17 Janeiro 2017
A reação furiosa dos críticos de Amoris Laetitia às diretrizes dos bispos malteses que estão implementando este documento sugere que, por trás dos debates e argumentos sobre a exortação apostólica de Francisco “A Alegria do Amor”, encontra-se uma disputa antiga – e ainda não resolvida – dentro da Igreja quanto ao papel da consciência.
O artigo é de Austen Ivereigh, publicado por Crux, 15-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
No cerne das disputas em torno de Amoris Laetitia, que se reacenderam neste fim de semana na sequência das diretrizes dos bispos malteses sobre a admissão dos fiéis divorciados e recasados aos sacramentos, não está a doutrina ou a lei, mas o papel da consciência.
Críticos e partidários da exortação detectaram corretamente uma mudança evidente no ensino magisterial com respeito à forma com a Igreja responde às chamadas situações “irregulares”, especialmente os divorciados e recasados no civil, para além da Familiaris Consortio de São João Paulo II, exortação publicada em 1981.
Uma diferença ainda mais substancial, e com razão, vem de um outro documento magisterial de João Paulo II, Veritatis Splendor, de 1993, que se opôs ao relativismo, e o uso incorreto da consciência para justificar uma moralidade subjetiva.
Os quatro cardeais que assinaram uma carta desafiando o Papa Francisco sobre Amoris Laetitia citam, especificamente, Veritatis, perguntando se este documento ainda sustenta que, conforme parafraseado por eles, a “consciência jamais está autorizada a legitimar exceções a normas morais absolutas que proíbem ações intrinsecamente más em virtude de seu objeto”.
Entender a natureza desta alteração que tanto preocupa os críticos de Amoris Laetitia é central para compreender a disputa.
Não se trata de uma mudança doutrinal. O prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Gerhard Müller, confirmou o que é óbvio a partir da própria Amoris: não existe dificuldade doutrinal nesta exortação, que reafirma o ensinamento constante da Igreja com respeito à indissolubilidade do matrimônio, dizendo no começo do Capítulo 8 que “ruptura do vínculo matrimonial ‘é contra a vontade de Deus’”.
Tampouco o documento alterou a lei. Amoris Laetitia não questiona o Cânone 915, que exige que não sejam admitidos à Comunhão aqueles que “obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”, nem o cânone seguinte, segundo o qual as pessoas cônscias do grave pecado não devem se apresentar para receber a Comunhão. O princípio nuclear da lei, de que os adúlteros não podem receber a Eucaristia, ainda permanece de pé.
Mas enquanto Amoris Laetitia é bastante clara sobre não querer criar normas e leis novas, ela também é bastante clara quanto a fomentar uma nova atitude.
O que este documento busca é uma atitude renovada por parte da Igreja para com aqueles em situações irregulares, uma atitude que vai de um foco primário na defesa da lei e da instituição para não se contaminar, em direção a um foco na necessidade de um acompanhamento e cura das vítimas do divórcio, especialmente aqueles e aquelas que buscam integrarem-se à Igreja.
Da mesma forma como a mulher pega em adultério, o pecador ainda é um pecador; mas Jesus também a vê como uma vítima em necessidade de ajuda e cura. Eis uma lógica bem diferente da dos Doutores da Lei cujo foco primário conduz, necessariamente, ao afastamento (e ao apedrejamento) dela.
Familiaris Consortio, escrito numa época em que o divórcio era legal, mas não ainda generalizado entre os católicos em muitos países, reflete esta lógica. Os católicos divorciados e que voltaram a se casar no civil são descritos como tendo “rompido o sinal da Aliança e da Fidelidade a Cristo” e de causarem danos à instituição da família.
Por serem os sacramentos da Eucaristia e do Matrimônio sinais da aliança de Cristo com a Igreja, aqueles cuja situação de vida objetivamente contradiz a Aliança colocam-se de fora dos sacramentos até que se arrependam voltando à primeira união.
Ou, se não puderem fazer isso porque seguir-se-ia um prejuízo maior (digamos, para os filhos de uma nova união), o preço do retorno delas é viver como irmão e irmã, conquanto que a comunidade eclesial não fique confusa nem seja escandalizada.
Amoris Laetitia, fruto de um Sínodo dos Bispos que passou um bom tempo examinando o mundo como ele é hoje, assume uma abordagem diferente. O divórcio não é mais um lobo rondando “lá fora”, do qual o rebanho deve ser defendido; ele está entre o povo, entre o rebanho. Mais que isso: a Igreja não conseguiu manter fora o lobo – os fiéis têm estado lamentavelmente despreparados para o colapso na cultura em geral do entendimento do matrimônio.
Amoris Laetitia olha para um rebanho ferido e busca meios de pôr curativos e restaurar a saúde das ovelhas. Este documento reconhece que, mesmo quando as pessoas ficam aquém, a graça permanece operante; e que nem todas as situações no mundo real do divórcio e do matrimônio (tal como o exemplo dado ao Crux pelo Pe. Paul Keller, o qual foi contestado pelo canonista Dr. Edward Peters) são casos evidentes de adultério.
A teologia em Familiaris Consortio acontece no nível sacramental e objetivo, enquanto Amoris Laetitia, refletindo o Sínodo, é essencialmente pastoral e pessoal. Em si, não há contradição entre os dois: o matrimônio é tanto uma realidade ontológica quanto uma vocação, um chamado à conversão. Mas há um desenvolvimento evidente, um desenvolvimento que tem implicações.
Muitas vezes Amoris refere-se, assim como Familiaris, ao matrimônio como um sinal da aliança de Cristo com a Igreja, mas diz ser esta uma “analogia imperfeita” porque dois seres humanos pecadores não podem reproduzir perfeitamente a aliança de Cristo. Um casal encontra-se (é o que se espera) numa caminhada – com a ajuda da Graça – em direção à emulação perfeita da aliança, mas o sinal e a realidade não são ainda um só.
O perigo de não entender que a aliança Cristo-Igreja é uma “analogia imperfeita” é que ela leva logicamente a uma posição rigorista. Aqueles que se puseram do lado de fora do matrimônio estão de fora da aliança do amor de Cristo – não estão em Comunhão e são, pois, barrados na Eucaristia.
Mas trata-se de uma analogia imperfeita, que a simples divisão entre aqueles de dentro e aqueles de fora não mais se sustenta. Os que violaram a aliança do matrimônio não estão de fora do amor de Cristo, que se estende a todos os que não conseguiram alcançá-lo.
Amoris Laetitia leva a sério esta parte da doutrina católica (a misericórdia divina inclui pecadores), incorporando-a à práxis da Igreja. Assim, a lógica de Familiaris Consortio é que os divorciados e recasados são pecadores que devem se arrepender de seus modos a fim de serem readmitidos ao aprisco, enquanto a lógica de Amoris é a de que a Igreja deve estender-lhes a mão e buscar meios de trazê-los de volta via acompanhamento e discernimento.
Mas Amoris Laetitia deixa claro que isso não tem a ver apenas com aplicar a lei ao povo. Deve-se ir além da lei, adentrar o reino da consciência. Este documento convida os pastores a “formar” consciências, não “substituí-las”. Em outras palavras, as consciências devem ser respeitadas como tribunais onde a lei, a doutrina e a situação individual da vida real podem ser pensadas juntas e examinadas.
Eis é a mudança real – esta é a parte que deixa inquietos muitos na Igreja. Embora Familiaris Consortio reconheça que há claras diferenças morais entre, por exemplo, aquele que abandonou o cônjuge e aquele que fora abandonado, e peça que se abra espaço para estas pessoas na vida paroquial, segue-se também um grande “porém”.
Este “porém” reflete a lógica dos Doutores da Lei. Porque o estado dessas pessoas “objetivamente contradizia” a aliança de Cristo, e porque se fossem admitidas aos sacramentos “os fiéis seriam conduzidos ao erro e à confusão”, somente se os divorciados e recasados vivessem juntos como irmão e irmã é que poderiam receber a Eucaristia.
Em Familiaris, há um pequeno papel para a consciência, exceto como um meio para tentar entender e obedecer a lei como ela é aplicada universalmente. Essa é a abordagem que o Cardeal Raymond Burke e Peters defendem com um ensinamento católico imutável.
A objeção de Peter a Keller, publicada no sítio Crux, e agora a sua objeção às diretrizes dos bispos malteses (descritas por ele como um “desastre”) é que ambos fizeram que a consciência individual superasse a lei, assim repudiando os cânones 915 e 916. Keller e os bispos de Malta, segundo Peters, pressupõem que “a avaliação de um católico individual sobre a sua própria consciência é o único critério que governa a decisão de um ministro de dar a Sagrada Comunhão a membro entre os fiéis”.
Isso, porém, não é o que Amoris Laetitia ensina sobre o uso da consciência. Amoris resgata um entendimento católico tradicional da consciência expresso no Concílio Vaticano II em seus documentos Lumen Gentium e Gaudium et Spes. Muitos consideraram os argumentos de João Paulo II contra o relativismo em Veritatis como uma redução deste entendimento.
Da mesma forma como o Vaticano II e a tradição católica em geral, Amoris retrata a consciência como um santuário interno e o centro de uma pessoa, onde se está a sós com Deus, enfrentando o juízo d’Ele. A consciência não é uma saída para fugir da responsabilidade, mas para assumi-la. Não é “qualquer coisa que eu decidir está certo”. Pelo contrário, é: “a brincadeira acaba aqui”.
Eis o motivo pelo qual, no processo de discernimento detalhado em Amoris, a consciência deve ser formada e informada, e uma decisão final deve ser alcançada em conjunto com um pastor que conhece a lei e a doutrina da Igreja. É um processo que acontece não “fora” da lei, mas “além” dela.
O coautor das diretrizes dos bispos malteses, Dom Charles Scicluna, dificilmente pode ser considerado um progressista ou ‘antinomiano’. Conhecido como o reformador do Papa Bento no tocante à lei contra o abuso de menores, Scicluna é um dos principais canonistas da Igreja. Sua tese [doutoral] é sobre o direito canônico do matrimônio – orientada por ninguém menos que Burke.
No entanto, Scicluna e seus pastores companheiros compreenderam a antiga analogia da consciência restaurada em Amoris Laetitia. No importante parágrafo 10 que tem causado ira entre alguns, os bispos enumeram uma série de “ses” [se isso, então aquilo] que quase garantem (pelo menos, humanamente falando) que Deus falou diretamente a alguém nas profundezas da alma.
“Se”, no final do discernimento, “se” este discernimento tiver sido feito – como pede Amoris – com humildade, discrição e amor pela Igreja e seu ensino, “se” alguém divorciado e recasado no civil buscou com sinceridade, com uma consciência informada, pela vontade de Deus, e possui o desejo de responder mais perfeitamente a ele; e “se”, no final disso tudo, a pessoa está “em paz com Deus”, então “ela não pode ser excluída” dos sacramentos da Reconciliação e Eucaristia.
Peters fala da decisão do ministro em dar (ou não) os sacramentos; ele está policiando a fronteira. Os bispos malteses falam do ministro como sendo incapaz de reter os sacramentos a alguém que alcançou a paz via decisão chegada em consciência verdadeira como uma consequência do discernimento autêntico.
Deus vai além da lei (não contra ela), e fala diretamente ao coração humano – e um ministro de Deus, tendo acompanhado e “assegurado” o processo, só pode respeitar isso.
É fácil entender por que este debate levanta suspeitas. Em uma sociedade que exalta a consciência individual como uma espécie de tribunal subjetivo, impermeável a ideias externas tais como a lei e a verdade, o que se disse aqui pode soar com uma rendição ao subjetivismo. Mas na verdade trata-se de algo totalmente diverso: é o jeito católico de aplicar a lei de maneira que respeite a liberdade divina de agir.
Ironicamente, isso torna muito mais difícil – na verdade, se Amoris for lida adequadamente, torna-se impossível – a uma pessoa divorciada e recasada simplesmente se decidir, por si própria, sem o discernimento com os pastores, que ela deveria receber a Comunhão.
Familiaris Consortio diz: esta é a lei, aceite-a ou rejeite-a (como muitos têm feito). Amoris Laetitia diz: essa é a lei e o ensino da Igreja; permita-nos ajudá-lo a aplicá-la, em seu caso individual, sub specie aeternitatis e com o conhecimento pleno de tudo o que a Igreja ensina.
Em suma, a disputa em torno do Capítulo 8 de Amoris não é entre pastores que querem ignorar a lei versus os defensores que insistem nela. Trata-se de um debate teológico a respeito da maneira como a lei deve ser aplicada e que lugar a consciência ocupa.
O melhor argumento dos detratores é que, em uma sociedade individualista, será impossível evitar o uso impróprio da consciência: o emprego tradicional da consciência à qual Amoris apela deve ser resistido por causa das exigências da época.
O melhor argumento dos apoiadores, por outro lado, é que o emprego da consciência à qual Amoris convida a Igreja pertence a um ensino católico perene, um ensino que precisa se manter independentemente da época.
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O argumento em “Amoris Laetitia” sobre a consciência é antigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU