27 Fevereiro 2018
“Pergunto-me se uma maior consciência dessas diferenças eclesiais na e da história não tornaria o julgamento de Sarah e de Müller não só teoricamente mais equilibrado, mas também dotado de maior inspiração eclesial.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 26-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Com uma considerável sintonia, quase em uníssono, em contextos diferentes e em formas diferenciadas, o prefeito da Congregação para o Culto, cardeal Sarah, e o ex-prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Müller, se expressaram com uma inusitada dureza contra formas da práxis e da doutrina eclesiais que encontram sua raiz no Concílio Vaticano II e sua implementação no magistério do Papa Francisco.
Poderíamos dizer que talvez nunca como nessas declarações objetivamente “excessivas”, surgiu, nos dois cardeais, a aberta hostilidade à Igreja e aos pastores que se deixam guiar pelo texto e pelo espírito do Concílio Vaticano II.
Examinemos brevemente as afirmações dos dois cardeais.
A intervenção do cardeal Sarah tem a forma de um prefácio, que ele escreveu a um livro dedicado ao exame da história da “comunhão na mão”. Nesse contexto, ele se deixa levar por julgamentos totalmente unilaterais e desprovidos de equilíbrio sobre a tradição da “Handkommunion”, chegando até a configurar um “ataque diabólico” nesse desenvolvimento recente – que retoma práticas antigas e totalmente estabelecidas –, mas que, a seus olhos, parece ser simplesmente uma “negação da sacralidade” do sacramento e um “atentado ao seu conteúdo”. As profanações do Santíssimo Sacramento, que, para Sarah, também são identificadas na “intercomunhão” e nas formas de uma reavaliação da doutrina eucarística, elas parecem ser redutíveis, para o cardeal, incrivelmente, a um efeito da Reforma litúrgica.
Só uma retomada da prática da “comunhão de joelhos e na língua” seria o baluarte contra essas diversas formas de profanação. Em essência, a Reforma da Reforma serviria de escudo para a autêntica santidade católica.
O cardeal Müller, por sua vez, em um texto escrito para o site First Things e intitulado “Desenvolvimento ou corrupção” (disponível aqui, em inglês), propõe uma interpretação do magistério atual com base em uma releitura das obras de Newman, com as quais ele acredita que deve liquidar qualquer discurso sobre a “mudança de paradigma” na doutrina cristã como uma forma de “corrupção” da tradição, como uma queda modernista em relação à qual é preciso se cuidar e que deve ser censurada. E o exemplo que ele propõe, obviamente, é a Amoris laetitia, que, na sua opinião, poderia ser lida corretamente apenas mantendo uma absoluta continuidade com os documentos que a precedem.
Em ambos os textos, com todas as suas diferenças, aparece com clareza a tentativa de “reduzir a modernismo” qualquer diferenciação em relação à perspectiva do século XIX de compreensão da eucaristia, do magistério e do matrimônio.
Gostaria de fazer algumas considerações em torno dessas posições.
Impressiona-me muito a radicalidade da negação do outro que transparece nesses textos. Por um lado, para Sarah, toda práxis de comunhão que seja diferente daquela “de joelhos e na língua” corre o risco de ser liquidada como “ataque diabólico” à tradição sacrossanta.
Mas como o prefeito da Congregação para o Culto pode esquecer totalmente que essa forma – assim como ele a descreve e a ilustra nos pastorinhos de Fátima, em João Paulo II e na Madre Teresa de Calcutá – é uma legítima interpretação do século XIX e do século XXI do “comungar”, que o Movimento Litúrgico reconhecera, já há 100 anos, como limitada e a ser integrada? Toda a redescoberta do “rito da comunhão” como lugar específico de relação com a manducação do sacramento pôs em movimento aquela reavaliação que, hoje, embora com uma certa hesitação compreensível, permite que as comunidades cristãs – antes ainda que os indivíduos batizados – se reconheçam naquilo que fazem?
Andar processionalmente (não de joelhos) rumo ao altar para receber (na mão) a partícula (produzida na “fractio panis”), para se tornar aquilo que se recebe (Corpo de Cristo eclesial a partir do Corpo de Cristo sacramental): não há nenhum rastro disso nas palavras do cardeal Sarah.
Assim também, sua leitura parece ser muito diferente da compreensão mais ampla que J. Ratzinger/Bento XVI propôs sobre a mesma questão: não só nunca pondo em oposição mão e boca, pés e joelhos, mas reconhecendo também que o melhor da teologia litúrgica veio de uma mudança do conceito de “forma”. Aqui ele sublinhou, de certo modo, uma “mudança de paradigma” na compreensão da “forma eucarística” que instou profundamente a Igreja ao longo de todo o século XX. Talvez uma leitura completa dos textos de J. Ratzinger/Bento XVI beneficiaria a todos.
Isso permite reler também as palavras do cardeal Müller como uma espécie de “rendição” à tentação de “reduzir a modernismo” tudo o que não é mera repetição do já afirmado e estabelecido. É muito curioso que as citações que Müller anexa ao seu texto são todas pré-conciliares, enquanto que, do Concílio Vaticano II, ele revela não o centro, mas apenas afirmações marginais.
Em particular, não há nenhuma consideração da “índole pastoral”, que é o perfil mais alto do Vaticano II e do qual, desde o discurso inaugural de João XXIII, deriva a necessária e abençoada distinção entre dois níveis da tradição que não podem ser confundidos: “Uma coisa é a substância da antiga doutrina do depositum fidei, outra coisa é a formulação do seu revestimento”. Esse princípio-chave nos permite ler o Concílio Vaticano II como “mudança de paradigma”, ou seja, como princípio de “tradução da tradição”, em vista de uma fidelidade mais autêntica e mais radical.
Além disso, o fato de que tudo isso é utilizado por Müller apenas para defender uma leitura “vazia” da Amoris laetitia identifica bem o coração da questão. Na realidade, no seu texto, não se defende uma doutrina ou uma disciplina clássica, mas sim uma estrutura da relação entre Igreja e mundo. Permanece em primeiro plano a nostalgia de uma Igreja como “societas perfecta” e a pretensão de identificar o Evangelho com a normativa de uma sociedade fechada: uma teologia de autoridade, desprovida de toda relação com a liberdade em sentido moderno.
Na realidade, na Amoris laetitia, a reavaliação da noção de matrimônio, de adultério, de consciência, de história e de família não é uma “rendição ao mundo moderno”, mas sim um modo de compreender melhor o Evangelho.
Na realidade, como aparece claramente, sobretudo, a partir do texto de Müller, existe, nessa crítica tão radical dos desenvolvimentos magisteriais recentes – em matéria litúrgica e matrimonial – uma crítica explícita a Francisco e a seu magistério. Não é surpreendente que as “fontes” das quais os dois cardeais se alimentam são todas pré-conciliares: por um lado, os pastorinhos de 1916, por outro, os documentos antimodernistas de Pio X. Discutem-se questões atuais com instrumentos velhos e inadequados.
Francisco, em vez disso, levou o Concílio Vaticano II a sério e o implementa com fidelidade e coerência. É como se esses cardeais dessem voz àquela parte da Igreja que havia se iludido que poderia “domesticar” o Vaticano II. Que poderia apagar a profecia, que poderia contornar as reformas, que poderia o ditado.
Francisco é escandaloso por ser fiel. A “mudança de paradigma” não é a dele, mas a conciliar. Que ele aprendeu bem, quando, ao identificar o perfil do “teólogo”, falou de três virtudes necessárias: inquietação, incompletude, imaginação.
Por outro lado, precisamente nesse nível, a ambos os cardeais, eu me permitiria aconselhar uma releitura histórica da questão que eles levam. As práticas da comunhão eucarística, ao longo da história, foram muito diversificadas e, acima de tudo, conheceram “crises” muito mais graves do que aquelas pelas quais hoje rasgamos nossas vestes.
Quanto aos “paradigmas diferentes”, quem poderia negar que a teologia do matrimônio – mas não só ela – recebeu soluções diferentes de acordo com paradigmas diferenciados? O primado da tradição judaica e depois canônico-romana, o impacto com o mundo bárbaro, a especulação escolástica na Idade Média, a reviravolta institucional após Trento, a codificação em 1917 não são, talvez, paradigmas diferentes que não devemos confundir imediatamente com o Evangelho e a doutrina? Pergunto-me se uma maior consciência dessas diferenças na e da história não tornaria o julgamento de Sarah e de Müller não só teoricamente mais equilibrado, mas também dotado de maior inspiração eclesial.
Para concluir, gostaria de citar um texto, que eu encontro sugerido em um belo post do Prof. Stefano Ceccanti, no qual E. Mounier, em 1945, convidava a não ter medo de “saltar”, de se abrir ao novo, de sair de leituras pobres e tímidas demais da grande tradição cristã.
Gostaria de dedicá-lo não tanto aos dois cardeais, mas a todos aqueles que, sem dizer tão explicitamente, participam dessa morna aparência de prudência, que tão facilmente se identifica com a desconfiança, com o medo e com a profecia da desventura:
“Homens que têm medo do salto, eis o que nos tornamos, homens educados a ter medo do salto. Todos passam para o outro lado, e nós permanecemos nesta margem dos abismos do futuro. Como faremos para aprender de novo a coragem de saltar, exatamente naqueles pontos em que a prudência nos cala ou resmunga?” (E. Mounier, L’avventura Cristiana. Florença: Fiorentina, 1953, p. 99, edição original de 1945).
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O medo de dar o salto. Sarah, Müller e a caricatura do antimodernismo. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU