03 Julho 2017
Embora George Pell seja o primeiro cardeal e autoridade vaticana a enfrentar acusações criminais relacionadas a abuso sexual, dificilmente ele é o primeiro bispo católico a ser processado com base em alegações deste tipo, e também não é o primeiro a ser indiciado por crimes. Uma revisão de vários casos recentes nos permite comparar e contrastar a situação de Pell, incluindo o fato de que ele não está se utilizando da imunidade.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 30-06-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Dado que o cardeal australiano George Pell, prefeito da Secretaria para a Economia e membro do Conselho dos Cardeais assessores do Papa Francisco, fora acusado criminalmente por abuso sexual em seu país de origem, a pergunta que naturalmente se impõe é sobre se uma tal situação é inédita.
O que não deve surpreender diante de uma instituição com uma história tão longa como a Igreja Católica, a resposta é “sim e não”.
Na verdade, nenhum cardeal, e nenhum funcionário do Vaticano, foi alguma vez indiciado por abuso sexual. Por outro lado, várias figuras em ambas as categorias já encararam acusações criminais por uma variedade de delitos, e outros bispos ao redor do mundo já foram acusados de abusos sexuais, o que permite comparar e contrastar o caso deles com o drama vivido por Pell.
Em 1982, o arcebispo americano Paul Marcinkus, presidente do Banco Vaticano na época, esteve implicado em um escândalo financeiro enorme que levou à ruína de um banco italiano. As autoridades italianas emitiram uma acusação formal contra ele, forçando-o a permanecer no Vaticano até que a Suprema Corte do país decidisse, em 1988, que, tendo um passaporte da Santa Sé, ele desfrutava de imunidade.
Negando qualquer responsabilidade jurídica, porém reconhecendo um “envolvimento moral”, o Vaticano teria pago 240 milhões de dólares a credores do falido Banco Ambrosiano, muito embora recentemente reconheceu-se que este número estava na ordem dos 406 milhões.
Na prática, Marcinkus – “prisioneiro do Vaticano” até que se forjasse um acordo para a sua liberdade – não chegou a se apresentar diante de um tribunal. Morreu em 2006, nos EUA.
Nos últimos dias, a polícia australiana registrou queixas de abuso sexual contra George Pell, prelado escolhido a dedo por Francisco para conduzir as reformas financeiras da Santa Sé. Em vez de lançar mão da imunidade, como fez Marcinkus, Pell anunciou, em coletiva de imprensa em Roma, que viajará de volta à Austrália assim que possível.
Insistindo na inocência, ele falou que estava ansioso com a chegada da audiência, onde terá a oportunidade de “limpar o meu nome”.
Na história católica recente, dois cardeais não só foram indiciados como também condenados. Todavia, as acusações a eles imputadas eram relativamente menores em comparação.
Por um lado, há o cardeal italiano Roberto Tucci, quem, embora ainda servindo como padre jesuíta, foi o responsável por planejar a maioria das viagens internacionais de João Paulo II. Em 2005, enquanto supervisionava a Rádio Vaticano, Tucci foi condenado pelos tribunais italianos de ser o responsável por poluir o meio ambiente com ondas eletromagnéticas a partir de uma torre de transmissão.
Tecnicamente, as acusações eram por “lançamento perigoso de objetos”, numa lei italiana que remonta à Idade Média, quando era ilegal jogar na rua lixo pela janela.
Junto com o Pe. Pasquale Borgomeo, diretor geral da rádio, Tucci foi sentenciado a 10 dias de prisão, ainda que as sentenças contra os dois jesuítas acabaram automaticamente suspensas. A condenação foi revertida após apelação em 2007.
Um outro cardeal condenado foi Michele Giordano, na época cardeal-arcebispo de Nápoles, indiciado pelos procuradores italianos por fraude.
Giordano passou por um processo criminal completo, embora jamais tenha colocado os pés em um tribunal. O caso teve relação com uma fraude imobiliária orquestrada por seu irmão. O caso gerou tensões entre a Igreja e o Estado, quando a polícia insistiu em analisar documentos sigilosos da Arquidiocese de Nápoles, além dos registros financeiros que Giordano fornecera.
Neste caso, Giordano foi absolvido em 2000. Dois anos depois, em 2002, ele se viu enfrentando outras acusações em um outro escândalo imobiliário. Dessa vez, foi considerado culpado e condenado a quatro meses de prisão, além de uma fiança, com o veredito sendo suspenso após pedido de recurso.
Giordano morreu em dezembro de 2010.
Nesse mesmo ano, o Cardeal Crescenzio Sepe, sucessor de Giordano em Nápoles, foi visado pelos procuradores italianos por sua participação em um suposto caso de corrupção em contratos de obras públicas quando era prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos, de 2001 a 2006.
A investigação de Sepe se deu em decorrência de um escândalo mais amplo de corrupção na Itália, conhecido como investigação “Grandes Obras”. Segundo as acusações feitas, Sepe juntou-se a uma série de políticos e empresários numa suposta rede de propinas em projetos públicos importantes, como o Ano Jubilar de 2000 e o encontro recente do G-8 em L’Aquila.
Sepe negou qualquer irregularidade. Tecnicamente a investigação ainda está em curso, embora analistas italianos digam que são muito pequenas as chances de o caso contra Sepe ser reaberto.
Na época, tanto o Vaticano quanto Sepe prometeram cooperar com a investigação, e não invocar a imunidade diplomática, ato que, diante do problema mais amplo relacionado à responsabilização dos bispos, foi considerado surpreendente e um passo positivo dado à frente.
Muito embora ele seja o único cardeal até hoje a enfrentar acusações criminais por abuso sexual, dificilmente Pell seja o primeiro bispo católico a se ver diante de um tribunal em decorrência de escândalos sexuais.
O bispo francês Pierre Pican, da Diocese de Bayeux-Lisieux, foi processado, condenado e sentenciado a três meses de prisão em 2001 por ter ocultado queixas contra outras pessoas, ainda que esta sentença tenha sido suspensa. No tribunal, ele falou que ficou sabendo dos abusos através de conversas pessoais com o padre envolvido, fato que considerava sigiloso.
Em 2010, o caso voltou a ser motivo de manchetes, quando surgiu a notícia de que um ex-funcionário do Vaticano, o cardeal colombiano Darío Castrillón Hoyos, da Congregação para o Clero, escrevera uma carta a Pican parabenizando-o por se recusar a denunciar um de seus padres.
Além dos erros em relatar casos de abuso sexual clerical, os bispos já foram processados por crimes sexuais cometidos por eles próprios. Por exemplo, Dom Anthony Apuron, de 70 anos, da Arquidiocese de Agana, no Guam, foi acusado de molestar pelo menos cinco coroinhas nas décadas de 1960 e 1970.
Ele negou as acusações, não foi indiciado e se recusou a afastar-se do cargo ocupado, até que se viu forçado pelo Vaticano a sair. O seu processo ainda está em curso.
Outros tipos de escândalos também ocasionaram acusações criminais contra bispos em várias partes do mundo.
O bispo americano Thomas O’Brien, da Diocese de Phoenix, por exemplo, foi acusado de fugir do local de um acidente em 2013, caso em que um pedestre atropelado por O’Brien morreu. O prelado foi considerado culpado depois de um julgamento de quatro semanas em 2004 e sentenciado a quatro anos em liberdade condicional, além de 1.000 horas de serviço comunitário.
Dom Raymond Lahey, ex-bispo de da Diocese de Antigonish, no Canadá, declarou-se culpado em 2009 por posse de pornografia infantil. Em 2009, policiais da Agência de Serviço Fronteiriço do Canadá confiscaram o seu laptop, que supostamente continha imagens de pornografia infantil, enquanto Lahey entrava no país depois de uma viagem ao exterior.
Foi suspenso de seus deveres sacerdotais e sacramentais, e acabou laicizado em 2012.
Pell foi convocado a comparecer diante do juiz na Austrália em 18 de julho. O cardeal prometeu voar tão logo for possível, assim que tiver autorização de seus médicos. Vale notar que é possível que Pell apareça no tribunal e o juiz decida não haver provas suficientes para sustentar as acusações. Se isso acontecer, o julgamento será dispensado antes mesmo de, realmente, começar.
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A situação do Cardeal Pell pode ser única, mas há vários paralelos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU