A crise nas famílias, o mandamento de honrar pai e mãe (Eclo 3,3-7.14-17) e a Sagrada Família de Nazaré

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23 Dezembro 2021

 

"Em nossos dias, é lamentável ver como as relações familiares estão abaladas pelas divisões causadas por brigas, divisões, disputas por heranças etc. Raras são as famílias, nas quais não há brigas por heranças. Morrem os pais, a família desintegra. Acrescente-se a isso a realidade de que na frenética vida moderna as relações fraternas do comer juntos, do apoio mútuo estão esquecidas nos núcleos familiares", escreve Frei Jacir de Freitas Faria, OFM, ao comentar o livro do Eclesiástico (3,3-7.14-17).

 

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, professor de exegese bíblica, membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB) e padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze, cujo último é O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

 

Eis o comentário.

 

O texto sobre o qual vamos refletir hoje é tirado do livro do Eclesiástico 3,3-7.14-17. Trata-se de conselhos de sabedoria que um sábio judeu, que viveu por volta do ano 250 a.E.C., deu aos jovens em relação aos seus pais. No judaísmo, desde cedo os filhos eram educados a praticar o mandamento de honrar pai e mãe (Dt 5,16). Posteriormente, os cristãos entenderam que José, Maria e Jesus eram o modelo de família sagrada, perfeita.

 

Em nosso tempo, as famílias passam por momentos de crise. Novos modelos de família surgem. Nesse contexto, ousamos perguntar: Qual o significado e atualidade do mandamento de honrar pai e mãe? Em que a Sagrada Família de Nazaré nos ajuda a superar essa crise?

 

O quinto mandamento é o único que vem com uma promessa de recompensa, ao afirmar: “Honra teu pai e tua mãe, conforme te ordenou Javé teu Deus, para que os teus dias se prolonguem e tudo corra bem na terra que o Senhor teu Deus te dá” (Dt 5,16). O quarto mandamento já se havia referido ao pai como figura de autoridade sobre os filhos, responsável pela casa e pelo cumprimento do sábado como dia de descanso obrigatório para todos, animais e pessoas.

 

Esses dois mandamentos, o de guardar o sábado e o de honrar pai e mãe, são centrais no Decálogo (Dt 5,6-21). Quem os cumpre, cumpre todos os mandamentos. Eles são os únicos mandamentos escritos de forma positiva no decálogo e estão ligados a Deus (guardar o Sábado e reverenciar os pais) e ao próximo (descanso para todos e cuidado dos pais empobrecidos). Observe que os mandamentos que vêm antes (Dt 5,6-11 – amar a Deus) e depois (Dt 5,17-21 – amar o próximo) dos mandamentos do sábado e o de honrar pai e mãe são negativos, sempre começando com ‘não’... Somente guardar o sábado e honrar os pais são positivos. Segundo o modo de pensar e de escrever do judeu, esses mandamentos são os mais importantes, pois estão no centro da narrativa.

 

Honrar pai e mãe é um mandamento direcionado aos filhos, os quais têm o dever de honrar os pais. O que isso significa? Ele pode ser interpretado de três modos:

 

a) Ele se dirige aos jovens israelitas, prescrevendo a submissão total à autoridade paterna/materna.

 

b) Prescreve aos adultos a reverência que esses devem ter para com os pais, transmissores da Aliança.

 

c) Ele se dirige aos filhos adultos, prescrevendo a assistência financeira que esses devem dispensar aos pais idosos, quando incapazes de se manterem.

 

Eclesiástico 3 reitera o valor de honrar pai e mãe. Primeiro, porque honrar pai e mãe tem a ver com a obediência exigida do filho. O código deuteronômico previa que o filho rebelde deveria morrer apedrejado na porta da cidade (Dt 21,18-21). Não se admitia a desobediência. O uso da vara corretiva era permitido (Pr 13,24). Os pais deviam educar os filhos conforme a lei judaica (Dt 6,20) e na fé judaica (1Sm 1,24), o que justifica o fato de José e Maria terem levado o menino Jesus para as festas judaica, o Templo de Jerusalém (Lc 2,41-50). Respeitar os pais significava respeitar a Lei e, por conseguinte, a Deus.

 

Segundo, pai e mãe são os transmissores da vida e das bênçãos divinas para os filhos. Através dos pais, cada israelita se torna um filho de Abraão. Daí a nossa tradição de pedir bênçãos aos pais. Terceiro, o prover o sustento financeiro dos pais na velhice significa agir como Deus que sempre tem cuidado para com os pobres e necessitados. O idoso, depois de uma vida de dedicação aos filhos, merece respeito e assistência financeira dos filhos. Assim como o filho que um dia foi pobre e necessitado de um colo materno e paterno para sobreviver, agora o idoso merece respeito e dignidade. José e Maria cuidaram do menino Jesus, fazendo crescer em graça e sabedoria (Lc 2,51-52). Pais e mães idosos voltam a ser crianças necessitadas, como foram os seus filhos. Jesus, no momento de sua morte na cruz, demonstrou ser um filho judeu exemplar ao pedir a João que cuidasse da sua mãe (Jo 19,25-27).

 

Os idosos, segundo a mais tenra tradição legal de Israel, merecem a honra e o respeito dos seus filhos e da sociedade. “Não despreze um homem em sua velhice, porque muitos de nós envelhecemos”, ensina Eclo 8,6. E o código da Santidade é mais categórico: “Levantar-te-ás diante de uma pessoa de cabelos brancos e honrarás o ancião e temerás o teu Deus. Eu sou o Senhor” (Lv 19,32). Promover e respeitar a vida dos pais idosos é fazer justiça, é agir como Deus, que agiu com justiça para com os israelitas ao libertá-los da escravidão do Egito. Assim, a vida como dom e oferta pode continuar no ciclo da existência humana que não para com a morte.

 

A sabedoria de Eclesiástico é confirmada nos conselhos dados aos filhos: “Filho, cuida de teu pai na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo que esteja perdendo a lucidez, não o menospreze, tu que estás em pleno vigor” (Eclo 3,12-13).

 

Eclo 3 enumera as vantagens prometidas para os filhos que honrarem pai e mãe. Eles serão atendidos na oração cotidiana; ajuntarão tesouros; terão a alegria em seus próprios filhos; terão vida longa; serão abençoados; serão lembrados no dia da aflição e, por fim, terão os seus pecados perdoados.

 

Em nossos dias, é lamentável ver como as relações familiares estão abaladas pelas divisões causadas por brigas, divisões, disputas por heranças etc. Raras são as famílias, nas quais não há brigas por heranças. Morrem os pais, a família desintegra. Acrescente-se a isso a realidade de que na frenética vida moderna as relações fraternas do comer juntos, do apoio mútuo estão esquecidas nos núcleos familiares.

 

Há muitas feridas abertas nas relações familiares que não cicatrizam por falta de diálogo. Há filhos que levam seus pais para um asilo ou casas de repouso e aí os abandonam até que a morte os leve. Filhos abastados não aceitam prover o sustento de pais empobrecidos.

 

Nisso tudo, uma certeza: a falta de amor, de perdão, de misericórdia, de fé, de compreensão e do firme propósito de resgatar os laços familiares. Valores que a Sagrada Família deixou para nós. Gostaria de terminar com a intuição poética e orante de Padre Zezinho: “Que nenhuma família termine por falta de amor” e acrescento: por falta de pão, de cuidado e de perdão! Que a Sagrada Família de Nazaré seja a nossa inspiração e nossa proteção. Abençoa, Senhor, a minha, a sua, as nossas famílias!

 

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