A leitura que a Igreja propõe neste domingo é o Evangelho de Jesus Cristo segundo João 20,19-31, que corresponde ao 2° Domingo de Páscoa, ciclo B do Ano Litúrgico. O comentário é elaborado por Ana Maria Casarotti, Missionária de Cristo Ressuscitado.
Era o primeiro dia da semana. Ao anoitecer desse dia, estando fechadas as portas do lugar onde se achavam os discípulos por medo das autoridades dos judeus, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: «A paz esteja com vocês.» Dizendo isso, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os discípulos ficaram contentes por ver o Senhor. Jesus disse de novo para eles: «A paz esteja com vocês. Assim como o Pai me enviou, eu também envio vocês.» Tendo falado isso, Jesus soprou sobre eles, dizendo: «Recebam o Espírito Santo. Os pecados daqueles que vocês perdoarem, serão perdoados. Os pecados daqueles que vocês não perdoarem, não serão perdoados.»
Tomé, chamado Gêmeo, que era um dos Doze, não estava com eles quando Jesus veio. Os outros discípulos disseram para ele: «Nós vimos o Senhor.» Tomé disse: «Se eu não vir a marca dos pregos nas mãos de Jesus, se eu não colocar o meu dedo na marca dos pregos, e se eu não colocar a minha mão no lado dele, eu não acreditarei.»
Uma semana depois, os discípulos estavam reunidos de novo. Dessa vez, Tomé estava com eles. Estando fechadas as portas, Jesus entrou. Ficou no meio deles e disse: «A paz esteja com vocês. » Depois disse a Tomé: «Estenda aqui o seu dedo e veja as minhas mãos. Estenda a sua mão e toque o meu lado. Não seja incrédulo, mas tenha fé.» Tomé respondeu a Jesus: «Meu Senhor e meu Deus!» Jesus disse: «Você acreditou porque viu? Felizes os que acreditaram sem ter visto.»
Jesus realizou diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Estes sinais foram escritos para que vocês acreditem que Jesus é o Messias, o Filho de Deus. E para que, acreditando, vocês tenham a vida em seu nome.
No domingo de Páscoa, o texto nos situava antes do amanhecer "quando ainda estava escuro". Este domingo, que culmina a oitava da Páscoa, nos coloca no primeiro dia da semana, mas ao anoitecer. O relato disse que os discípulos estão em um determinado lugar com as portas fechadas porque tinham medo “das autoridades judaicas". O medo é um sentimento que permeia as histórias da Páscoa. Tudo o que eles haviam vivenciado com Jesus, suas últimas palavras, sua capacidade de servir e, portanto, cada um dos momentos que haviam compartilhado com ele estaria apinhado na sua memória, com sentimentos diferentes em cada um deles. E podemos pensar que Maria também estava lá, junto com toda a comunidade que, em silêncio, meditava mais uma vez sobre as experiências, as palavras e as atitudes de Jesus em seus últimos dias.
Apesar de sua própria experiência de correr para o sepulcro e não ver o corpo de Jesus, apesar das palavras de Maria Madalena quando ela compartilha sua experiência de ver o Senhor, os discípulos ainda estão trancados no medo. Eles ainda estão no escuro porque o medo é forte, mas estão juntos. Dessa forma, aprendemos que, para a comunidade que deseja seguir Jesus, acreditar que ele está vivo e que está em nosso meio não é algo mágico, não é algo que acontece em um instante, mas é progressivo, é uma adesão que se constrói ao longo da vida.
Jesus aparece no meio deles e lhes dá paz. Jesus traz algo que é a coisa mais valiosa que ele pode dar a esse grupo que está trancado, com as portas fechadas, porque têm medo do que pode acontecer com eles. Ele lhes dá paz! Uma paz que somente Ele pode dar, uma nova paz que nasce da morte e da ressurreição e que cura e conforta suas feridas. Uma paz que conforta porque é gestada na cruz e na confiança em Deus. Não é a paz dos cemitérios, onde a morte se esconde sob as duras pedras de concreto. Não é uma paz que ignora a realidade ou foge dela. Pelo contrário, é uma paz que tem suas raízes na cruz e, a partir dela, tem o poder de curar feridas, de gerar esperança onde a noite parece cobrir o horizonte.
A paz que Jesus nos dá neste domingo é uma paz em que a dor, as feridas, as chagas e a vida nova se unem de uma forma inexplicável. É a boa notícia que somente o Jesus ressuscitado pode nos dar! A paz é comumente associada à serenidade, quietude, silêncio, ausência de barulho... e assim aparece em algumas definições: "definida em um sentido positivo, a paz é um estado em um nível social ou pessoal, no qual todas as partes de uma unidade estão em equilíbrio e estabilidade. Também se refere à tranquilidade mental de uma pessoa ou sociedade; definida em um sentido negativo, é a ausência de guerra, agitação ou violência".
Fala-se de paz interior como aquela que está no fundo do coração e contribui para a tomada de decisões sábias em vez de impulsivas. Uma paz que é calma e que brota das profundezas de cada pessoa, como um certo espaço de abrigo interior. Nós nos perguntamos: é essa a paz que Jesus ressuscitado oferece quando aparece no meio dos discípulos? Ou também podemos nos perguntar: qual foi a paz experimentada por Tomé depois de ver e ouvir Jesus lhe dizer: “ponha sua mão aqui e toque minhas feridas?
É difícil imaginar uma paz como tranquilidade ou calma interior em meio à perplexidade de Tomé quando Jesus aparece para ele e lhe diz para colocar as mãos sobre suas feridas. E, no entanto, ele também recebe a paz que Jesus lhe oferece. Dessa forma, nós nos abrimos para pensar em uma paz que não responde à nossa lógica ou à nossa cultura. Uma paz que não pode ser humanamente construída a partir da quietude ou da ausência de conflito, porque ela nasce exatamente aí! É uma paz que está intrinsecamente ligada ao Ressuscitado que rompe as portas do lugar que estavam fechadas e que se apresenta em meio a uma comunidade temerosa com suas feridas e chagas para que possam senti-lo.
Não é a paz de uma unidade superficial em que as diferenças são subjugadas pelo poder do momento. Tampouco é a paz de uma igualdade que anula a originalidade da criação de Deus em cada pessoa com um projeto único e originário de Deus para cada pessoa. Tampouco é a paz de uma calma apaziguadora que ignora a dor e o sofrimento, muitas vezes incompreensíveis, pelos quais milhares de pessoas passam desde o momento de sua concepção. Tampouco é a paz tranquila que elimina a luta, o debate, a busca incansável por melhores condições de vida para tantas pessoas, pois a necessidade de justiça perturba e desorganiza essa aparente quietude.
É uma paz nova, que só pode nos ser dada por Jesus Ressuscitado se abrirmos as portas de nossas vidas e de nossas comunidades para ele e expormos diante dele nossas feridas, nossas dúvidas, para que ele possa curá-las e ressuscitá-las com sua Paz.
Na celebração da Eucaristia, nós, cristãos, dizemos: "Nós proclamamos sua morte, nós proclamamos sua ressurreição" e concluímos essa oração pedindo: "Venha, Senhor Jesus". Dessa forma, somos convidados a proclamar sua morte, que abrange toda a morte e dor do mundo! Todo sofrimento está sob seu abrigo, é abraçado por sua cruz, todas as feridas e chagas de nosso mundo estão lá... e somos convidados a proclamar Sua morte, mas intrinsecamente ligados à proclamação de Sua ressurreição. Não é suficiente dizer que Jesus se tornou um conosco e que em sua dor está contida toda a morte se não juntarmos a esse anúncio a proclamação de uma nova vida: a ressurreição! A proclamação de sua morte é a proclamação de um amor extremo, que experimentou a morte até as profundezas do ser humano, e a proclamação da ressurreição é o canto de uma esperança que dá origem a uma nova vida que não tem limites, que é dada a cada um de nós e em todas as situações de maneira misteriosa. É a vida que pode ser cantada em meio à dor, é a alegria que brota mesmo em situações em que humanamente só pode haver angústia e dor. E aqui está a novidade da paz que Jesus Ressuscitado traz: é a Sua Paz. Aquela paz que alimenta o nosso caminho e o caminho de toda a humanidade que, em meio a tantas injustiças, continua acreditando e lutando pela verdade e pela igualdade.
Neste domingo, também chamado Domingo da Misericórdia, pedimos a Deus que nos conceda Sua paz, que nos faça semeadores do anúncio de Sua morte e do anúncio da Ressurreição.
Façamos nossa a oração de Pedro Casaldáliga
Dá-nos, Senhor aquela Paz inquieta que denuncia
a Paz dos cemitérios e a Paz dos lucros fartos.
Dá-nos a Paz que luta pela Paz!
A Paz que nos sacode com a urgência do Reino.
A Paz que nos invade, com o vento do Espírito,
a rotina e o medo, o sossego das praias
e a oração de refúgio.
A Paz das armas rotas na derrota das armas.
A Paz da fome de Justiça,
a paz da Liberdade conquistada,
a Paz que se faz “nossa” sem cercas nem fronteiras,
Que tanto é “Shalom” como “Salam”, perdão, retorno, abraço...
Dá-nos a tua Paz, essa Paz marginal que soletra
Em Belém e agoniza na Cruz e triunfa na Páscoa.
Dá-nos, Senhor, aquela Paz inquieta,
que não nos deixa em paz!