12 Abril 2016
"Amoris Laetitia é um documento extraordinariamente fundamentado – rico em insights, prático e abrangente; é um manual de como restaurar um casamento: uma exortação que clama para ser implementada", escreve Austen Ivereigh, jornalista e autor de biografia do papa intitulada “The Great Reformer: Francis and the Making of a Radical Pope”, em artigo publicado por Crux, 08-04-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
Amoris Laetitia é uma proposta épica de conversão da Igreja para a missão de resgatar a família, não apontando o dedo em riste ou via persuasão, mas por meio de uma estratégia concreta de reconstrução a partir a base.
Este documento irá modelar as ações e atitudes da Igreja por gerações.
Na introdução, o Papa Francisco afirma querer apenas destacar “alguns caminhos pastorais que nos levem a construir famílias sólidas e fecundas segundo o plano de Deus”, e no Capítulo VI diz que sequer pretende apresentar uma “pastoral da família”.
Mas eis o que os 325 parágrafos e os nove capítulos do documento acrescentam: um mapa para a renovação do matrimônio e da família. Em seu centro está o que Francisco chama de uma conversão pastoral ou missionária, uma nova abordagem que envolve o ensino de um ideal exigente às pessoas, ao mesmo tempo sendo compassivo e próximo a elas em suas fragilidades.
A chave para o documento é a misericórdia de Deus, uma resposta que adentra as realidades humanas, evitando a tentação farisaica – a que Francisco acredita ter a Igreja sucumbido – de se pôr longe com os braços cruzados.
Em muitos aspectos, Amoris Laetitia é uma longa polêmica contra o rigorismo.
O Capítulo VIII – preocupado com as pessoas em situações “irregulares” tais como a “prática da convivência que precede o matrimônio” [ou seja, coabitação] – é o cerne desta polêmica. Na questão difícil do acesso aos sacramentos para os fiéis que voltaram a se casar no civil, Francisco não apresenta nenhuma lei nova que fosse aplicável em todos os casos; não estabelece nenhum tipo de “caminho” de volta aos sacramentos, nem mesmo um caminho via discernimento, tipo que fora mencionado no relatório final do Sínodo 2015.
Mas também ele não aplica aquilo que o Cardeal Gerhard Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, descreveu recentemente como um “ensino católico sempre válido”, a saber: o parágrafo 84 da Familiais Consortio, de São João Paulo II, que exige que os noivos evitem fazer sexo caso desejam receber a Comunhão.
Com efeito, Francisco abriu caminho para uma flexibilidade pastoral enorme, recusando-se a tratar os divorciados que voltaram a se casar no civil como uma categoria e instando a Igreja a um “responsável discernimento pessoal e pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer: uma vez que ‘o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos’”.
A nota de rodapé salienta que o mesmo vale para os sacramentos, pois “o discernimento pode reconhecer que, numa situação particular, não há culpa grave”.
Os parágrafos seguintes dispõem as condições para um tal discernimento, o que Francisco vê como uma aplicação prática da misericórdia divina.
“Compreendo aqueles que preferem uma pastoral mais rígida, que não dê lugar a confusão alguma”, diz ele.
“Mas creio sinceramente que Jesus Cristo quer uma Igreja atenta ao bem que o Espírito derrama no meio da fragilidade: uma Mãe que, ao mesmo tempo que expressa claramente a sua doutrina objetiva, ‘não renuncia ao bem possível, ainda que corra o risco de sujar-se com a lama da estrada’”.
Entretanto, ainda que seja um desdobramento significativo, é pouco provável que essas coisas tenham um efeito sobre as pessoas. O cerne desta exortação apostólica, e muitos católicos verão uma mudança aí, é o Capítulo VI, que apresenta uma visão sobre como a Igreja deveria, no futuro, preparar as pessoas para o matrimônio.
Esta visão envolve a formação de leigos, uma “conversão missionária” das paróquias para oferecer aconselhamento e orientação aos casais, especialmente nos primeiros anos de casado, bem como mudanças na formação oferecida nos seminários e numa série de outras áreas.
No capítulo segundo, Francisco faz uma autocrítica daquilo que ele vê como as falhas da Igreja em desafiar os jovens a abraçar o matrimônio, assumindo um refúgio no dogmatismo e na abstração e oferecendo uma “excessiva idealização” do matrimônio.
Portanto, ao mesmo tempo em que contém um diagnóstico maduro do estado da família, Amoris Laetitia adverte continuamente contra “limitar-nos [nós, os católicos] a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa” e condena a forma como nós, enquanto Igreja, “agimos na defensiva e gastamos as energias pastorais multiplicando os ataques ao mundo decadente”.
Em vez disso, Francisco convida a Igreja a capacitar as pessoas a viver a verdade do matrimônio.
“A nossa tarefa pastoral mais importante relativamente às famílias” – escreve ele mais adiante em referência ao “mal” do divórcio – “é reforçar o amor e ajudar a curar as feridas, para podermos impedir o avanço deste drama do nosso tempo”.
No Capítulo VIII, ele diz novamente: “Mais importante do que uma pastoral dos falimentos é o esforço pastoral para consolidar os matrimónios e assim evitar as rupturas”.
Em cada um dos capítulos remanescentes, Francisco oferece, com efeito, o modelo para uma tal agenda.
É fácil imaginar todo este conteúdo de Amoris Laetitia sendo transformado em livros didáticos e em programas de formação, usando-se as Escrituras, o magistério da Igreja, assim como os seus muitos insights quanto ao amor conjugal, à educação dos filhos e à espiritualidade do matrimônio.
Francisco não apenas convida a um programa de formação totalmente renovado aos que entram na vida de casado; ele fornece o seu conteúdo – lidando em detalhes extraordinários com toda uma série de dimensões: desde a paternidade superprotetora até a gravidez e adoção, o papel dos idosos e irmãos, a forma como as crises matrimoniais ajudam no aprofundamento de uma relação, passando pela “sã autonomia” que vem com a percepção do casal de que cada um pertence a Deus antes de qualquer coisa.
Amoris Laetitia é um documento extraordinariamente fundamentado – rico em insights, prático e abrangente; é um manual de como restaurar um casamento: uma exortação que clama para ser implementada.
Ainda que Francisco não chegue a dizer que, no futuro, tais programas serão um pré-requisito para a validade de um casamento católico, é isso o que vai ocorrer com o passar dos anos. Da mesma forma como, em momentos diferentes, a Igreja criou os seus próprios seminários e escolas, Amoris Laetitia marca o momento em que os católicos cessaram de se basear na cultura e no direito para suprir o significado do matrimônio.
Se essa visão ousada do pontífice for posta em prática, a Igreja Católica tornar-se-á na principal escola de amor conjugal do mundo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O Papa Francisco e seu esforço épico em salvar a família e converter a Igreja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU