A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 2º Domingo do Tempo de Páscoa, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 20,19-31.
“...estando fechadas as portas do lugar onde os discípulos se encontravam...” (Jo 20,19)
O contexto do evangelho deste domingo é de obscuridade (“ao anoitecer”) e de medo (“com as portas fechadas”). Os discípulos têm a sensação de estarem sufocados, como numa prisão, na qual a inquietude, a insegurança, a confusão, o vazio, a ansiedade e a tristeza são inevitáveis. É nesse ambiente de morte que o Ressuscitado se faz presente e tudo se transforma: chega a paz e, com ela, a alegria e o consolo.
A ressurreição de Jesus é também uma vitória solidária. Ele vai ressuscitando seus amigos e amigas, reconstruindo vidas feridas pelo fracasso e pela dor, abrindo novo horizonte de sentido e impulsionando-os a prolongarem a Sua missão.
Neste relato catequético de João, que se prolonga com a cena de Tomé, há referência a alguns dados significativos. As duas aparições acontecem “no primeiro dia da semana”; o relato está simplesmente dizendo ao leitor duas coisas: que a ressurreição é uma “nova Criação”, e que as aparições “acontecem” no domingo, na celebração comunitária da eucaristia ou “fração do pão”.
Com isso, o relato está nos convidando a descobrir o Ressuscitado na refeição comunitária compartilhada, onde é feita a memória das palavras e atos do Jesus histórico. De fato, Tomé não “vê o Senhor” porque estava ausente, fora da comunidade.
Por outra parte, o Ressuscitado, ao se colocar no meio dos seus amigos, os convoca à missão e os envia para que prolonguem seu modo original de se fazer presente entre as pessoas, durante a vida pública: “Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. O centro da missão é a de comunicar e favorecer a vida, já que Ele veio “para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10). A missão confiada não tem nada a ver com fazer proselitismo ou comunicar uma nova religião. É algo muito mais profundo, gratuito e descentrado. Sentir-se “enviado” é, simplesmente, reconhecer-se como “canal” através do qual a Vida flui e se expressa; é possibilitar que todos possam viver já como ressuscitados.
Mas Jesus sabe que seus discípulos são frágeis. Mais de uma vez ficou surpreso com a fé tão pequena deles. Precisam de seu próprio Espírito para cumprir a missão. O leitor do evangelho já sabe que uma das grandes promessas de Jesus foi o dom do Espírito. Por isso, Ele se dispõe a fazer com os discípulos um gesto muito especial. Não lhes impõe suas mãos nem os abençoa, como fazia com os enfermos e os pequenos; “sopra sobre eles” e lhes diz: “recebei o Espírito Santo”.
O gesto de Jesus tem uma força que nem sempre conseguimos captar. O verbo “soprar”, usado por João, é o mesmo que encontramos em Gen 2,7. Segundo a tradição bíblica, Deus modelou o ser humano de barro e logo soprou sobre ele seu “alento de vida”; e aquele “barro” se tornou um ser “vivente”.
Isso é o ser humano: um pouco de barro, mas, ao mesmo tempo, portador da “Ruah de Deus” (Espírito). Agora Jesus lhes comunica o Espírito da verdadeira Vida. Trata-se da nova criação do ser humano. Essa nova Vida é a capacidade de amar como Jesus ama. O Espírito é o critério para discernir as atitudes que brotam dessa Vida. Jesus “desperta” seus discípulos para que se façam conscientes do dinamismo e da força do Espírito que os re-cria. É este Espírito que “rompe” o que está fechado, que derruba o que aprisiona, que mobiliza quem está paralisado.
Assim somos todos, seguidores(as) de Jesus: frágeis e de fé pequena, cristãos de barro, comunidades de argila... Só o Espírito de Deus nos converte em comunidade viva. Onde este Espírito não é acolhido, tudo permanece morto e causa danos a todos, pois impede atualizar sua presença viva entre nós.
Atualizando este texto, podemos dizer que o Espírito Santo hoje está “fechando muitas portas” de um tipo de sociedade, de economia, de política, de templos... que não geram vida, mas discriminação, violência, ódio e intolerância. O contexto tecnocrático pós-moderno e o sistema político-econômico vigente provocam mortes e vítimas. Não nos parece estranho que o Espírito feche portas e que isto gera em nós uma sensação de fracasso, de incertezas sobre o futuro, de caos e confusão.
Mas o Espírito, soprado pelo Ressuscitado, está “abrindo para nós outras portas”: um outro mundo possível, com uma economia solidária, com prioridade dos pobres e descartados da sociedade, um mundo mais ecológico, mais simples e participativo, que não invista em armas, mas em saúde e trabalho, um mundo mais interconectado e pacífico, mais próximo do projeto do Reino de Deus.
Para nós cristãos, o Espírito também nos abre uma porta para uma Igreja menos clerical e mais sinodal, a uma vida cristã com maior participação comunitária de todo o Povo de Deus, não fechado nos templos cumprindo práticas religiosas alienadas, mas formando uma “Igreja em saída”, mais fermento que cimento. Não tentemos abrir as portas que o Espírito já fechou!
Assim, a Páscoa se torna Pentecostes. Mas isto não é algo mágico pois pede a nossa colaboração, nossa criatividade, iniciativa e conversão para construir entre todos um mundo diferente, solidário e justo, para transfigurar esta realidade e abri-la à nova Terra, a uma Vida sem fim, o Reinado de Deus.
Seremos capazes de discernir hoje, nestas portas que se fecham e se abrem, um novo sinal dos tempos, uma sempre nova e surpreendente ação do Espírito do Ressuscitado?
O mundo, aparentemente, continua igual, parece que não aconteceu nada relevante. A Ressurreição é também gestada na simplicidade do cotidiano e no extraordinário do ordinário. As mesmas “marcas” da Encarnação de Jesus, como as que estiveram presentes em sua vida e em sua paixão, continuam no acontecimento último de sua ressurreição gloriosa: o grão de trigo, o fermento na massa, a semente de mostarda, a moeda perdida e encontrada, a ovelha nos ombros, o semeador, a pequena esmola da viúva, os lírios do campo...; aí está a força do Vivente que não obriga, não se impõe, nem quebra, nem rompe; continua em meio a nós, na casa, na família, no povo, nos caminhos, lagos, esquinas da vida... As contas estão claras, na simplicidade e na humildade extrema, a tumba não pode reter nem acabar com o amor de Deus que se manifestou em Jesus de Nazaré. Já nada poderá nos separar desse amor, nem mesmo a morte que foi vencida e ultimada em uma vida que nunca acaba porque está cheia de plenitude, vida gloriosa e eterna.
Esta experiência de graça pascal pertence a toda comunidade cristã; não está reservada aos “doze” ou a alguns “iniciados”; todos com a mesma experiência; todos com a mesma missão. Falamos da grande comunidade de seguidores(as) que escutam a Palavra e recebem o “sopro” de Jesus. A Igreja inteira, a partir do dom pascal de Cristo, é sinal e princípio de paz, de perdão e de consolo sobre a terra. Ali onde a paz e o perdão se expressam e se “fazem carne” numa comunidade, está presente e se faz visível o Senhor Ressuscitado.
Aguce seus sentidos, abra o coração; há tantos que não podem mais esperar, pois ansiosos aguardam uma presença que acolha e uma palavra que os anime.
- Seja presença pacificadora e consoladora junto a tantos que vivem nos “túmulos” do fracasso e da dor.
- Ative seus impulsos de vida para que a Ressurreição seja um permanente “modo de viver”.