10 Dezembro 2016
“A recepção da Amoris laetitia, portanto, implica a superação de um conceito estático de tradição: em outras palavras, daquela ‘heresia moderna’ que se chama tradicionalismo. A Amoris laetitia realiza um ato de tradução da tradição: em uma forma tradicional e abertamente não tradicionalista.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 05-12-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nos últimos dias, duas intervenções diferentes, mas ambas muito significativas, permitiram compreender melhor a fase da “recepção” da Amoris laetitia. Por um lado, lemos uma entrevista em que o cardeal prefeito G. L. Müller (que a Radio Vaticana reporta aqui [em italiano]) expressa algumas ideias sobre a Amoris laetitia e sobre as dúvidas dos quatro cardeais, sobre as quais é útil falar com uma breve reflexão de esclarecimento.
Por outro lado, um grande teólogo como Pietro Cantoni escreveu um precioso comentário sobre a Amoris laetitia – e, em especial, sobre o capítulo VIII (aqui [em italiano]) – que lança luz sobre os espaços de recepção iluminada e clarividente que esperam pela pastoral familiar e eclesial dos próximos anos. Tento apresentar, em primeiro lugar, a posição expressada pelo cardeal Müller e também responder, através dela, o texto do Prof. Cantoni.
Antes de chegar à apresentação dessas posições, porém, quero antecipar uma bela conclusão, que tiro logo do lúcido texto de Cantoni. Ele observa, com perspicácia, concluindo o seu raciocínio:
“O contrarrevolucionário deve estar atento para não cair naquela que pode ser definida como a sua ‘doença infantil’: o extremismo. Não somos mais contrarrevolucionário do que outros porque transformamos tudo em dogma ou porque somos favoráveis a um rigorismo cada vez mais radical. Os dogmas fundamentais da nossa fé são os 12 artigos do Credo. Os mandamentos são dez, não 11 ou 12, nem mesmo nove. O entusiasmo do contrarrevolucionário está na sua disponibilidade à luta pela Verdade e pela santidade. O seu ‘exagero’ está do lado da fé, da esperança e do amor, para os quais não existe um ‘demais’. Nem mesmo o minimalismo na leitura do magistério deve conquistá-lo.”
Como veremos, justamente nesse “exagero contrarrevolucionário” – ou de resistência a toda reforma – está um aspecto bastante delicado da recepção da Amoris laetitia.
Um site bem informado relata com precisão a expressão usada pelo cardeal prefeito diante não tanto da carta dos quatro cardeais – sobre as quais, por si só, ele não se pronuncia – mas sim do seu conteúdo:
“O purpurado respondeu que ‘esse documento [Amoris laetitia] não deve ser interpretado de modo a indicar que as declarações anteriores dos papas e da Congregação da Doutrina da Fé não são mais válidas’. Depois, de modo explícito, o cardeal se referiu à resposta oficial que a Doutrina da Fé deu, em 1994, a três bispos alemães (Kasper, Lehman e Saier) que, em uma carta pastoral, anunciavam a permissão ao acesso à Eucaristia para os divorciados recasados. Essa carta, assinada pelo então prefeito cardeal Joseph Ratzinger, estigmatizava claramente o avanço dos três bispos.”
Uma primeira observação surge imediatamente: é notável que, diante do texto da Amoris laetitia (2016), o prefeito cita uma resposta oficial de 1994, que, no entanto, não podia levar em conta a Amoris laetitia, mas apenas o texto da Familiaris consortio. Esse lapso temporal parece ser muito mais significativo do que parece.
A surpresa que surge diante da posição expressada por Müller é dupla:
- por um lado, ele fala como se houvesse uma regra que previsse que um documento magisterial, expressão do Sínodo dos Bispos e assumido por um papa nos termos de uma exortação apostólica, pode falar apenas dentro do espaço concedido pelos documentos anteriores. Sobre esse ponto, Müller talvez, deveria ter duvidado antes de fazer essa declaração. Os quatro cardeais duvidam sobre aquilo que está claro, mas um quinto cardeal não duvida sobre aquilo que, de fato, não está claro. Ou, melhor, parece-me francamente infundado defender que uma exortação apostólica está vinculada a uma exortação apostólica anterior. Assim como a Familiaris consortio inovou em relação à disciplina anterior, assim também a Amoris laetitia pode inovar em relação à disciplina da Familiaris consortio. Isso é dito não só pela tradição magisterial da Igreja, mas também pela simples lógica comum.
- por outro lado, há aqui uma condição particularmente delicada do prefeito, que preside a Congregação que deveria vigiar para que as dúvidas infundadas sejam superadas, enquanto as dúvidas fundadas sejam reconhecidas e levadas em consideração. É surpreendente que o cardeal Müller enuncie um princípio totalmente arbitrário, segundo o qual uma nova exortação apostólica seria estrutural e necessariamente obrigada a manter como válidas as disciplinas do magistério anterior.
No entanto, a surpresa não diminui se considerarmos que, para resolver o embaraço, volta-se para 1994. É preciso reconhecer que a posição expressada pela Congregação em 1994 foi inevitavelmente superada justamente pela evolução da disciplina trazida pela Amoris laetitia. O princípio expressado pelo cardeal prefeito, assumido na sua rigidez, anularia toda mudança do magistério eclesial e não conseguiria explicar não tanto a Amoris laetitia, mas sim toda a evolução da disciplina matrimonial, do século IV em diante. Ele parece responder a uma “estratégia de imunização da autoridade”, que se espalhou no corpo eclesial a partir dos anos 1980 e que é funcional para uma “conservação extrema” no que diz respeito às reivindicações de reforma que o Concílio Vaticano II introduzira no corpo eclesial. Para receber a reforma é preciso reconhecer que se tem o poder para isso.
Se a Igreja se despoja de toda autoridade, ela fica bloqueada nas disciplinas adquiridas do passado, sem qualquer possibilidade de mudança. Aquilo que foi utilizado para inúmeros outros casos anteriores (sobre o ministério diaconal, sobre o ministério feminino, sobre a unção dos enfermos, sobre a reforma do missal, sobre a tradução em língua vulgar...), hoje também poderia ser aplicado à Amoris laetitia. Se todo novo documento está vinculado à validade indiscutível dos anteriores, a Igreja não tem história. Se há uma “história da salvação”, é porque o desenvolvimento histórico é capaz de elaborar releituras da tradição que podem encontrar novos caminhos de implementação do Evangelho que reduzem ou superam a validade de caminhos anteriores. Se os bispos pré-tridentinos muitas vezes não eram residentes, e o Concílio de Trento exigiu a sua residência nas dioceses das quais eram titulares, isso não aconteceu com a preocupação de que continuasse válido aquilo que antes era observado e realizado...
Nos mesmos dias em que lemos essa entrevista, a surpresa que sentimos ao ler os escritos e os ditos cardinalícios foi mitigada graças à “fides quaerens intellectum” expressada com particular lucidez pelo teólogo Pietro Cantoni.
Ao remeter à leitura de todo o seu texto, que é documento de pacata e exigente reflexão teológica, gostaria de sublinhar apenas alguns de seus aspectos decisivos:
- Alguma coisa mudou, e é necessária uma abordagem “crítica” à tradição:
“Reformar significa mudar. Não mudar tudo, passando de uma coisa a outra totalmente diferente, porque isso seria uma ruptura, mas certamente desenvolvendo. ‘É precisamente nesse conjunto de continuidade e descontinuidade em níveis diversos que consiste a natureza da verdadeira reforma’. Quando há uma reforma, há um ‘conjunto de continuidade e descontinuidade’.”
- Depois de identificar na “confissão” o lugar da solução “nova” e depois de revisar os limites das soluções clássicas (nulidade, abstinência, morte moral), Cantoni escreve:
“O papa, nesse ponto, abre um novo caminho: o de se abster de considerar como obrigação taxativa a separação da pessoa com quem se compartilha uma segunda união, porque poderia coincidir concretamente com a tentativa de resolver um mal com outro.”
- A isso, ele acrescenta, com muita clareza:
“Uma pessoa ligada a um casamento canonicamente válido que tenha contraído uma nova união na qual teve filhos. Suponhamos que a ruptura anterior seja culpada: desse pecado, ela pode ser perdoada. Agora ela permanece na união irregular pelo bem dos filhos. Esse fato não é subjetivamente pecaminoso, continua-o apenas objetivamente. Embora a questão seja debatida entre teólogos e canonistas, pode-se defender – era a posição do grande teólogo Melchior Cano (1509-1560) – que um casamento puramente civil contraído entre batizados, se, por um lado, não coincide absolutamente com o sacramento, por outro, não é um simples concubinato. Aconselhar um divorciado recasado, que já tem sobre a sua consciência a ruptura de uma união, que desfaça também a nova união irregular ou que a viva ‘como irmão e irmã’ nem sempre se revela como um bom conselho.”
- Com ainda maior clareza, analisando a posição sobre o matrimônio do Concílio de Trento, Cantoni afirma:
“O fato de o sacramento do matrimônio ser indissolúvel é uma verdade de fé. O fato de, concretamente, não poderem existir situações em que uma nova união não possa ser tolerada não o é.”
- Depois de considerar tanto o nível da autoridade quanto o nível da “missionariedade” da exortação, ele conclui:
“O contrarrevolucionário deve estar atento para não cair naquela que pode ser definida como a sua ‘doença infantil’: o extremismo. Não somos mais contrarrevolucionário do que outros porque transformamos tudo em dogma ou porque somos favoráveis a um rigorismo cada vez mais radical. Os dogmas fundamentais da nossa fé são os 12 artigos do Credo. Os mandamentos são dez, não 11 ou 12, nem mesmo nove.”
As sábias palavras desse teólogo soam muito distante do rígido “extremismo contrarrevolucionário”, ao qual parece inclinar não só a carta dos quatro cardeais, mas também uma parte da entrevista do cardeal Müller.
Gostaria de concluir com uma frase que nestes dias circulou na web e que é particularmente adequada para o complexo processo de recepção da Amoris laetitia. Ela interpreta a “tradição” com a imagem de uma lâmpada e diz assim:
“Tradition is a lantern. The fool will hold on to it and the clever will let it lead the way” (G. B. Shaw). A tradição é uma lanterna. O tolo se agarrará a ela, e o sábio deixará que ela guie o caminho.
Uma ideia estática de tradição é o problema subjacente tanto à carta dos quatro cardeais quanto ao comentário do cardeal prefeito. A dinâmica introduzida pelo Papa Francisco – não sozinho, mas com base no amplo debate sinodal – é o desbloqueio de um enrijecimento recente e nada clássico. Ele remonta à reação de desconfiança dirigida primeiro ao mundo tardo-moderno – entre os séculos XIX e XX – e depois ao Concílio Vaticano II. A recepção da Amoris laetitia, portanto, implica a superação de um conceito estático de tradição: em outras palavras, daquela “heresia moderna” que se chama tradicionalismo. A Amoris laetitia realiza um ato de tradução da tradição: em uma forma tradicional e abertamente não tradicionalista.
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"Amoris laetitia": as dúvidas dos cardeais e a pretensão do prefeito. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU