiana mais ampla: “A Pontifícia Comissão Ecclesia Dei (= PCED) autorizou a celebração da Semana Santa segundo o rito anterior à reforma de Pio XII, que é 1955”.
A notícia vem dos Estados Unidos, e foi Massimo Faggioli que a assinalou prontamente no dia 1º de abril, no Facebook. O blog Praytell também havia dedicado ao tema um saboroso post nos últimos dias (disponível aqui, em inglês). Em essência, se trataria de mais uma radicalização da contestação à Reforma Litúrgica conciliar, que também envolve as suas “perigosas premissas” sob o pontificado de Pio XII, que, como se sabe, trabalhou na Semana Santa de modo bastante acurado e fecundo.
Agora, essas “autorizações” ocorrem, mas fora da “competência” que o motu proprio Summorum Pontificum atribui à Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, sendo a possível exceção ao Missal de Paulo VI reservada apenas em relação ao Missal de João XXIII, de 1962. Neste caso, a Comissão Ecclesia Dei ampliaria arbitrariamente a normativa clara do Summorum Pontificum, criando uma situação deste tipo: pode-se celebrar segundo o missal de 1962 revogando o de 1969, mas, neste caso, pode-se celebrar revogando o missal de 1962 segundo os Ordines da Semana Santa anteriores à reforma de 1955. Portanto, se trataria de uma contestação ao rito de 1962 – aquela que um presidente anterior da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei chamava de “a grande reforma de João XXIII” – em relação à qual é autorizado o uso de um ordo anterior.
Antes de expressar uma avaliação precisa desse ato formal da Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, gostaria de salientar algo muito saboroso, mas não sem correlações com aquilo que examinamos até agora.
Por si só, a solução introduzida por Bento XVI com o Summorum Pontificum, ou seja, o paralelismo opcional de diversas formas do mesmo rito romano, tivera dois precedentes ilustres. Um mais conhecido, proposto por Dom Lefevbre, na época da Reforma Litúrgica, para que ela permanecesse como “opcional” e fosse possível continuar celebrando também com as formas anteriores.
Mas o segundo, e mais antigo, vinha do cardeal Giuseppe Siri e foi proposto em 1951, precisamente após a primeira experiência de “Vigília Pascal noturna”. Naquele caso, após ter exposto suas críticas ao procedimento de passar da vigília “in mane” à vigília “in nocte”, Siri propunha que Pio XII introduzisse a reforma como uma “possibilidade” opcional, que deixasse livres os bispos e párocos individuais para se regularem de forma diferente.
Curiosamente, hoje, 70 anos depois, com papéis invertidos, de Roma vem uma decisão – ainda que ad experimentum e ad tempus, como informa a fonte não oficial – de autorizar a utilização de um rito que, em 1955, havia sido autorizada e universalmente reformado. Ser imune às reformas – do Concílio ou de Pio XII – parece ter se tornado um valor, do qual a Ecclesia Dei se torna guardiã escrupulosa.
Ora, se uma coisa está clara é que, à luz do desenvolvimento histórico, litúrgico e eclesial ocorrido, apenas o Ordo de 1969 garante a plenitude da experiência litúrgica, teológica, espiritual e eclesial da Semana Santa. Já a reforma de Pio XII, que intui também algumas importantes recuperações históricas, fica no meio do caminho. Mas até mesmo o rito anterior a Pio XII – aquele que chamaríamos de “tridentino puro” – parece ser, hoje, totalmente improponível, senão para alimentar uma Igreja reduzida a museu diocesano ou a cultivo de apegos nostálgicos no limite da patologia social antes que pessoal.
Em tudo isso, como é evidente, a atenção deve se concentrar na Pontifícia Comissão Ecclesia Dei, a propósito da qual se deve observar o seguinte:
- constatamos que ela quis tomar uma decisão que ultrapassa as suas competências e devemos nos perguntar: a que controles ela está submetida ou pode ser submetida? O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – que é seu presidente – está informado disso? E por que uma comissão que nasceu da constatação de uma “aflição” da Igreja (Ecclesia Dei adflicta... dizem as palavras iniciais do texto de instituição) tornou-se uma comissão não de “aflitos”, mas sim de “afeiçoados”, que não são mais freio e filtro, mas parecem ser margem e incentivo a toda “nostalgia litúrgica”? Por que o critério de “assunção” na comissão parece ter se tornado – ou talvez foram desde a origem – uma certa simpatia por aquelas “formas” que “afligiam” a Igreja? Uma comissão de controle poderia ser constituída apenas por aqueles que deveriam ser controlados? Quis custodiet custodes?
- mas observamos também outra questão, ou seja, que a comissão não consegue reconhecer o dado precioso pelo qual a “forma litúrgica” e o “conteúdo teológico” estão estreitamente ligados e não podem ser separados. Ela é quase forçada a atuar “como se” as diversas formas litúrgicas do mesmo rito fossem indiferentes em relação ao “conteúdo dogmático e eclesiológico” que medeiam. Ela deve quase que necessariamente professar uma “lógica pré-conciliar” de compreensão da liturgia para desenvolver seu próprio ministério, que, até prova em contrário, deve estar “a serviço” e não “contra” a reforma litúrgica.
- por fim, ela não parece perceber que, pelo fato de ter autorizado tal prática disforme até mesmo em relação ao missal de 1962, ela contribui para tornar vãs e vazias as afirmações fundamentais e comuns a toda a Igreja que são universalmente proclamadas no dia da Epifania e que reconhecem o “Tríduo Pascal” como o centro de todo o ano litúrgico. Se a celebração segundo um “ordo” que (ainda) não tem o Tríduo Pascal – mas sim um tríduo da paixão e um tríduo da ressurreição justapostos – é autorizada, introduz-se um elemento de profunda crise na comunhão eclesial. Corre-se o risco de continuar afirmando a autonomia da Paixão da Ressurreição, como fez o cardeal Ottaviani durante o Concílio, quando afirmou: “O fato de a Páscoa ser acidental à salvação é mostrado pelas palavras de Jesus na cruz ao bom ladrão: ‘Hoje estarás comigo no paraíso’”. Se é autorizado celebrar um tríduo que ainda faz parte do “tempo de quaresma” e ainda não é Páscoa, fere-se o nível mais profundo da comunhão eclesial no seu próprio centro. Como uma comissão pontifícia pode não ver esse enorme erro naquilo que permite experimentar? Como ela não consegue perceber a mancada espiritual, eclesial e litúrgico que autoriza?
Se um órgão, que nasceu em 1988 para resolver a “questão lefebvriana” e que, em 2007, adquiriu mais competências depois do Summorum Pontificum, chega hoje a ultrapassar suas competências e até a incentivar comportamentos desviantes dentro da comunhão eclesial, ele acaba criando mais problemas do que aqueles que resolve; então, será preciso concluir que uma parte não secundária desses problemas é representada hoje não pelas questões individuais levantadas, mas pela própria comissão.
Deve-se dizer claramente e com muita honestidade: uma parte nada pequena do problema litúrgico de hoje é representada pela inadequação teológica e pela incompetência litúrgica da Comissão Ecclesia Dei, que é incapaz de proteger e de promover a continuidade da tradição litúrgica posterior ao Concílio Vaticano II e, ao contrário, a mina explicitamente.
Isso corresponde, de modo bastante singular, a uma gestão paralela e dolorosa da Congregação para o Culto – que, aliás, foi subtraída dessa delicada “matéria litúrgica”, submetida, em vez disso, à jurisdição da Congregação para a Doutrina da Fé.
Em torno da liturgia, há confusão demais – certamente não atribuível ao atual pontificado –, e quem paga a conta é precisamente aquele “magnum principium”, aquela orientação linear à “participação ativa” do povo no rito cristão, que é um fruto muito precioso do Concílio Vaticano II e em relação ao qual, muitas vezes, prefere-se apoiar ou proteger “museus pascais” como esse ou a paralisia devota de uma assistência silenciosa ao culto.
Nesse sentido, a “colaboração” entre a Comissão Ecclesia Dei e setores não secundários da Congregação para o Culto corre o risco de minar na raiz o caminho da Reforma Litúrgica, do centro para a periferia.
É preciso uma virada séria e serena, que reconheça eficazmente o que é central e o que deve ser descartado, pondo energicamente de lado estilos curiais pouco dignos, não digo de uma “Igreja em saída”, mas, pelo menos, de uma Igreja minimamente interessada no fato de que existe algo fora de si mesma, do seu pequeno mundo antigo feito de apegos nostálgicos e de ressentimentos antimodernos.
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Uma Semana Santa de ''museu'' e a degeneração da Comissão Ecclesia Dei. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU