29 Março 2018
A partir do livro editado por M. Vergottini, intitulado Le perle di Martini [As pérolas de Martini, em tradução livre] (Ed. EDB), o teólogo italiano Andrea Grillo comenta uma dessas “pérolas”, presente em um texto do cardeal Martini de 1991.
Grillo é professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado por Come Se Non, 26-03-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“De fato, como escreveu Karl Rahner, toda ação que o homem realiza como pessoa humana, se se deixar conduzir pela dinâmica da solidariedade, que é a dinâmica do Espírito, é amor ao próximo que se torna concreto e, mesmo fora da confessionalidade da ação, recebe seu peso absoluto em responsabilidade, em significado e em validade eterna”.
(No encontro com as pessoas engajadas no âmbito sociopolítico – Rozzano, 23-04-1991; in ISL XII, 241)
(Foto: Divulgação)
No rastro do pensamento de outro grande jesuíta do século XX, Karl Rahner, o cardeal Martini expressa um princípio que pode ser conjugado de vários modos: encontramo-nos diante de uma teoria do cristão anônimo? Ou de uma renúncia à diferença cristã? Ou, em vez disso, se trata de uma preciosa valorização das potencialidades implícitas no comportamento humano? Ou de uma percepção positiva geral da laicidade nas melhores de suas expressões?
Todas essas são hermenêuticas legítimas e, de certo modo, também bem fundamentadas. Mas, nas palavras de Martini, que remontam a 26 anos atrás, ressoa algo que hoje, à luz do pontificado de Francisco – por sua vez, jesuíta – adquire um valor quase profético e paradigmático.
Diríamos, então, que aqui Martini propõe uma leitura não autorreferencial da diferença cristã. Ele procura, como sucessor de Rahner e como precursor de Francisco, sair do módulo reativo, apologético e censório, tão típico do antimodernismo do início do século XX. A descoberta da igualdade e da liberdade como condição da fraternidade é a grande provocação tardo-moderna: ela busca chegar ao coração da fraternidade passando por um caminho surpreendente e quase escandaloso: o caminho da liberdade e o caminho da igualdade. Por quase dois séculos, esta foi quase identificada com a heresia mais arriscada. Mas quanto poder há nessa visão “humilde” do Evangelho. Quanta sagacidade humana e quanta inspiração divina transparece dessas poucas linhas, que ainda hoje continuam sendo difíceis de entender e talvez até de digerir.
No coração de um tempo difícil, como no início dos anos 1990, durante os quais a profecia conciliar parecia desaparecer, na insistente e muitas vezes exasperada busca por uma “diferença” que ostentasse a pretensão de julgar tudo e todos, com base em “valores inegociáveis” e na certeza de excluir toda relação com ações “intrinsecamente más”, a voz de Martini, amadurecida em um diuturno confronto com a Palavra e com a experiência dos seres humanos – sem reduções e sem censuras, tanto em relação à primeira quanto em relação à segunda – parece vir quase de outro mundo.
Hoje, precisamente em virtude do rápido desenvolvimento após o dia 13 de março de 2013, é fácil que possamos perder de vista a “audácia” dessa sua palavra sábia e corajosa. Que chegava quase inesperadamente, em um contexto em que, ao discernimento, se preferia a condenação sem encontra; à prudente consideração de todas as circunstâncias, a definição imediata e abstrata de uma condição ou de um “estado”.
Certamente não era por uma carência de identidade que C. M. Martini podia chegar a essa consideração universal da solidariedade e da fraternidade. Mas precisamente sua identidade de cristão, de bispo, de pastor impunha-lhe, com a segurança enraizada no centro da fé, a releitura de toda existência humana segundo uma lógica mais elementar e mais acolhedora.
O “peso absoluto” de cada ação responsável é um mistério ao qual estamos abertos pela fé no Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Isso muda radicalmente a perspectiva sobre o mundo moderno, permite que se leia nele, em contraluz, mesmo nas milhares de rugas e sombras, um impulso salutar e um esplendor deslumbrante.
Na sequência entre Rahner, Martini e Francisco, encontramos não só uma tradição jesuíta em diversas gerações, mas também uma progressiva reconciliação sapiencial com o significado mais profundo do mundo moderno, relido à luz de um Evangelho que sabe reconhecer os sujeitos e levar dentro do coração a vida dos homens e das mulheres. Para crer e ser credíveis hoje, não há 200 anos.
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Rahner, Martini e Francisco: uma pérola preciosa. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU