Por: Ricardo Machado | 26 Mai 2018
Se o XVIII Simpósio Internacional A virada profética do Papa Francisco pudesse ser descrito em números, as cifras seriam impressionantes. Em apenas quatro dias foram nove conferências realizadas no Teatro Unisinos, 24 minicursos, conferências e mesas redondas simultâneas, além da exibição de filmes e publicação de entrevistas e matérias sobre o evento. Ao todo foram cerca de 35 horas de programação, com 14 horas de atividades simultâneas, das quais várias conferências e mesas-redondas estão disponíveis no Canal do IHU no YouTube.
Na última manhã de evento, o Teatro Unisinos recebeu mais de 250 pessoas para as atividades de encerramento. A primeira conferência A opção de Francisco: como evangelizar um mundo em mudança? foi de Austen Ivereigh. Logo em seguida a mesa-redonda O futuro da virada profética do Papa Francisco: desafios e perspectivas para a Igreja do Brasil contou com a participação de Bárbara Pataro Bucker, Ivo Poletto e Paulo Suess.
A tecnocracia globalizada transformou o mundo em uma espécie de jogo de pequenas peças em que a nossa tarefa, como pessoas humanas, é remontá-lo a fim de reconstruir os laços de fraternidade e pertencimento. É diante desse mundo que o papa Francisco nos convida a sair em missão e produzir o que seria uma conversão pastoral. Mas por que precisamos de uma conversão?
Austen Ivereigh e Cleusa Andreatta | Fotos: Ricardo Machado/IHU
Austen Ivereigh
Foi tentando responder a essa provocação que Ivereigh relembrou o Documento de Aparecida que já diagnosticava que a tecnocracia e as novas tecnologias de informação eram máquinas que nos arrastavam para longe uns dos outros. “O que Aparecida sugeria era um repensar o papel da Igreja em contato com Jesus e com o evangelho. Era preciso convertermos a Igreja a uma igreja com ímpeto transformador. Em síntese, fazer uma conversão da Igreja na igreja de Cristo, dos primeiros cristãos”, pondera Ivereigh. “O próprio da mudança de época e que as coisas não estão nos seus lugares”, diz Ivereigh, ao parafrasear o discurso do papa Francisco.
Há 50 anos Igreja se viu ensimesmada, o que levou a uma tribulação intensa produzindo um estado de desolação espiritual. Frente a “ameaça” aos valores cristãos, o resultado foi reforçar a perspectiva do código moral da fé como uma estratégia de resistência, mas que se tornou incapaz de evangelizar. “Em uma sociedade líquida, nós devemos encontrar um Deus que seja capaz de conectar as pessoas no particular. Precisamos encontrar a resposta de Deus frente esse desencantamento”, provoca o conferencista.
Três convidados – Ivo Poletto, Bárbara Pataro Bucker e Paulo Suess – fizeram a mesa-redonda que marcou o encerramento oficial do XVIII Simpósio IHU. Em sintonia com a conferência anterior, a proposta foi debater o futuro da Igreja no contexto brasileiro. Cada um dos personagens, com trajetórias distintas, abordou o tema desde seus próprios mundos, mas de uma maneira profunda e comprometida com os desafios vindouros.
Ivo Poletto, Bárbara Pataro, Inácio Neutzling e Paulo Suess
Ivo Poleto
Ivo Poletto, que tem sua trajetória marcada pelo trabalho junto às pastorais, especialmente junto a Comissão Pastoral da Terra, abriu as discussões com a crítica a uma visão demasiadamente jesuítica do Papa Francisco. “Acho que se insistiu muito na perspectiva jesuítica, mas acontece que ele escolheu ser chamado de Francisco, não de Inácio (de Loyola). Escolher Francisco é algo muito significativo”, pondera ao abrir o debate.
Para Poletto, a carta Laudato Si' é um evangelho e um texto de análise sociopolítica impressionante, que nos provoca em dimensões que ainda não tínhamos percebido. "Somos parte da terra, filhos da mãe terra. E vamos morrer em consequência das agressões que fazemos a ela. É isso que Francisco se dá conta e assume a missão de defender a terra e todos os seres que a habitam. É daí que vem a questão: quem é o próximo?”, interroga. “Sou muito tocado pelos povos indígenas que resistem a subsequentes decretos de extermínio, mas que agora assumiram a própria voz para apresentar aos brancos a prática do bem viver e é isso que temos que aprender a ouvir. Estou convencido, olhando Jesus Cristo que estava alheio aos templos, que se quisermos que a força profética do testemunho avance precisamos pensar como passar essas discussões para o povo, as pessoas mais simples e mais pobres”, projeta. “O Papa tem mais acolhimento por pessoas de fora do clérigo que por gente formada e de alta formação dentro da Igreja. Ele quer que levemos a mensagem de Deus para o povo para que eles possam nos ajudar em nossa própria conversão”, complementa.
