10 Agosto 2017
Grande parte das críticas ao Papa Francisco advém de pessoas que entraram na Igreja Católica de outra religião ou de religião nenhuma. Será que a bagagem que trouxeram distorceu sua hermenêutica, e eles estão com "neurose de conversão"?
O artigo é de Austen Ivereigh, jornalista, foi editor da revista britânica The Tablet e diretor de Assuntos Públicos do ex-arcebispo de Westminster, o cardeal Cormac Murphy-O'Connor, publicado por Crux, 09-08-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Os dias de cão do mês de agosto são um momento para fazer surgir aquele artigo que você quer escrever há tempos, mas vem adiando por toda a confusão que pode trazer. Mas, ainda assim, estou hesitando até agora sobre escrever a respeito da neurose de conversão e como ela condiciona as críticas ao Papa Francisco.
Por um lado, não quero parecer arrogante e condescendente com quem virou católico, como Dr. Stephen Bullivant, ao escrever First Things, disse que se sentiu a respeito de um comentário no blogue de Michael Sean Winters. "Estou tão cansado de ouvir de pessoas convertidas dizerem que o papa não é católico", queixou-se a voz da sabedoria do National Catholic Reporter.
Michael Winters estava reagindo a um debate no Al Jazeera entre Matthew Schmitz, jovem editor literário de First Things, e eu, a respeito do tema perene do pontificado de Francisco.
Schmitz, um jovem convertido, passou por uma segunda conversão em 2013. No início, ele recebeu bem a eleição de Francisco. Mas depois percebeu uma série de coisas.
Ele passou a perceber que Francisco estava construindo seu programa de reforma "às custas de crianças órfãs da cultura do divórcio deixada pela década de 60", tentando restaurar uma "versão desacreditada do catolicismo","construindo sua popularidade pelo descarte de tradições e fórmulas do ofício papal". Ah, e apresentando a noção protestante antinomista de que a verdade e a misericórdia são contrárias à lei.
(Aliás, "antinomismo" não é um termo para se esbanjar no Al-Jazeera, mas, em seguida, acusei Schmitz de querer trazer de volta a Sedia Gestatória, o que deve ter causado alguma irritação no Catar.)
Schmitz nunca disse que o papa não era católico, mas sua narrativa e a de muitos críticos irritados e vociferantes a respeito de Francisco levam a entender algo desse gênero, ou seja, que, como diz Ross Douthat, ele está conspirando para mudar a fé católica.
Para constar: a Igreja é missionária, existe para difundir o Evangelho e toca alguns que passam a querer ser católicos, o que é maravilhoso. As pessoas que direcionaram seus pensamentos e orações à fé são especiais e trazem ótimos dons com os quais foram derramados. Amamos as pessoas que se convertem.
Winters também não estava sendo esnobe, mas apenas apontando a "incongruência ", digamos assim, daqueles que entraram na Igreja Católica em uma onda de fervor Damasceno e depois anunciaram ruidosamente, quando o novo papa foi eleito, que ele não está fazendo o que eles acham que deve fazer.
E se olharmos os muitos retweets do meu retweet da reclamação de Winters, muitos compartilham de sua opinião de que esse posicionamento não é apenas incongruente, mas irritante, porque ao invés de considerar a possibilidade de que haja algo deficiente em sua própria visão da Igreja e da tradição, eles preferem acreditar que é o sucessor de São Pedro - escolhido pelo Espírito Santo em um conclave livre de interferências externas - que está falhando.
É bem possível que comentadores elegantes, como Ross Douthat e o chefe de Matthew, Rusty Reno (ambos ex-episcopais), ou, no extremo mais durão, escritores como Carl Orlson (ex-fundamentalista protestante) e John Henry Westen (ex-ateu), ou mesmo colegas ex-anglicanos, como Daniel Hitchens, do Catholic Herald, e Edward Pentin, do National Catholic Register em Roma, estejam todos corretos em suas leituras.
Mas é muito mais provável que a bagagem tenha distorcido sua hermenêutica e eles tenham neurose de conversão.
Neurose é uma reação extrema ou patológica a algo que simplesmente não corresponde à realidade. Alguém com cicatrizes de guerra, por exemplo, pode reagir a uma pergunta amigável de um policial jogando-se no chão e cobrindo os ouvidos. Você entende o porquê, mas é uma atitude neurótica.
Comecei a notar essa reação entre ex-anglicanos durante os sínodos de 2014 e 2015. Um amigo, padre católico, disse que já havia visto esses conflitos na Igreja da Inglaterra e que sempre terminavam mal. Disse que não havia se tornado membro da Igreja Católica para passar por tudo isso novamente. Estava profundamente incomodado com o que imaginava estar acontecendo, alimentado pelas previsões de Douthat de um cisma e o aviso obscuro de que o papa "só deve escapar do erro se a própria Igreja resistir a ele".
O que foi, obviamente, pura bobagem. O que realmente aconteceu, como era óbvio para quem não é neurótico, foi um desacordo vigoroso de boa-fé que acabou na votação por dois terços que fundamentou uma exortação apostólica. A Amoris Laetitia não acalmou esses desentendimentos para sempre - quando será que isso acontecerá? - mas forneceu uma base para que a Igreja avance, ainda como um só organismo, permanecendo fiel à doutrina. Essa é a diferença entre discordar com ou sem um magistério papal.
A neurose de conversão também faz escapar a areia movediça do relativismo, que projeta na Igreja a ideia de algo fixo, distante e imutável, congelado em alguma época antes do Concílio. Isso os deixa suscetíveis ao horror católico tradicionalista não apenas das reformas do Concílio, mas da própria ideia de mudança, como se isso pudesse ser evitado.
No entanto, a tradição da Igreja sempre foi constituída de novidades trazidas pelo Espírito Santo, revelando "novos aspectos da Revelação", como afirma Evangelii Gaudium. Francisco aborda o passado como todos os papas deveriam fazer: com discernimento, preservando o que deve ser protegido e removendo o que se tornou um obstáculo à evangelização.
A Igreja sempre exigiu a conversão perpétua para recuperar o que foi perdido - a centralidade de Cristo, a orientação do Espírito Santo e a proximidade da vida das pessoas comuns. Os católicos confiam no papa para discernir o que precisa mudar.
Claro, você não precisa se converter para criticar Francisco, e muitos que se converteram estão encantados com ele (é por isso que Bullivant estava errado ao pensar que Winters estava simplesmente implicando com eles). Mas não se trata de gostar ou não gostar do papa. Trata-se da posição em relação ao papado por parte de alguns.
Um amigo na Irlanda declarou: "Continuo vendo pessoas que parecem ter se convertido principalmente porque o que a Igreja ensina corresponde a suas perspectivas ideológicas, enquanto quando voltei foi porque pensei que a Igreja tinha autoridade histórica para ensinar mesmo o que parecia louco ou inconveniente".
A conversão é um ato de humildade. Envolve renunciar à soberania, à ideia de que eu sei mais. Envolve confiança - em Jesus Cristo, em Sua Igreja e no sucessor de São Pedro - mesmo quando eles desafiam meus preconceitos.
Não significa concordar com tudo o que o papa diz ou faz: essas reclamações não são novidade e, de qualquer forma, Francisco é o primeiro a pedir críticas.
Mas significa respeitar o ofício fundado por Jesus Cristo e confiar que o Espírito Santo guie o atual ocupante dessa posição. Isso, certamente, é uma grande parte de por que as pessoas se tornam católicas.
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Papa Francisco e o problema da conversão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU