12 Abril 2016
"Os primeiros quatro capítulos apresentam visões variantes porém complementares do matrimônio. O matrimônio, segundo o papa, é um dom de Deus e que, portanto, precisa ser guardado com cuidado", escreve Carl E. Olson, editor do Catholic World Report e coautor de “Called to be Children of God: The Catholic Theology of Human Deification”, livro publicado pela Ignatius Press, em artigo publicado por Crux, 10-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Amoris Laetitia, a exortação apostólica mais esperada da história, é como um romance que começa inovando no estilo, com uma prosa diferenciada e, até mesmo, lírica. O enredo é profundo; os personagens desenvolvem-se; constrói-se uma tensão. Os temas costuram-se juntos como subenredos que concorrem para o fim desconhecido. E então... um choque. O texto começa a se enfraquecer e seções inteiras deixam a desejar.
Há uma tentativa de arrumação no final para que ele acabe bem, porém o dano já foi feito.
Muitos, tenho certeza, irão achar o contrário. Claro, talvez estejamos falando sobre o texto papal mais longo de todos os tempos, com 60 mil palavras distribuídas em mais de 250 páginas. Há muita coisa a discutir e debater.
Dito isso, não sou daqueles que esperam, como o Cardeal Walter Kasper, uma “reforma que vai fazer a Igreja virar a página após 1700 anos”, tampouco sou daqueles que veem heresia e apostasia em cada palavra do Santo Padre. As minhas críticas ocasionais a Francisco se centram mais nos seus excessos retóricos e em sua abordagem hiperbólica a assuntos variados.
Eu não acho que Francisco venha investindo muito capital papal em fazer certas mudanças – pastorais, sem dúvida – aos que se encontram em matrimônios irregulares (ou aquilo que a exortação chama de situações “irregulares”, entre aspas, como se, por algum motivo, não fossem mesmo irregulares).
O investimento fica evidente nesse texto, que é onde a história se enfraquece.
Mas, primeiro, falemos sobre a prosa lírica. Um bom exemplo disso encontra-se em uma descrição da família ao redor da mesa, no centro da qual está “o casal formado pelo pai e a mãe com toda a sua história de amor. Neles se realiza aquele desígnio primordial que o próprio Cristo evoca com decisão: ‘Não lestes que o Criador, desde o princípio, fê-los homem e mulher?’ (Mt 19,4)”.
Essa reflexão de abertura de Francisco sobre os fundamentos teológicos da família e do matrimônio é bonita, profunda e desafiadora. Eu fico especialmente emocionado com a maneira como ele, baseando-se nas Escrituras e no pensamento de João Paulo II, enfatiza que o “casal que ama e gera a vida é a verdadeira ‘escultura’ viva (não a de pedra ou de ouro, que o Decálogo proíbe), capaz de manifestar Deus criador e salvador”.
Francisco destaca as origens trinitárias da rica visão do matrimônio que a Igreja tem, observando que “a relação fecunda do casal torna-se uma imagem para descobrir e descrever o mistério de Deus, fundamental na visão cristã da Trindade que, em Deus, contempla o Pai, o Filho e o Espírito de amor”.
Os primeiros quatro capítulos apresentam visões variantes porém complementares do matrimônio. O matrimônio, segundo o papa, é um dom de Deus e que, portanto, precisa ser guardado com cuidado. Ele não é uma “convenção social”, um “rito vazio” ou um “mero sinal externo dum compromisso”. Pelo contrário, trata-se de um sacramento para a “santificação e a salvação dos esposos”, uma representação do amor sacrificial de Cristo pela Igreja.
O matrimônio, diz Francisco, é ordenado em direção ao amor conjugal; é uma participação na graça, na vida de Deus, onde crescemos por meio do poder do Espírito Santo. Há uma seção maravilhosa a respeito da relação entre as pessoas chamadas à virgindade e aquelas com uma vocação voltada ao matrimônio.
Infelizmente, os capítulos sobre “Algumas perspectivas pastorais” (Cap. VI) e sobre o “Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade” (Cap. VIII) são em geral problemáticos, até mesmo contraditórios.
Muitos dos fiéis divorciados e que entraram numa “nova união”, diz Francisco, têm “fidelidade comprovada, dedicação generosa, compromisso cristão, consciência da irregularidade da sua situação e grande dificuldade para voltar atrás sem sentir, em consciência, que se cairia em novas culpas”.
Essa curiosa declaração é acompanhada por uma nota rodapé que lança uma dúvida direta sobre a possibilidade realista de tais casais se absterem de relações sexuais – ao fazer referência a uma massagem de Gaudium et Spes que não tem absolutamente nada a ver com os divorciados e recasados no civil. Outras notas de pé de página são um enigma.
Há chamados constantes ao “discernimento” e referência a impedimentos e problemas que atenuam a responsabilidade e a culpabilidade, ao ponto de se perguntar sobre se alguma pessoa casada alguma vez cometeu, de fato, algum pecado.
Sim, as pessoas casadas enfrentam graves desafios, mas elas são também agentes morais que possuem o livre arbítrio. Assim como o livre arbítrio é essencial para os romances de qualidade, ele também faz parte integrante no drama da história da salvação, e “cada matrimônio é”, conforme escreve Francisco, “uma ‘história de salvação’”.
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Exortação papal sobre a família começa forte, mas depois enfraquece - Instituto Humanitas Unisinos - IHU