Bárbara Pataro
Bárbara Pataro Bucker chamou atenção para a forma como o papa Francisco nos provoca a pensarmos como o Outro nos “incomoda”, em certo sentido, ao nos desinstalar do lugar cômodo de muitos sujeitos da cultura cristã. Com isso ela lembrou o desafio de ensinar e estudar teologia, que se configura em um exercício de fronteira que exige atenção para não domesticar o mistério.
A professora chamou atenção para três aspectos que ela considera fundamentais para pensar Francisco. O primeiro deles foi o de que “a profecia de Francisco nos desafia a ouvir muito e a distinguir que a palavra que dizemos e que somos devem estar a serviço da vida. É o desafio de viver a própria transparência do ser”. Em seguida fez a lembrança de que “temos que viver em um ambiente que desenvolva um desejo de mudança, inclusive de linguagem para que possamos mudar a realidade. É o discernimento que distingue, esclarece e orienta as demandas da vida”. Por fim, fez destaque a um dos maiores desafios que o Papa enfrenta. “Todos nós temos que trabalhar seriamente o papel da mulher na Igreja. Há um dilema enorme com certas iniciativas que podem, como efeito colateral, suavizar problemas profundos difíceis de entender em relação as questões com as mulheres. Trata-se de nos dispormos nesse caminho de aprendizado e de ouvir o que a mulher tem a dizer sobre Deus, a vida e a existência de cada um de nós”, conclui.
Paulo Suess
Logo de largada Paulo Suess fez uma provocação. “A virada profética não tem futuro. Porque se ela não for agora, não será nunca mais”, disse com a fala decidida de quem reconhece as dificuldades de se assumir o que poderíamos chamar de “projeto Francisco” de transformação da Igreja. “Viver fora do espaço profético dá muito conforto. Quando o Papa foi para Roma abriu as gaiolas, mas muitos bispos e padres descobriram que haviam perdido a capacidade de voar e voltaram para a gaiola porque era mais confortável. Até hoje tem muita gente esperando voltar para a gaiola porque tem comida e é mais fácil”, problematiza Suess, com sua metáfora florestal que ao mesmo tempo é capaz de arrancar risos e profundas reflexões.
Além disso chamou atenção para nosso apego a noções de identidade cartesianas que são muito atreladas a polaridades. “Estamos em uma identidade cartesiana que é bipolar e parece não haver uma terceira possibilidade. Mas há sim, há muitos gêneros entre o homem e a mulher, mas nós ignoramos o que está entre os dois. Mesma coisa com relação aos religiosos, será que não é possível um jesuíta pobre ou um franciscano inteligente franciscano? Essas dicotomias cartesianas complicam muito as coisas e o próprio papa Francisco contém essas misturas”, destaca.
Diretamente implicado nas questões do sínodo pan-amazônico, Suess deu voz aos dilemas do trabalho da igreja com os povos tradicionais. “Os indígenas pertencem a esse universo, mas estão longe de uma plena participação nos processos de evangelização. A questão é: como podem viver politicamente autodeterminados e eclesialmente tutelados? Essa situação é insustentável porque há uma reserva doutrinal que é mantida por padrões culturais, não pelo evangelho. Onde já se viu 500 anos de colonização e não existir uma igreja autóctone?” provoca. “Provavelmente nunca os povos originários estiveram tão ameaçados e estão próximos de perder seus territórios por colonialismos disfarçados de progresso. É imprescindível construir espaços de diálogos, garantindo as culturas, rituais e espiritualidades próprios, pois a sabedoria dos povos amazônicos tem muito a nos ensinar. O Papa faz um apelo à autodeterminação dos povos da amazônia. Precisamos de vos escutar”, completa.
Ao finalizar, antes dos aplausos dos participantes que há quatro dias debatiam os rumos e os dilemas da Igreja após as transformações em curso, Paulo Suess fez um apelo à alegria de estar em comunhão com os mais necessitados. “A sobriedade feliz é o jeito jesuíta de viver a pobreza”. Fim.
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O futuro da Igreja e as possibilidades de uma virada permanente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU