25 Julho 2015
“As mensagens da Laudato Si' e da fala aos movimentos populares não são apenas uma palavra amiga aos cristãos, e especialmente aos católicos, para quem Francisco é papa. Nem são palavras amigas para os que estavam em Santa Cruz. Francisco está proferindo palavras amigas para todas as pessoas que têm sentimento de humanidade”, afirma o assessor de pastorais e movimentos sociais.
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O encontro do Papa Francisco com movimentos populares na Bolívia, mas também em outros momentos no Vaticano, sinaliza “uma mudança essencial de rota”, avalia Ivo Poletto, que participou do II Encontro Mundial de Movimentos Populares, realizado em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia, quando o papa falou para mais de 1.500 representantes de movimentos populares de mais de 40 países. Para Poletto, que acompanha os movimentos populares no Brasil desde a época das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, a novidade inaugurada por Francisco está no fato de que “em vez de só convidar pesquisadores e intelectuais, passa-se a ouvir como os movimentos populares analisam a realidade do mundo atual e como atuam para enfrentar o que os afeta”.
Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, após retornar da Bolívia, Poletto comenta os principais temas abordados no II Encontro Mundial de Movimentos Populares, e assinala que a insistência do papa com o discurso sobre a necessidade de mudança indica “pelo menos duas dimensões das práticas: por um lado, evitar o assistencialismo, as práticas que reduzem o pobre a objeto da ação alheia; por outro, assumir e implementar práticas que produzem etapas sucessivas de mudança, que partem do que é possível de imediato, mas que avançam na direção de mudanças profundas, até atingirem as bases da dominação colonial, cultural, econômica, política. Esses processos demandam a participação consciente e desejada das pessoas, das comunidades, dos povos. Só assim existirão movimentos populares fortes, capazes de mobilizar o poder transformador dos pobres, dos excluídos”.
Na avaliação dele, ao contrário do que muitos pensam, o Papa Francisco “não insiste na ‘imagem dos pobres’”, mas os vê não como “uma abstração, um alguém indefinido a ser apresentado como um possível próximo a ser encontrado. Ele é um ser humano, uma comunidade de periferia urbana ou uma vila rural, um povo indígena, um conjunto de migrantes que se arriscam a atravessar o mar em busca de chances de vida, uma mulher com seus filhos”.
Ivo Poletto frisa ainda que a aproximação do papa com os movimentos populares não é uma “estratégia da Igreja”. Ao contrário, esclarece, “o objetivo do papa é duplo: ouvir o que os movimentos populares têm a dizer e criar oportunidades para que eles se articulem em âmbito mundial”.
Ivo Poletto é assessor de pastorais e movimentos sociais. Trabalhou durante os dois primeiros anos do governo Lula como assessor do Programa Fome Zero e foi o primeiro secretário-executivo da Comissão Pastoral da Terra - CPT. Poletto é autor de Brasil, oportunidades perdidas: Meus dois anos no governo Lula (Rio de Janeiro: Garamond, 2005).
Confira a entrevista.
Foto: twitter.com/ivopoletto |
IHU On-Line - Em que consiste o Encontro Mundial dos Movimentos Populares, que teve recentemente sua segunda edição na Bolívia? Qual é a agenda dos movimentos que participam desse encontro?
Ivo Poletto – Trata-se de uma iniciativa inédita do Vaticano, pelo menos segundo minha informação. O próprio Papa Francisco convidou seu amigo argentino que trabalha com coletores de materiais recicláveis a organizar uma primeira reunião com alguns líderes de movimentos populares em âmbito mundial para dialogar sobre como a Igreja Católica poderia contar com sua presença nos debates sobre a realidade atual e sobre como enfrentar o que causa sofrimento e exclusão de tantas pessoas no mundo.
O passo seguinte foi o convite e a participação de representantes de movimentos sociais num Seminário realizado pela Academia de Ciências do Vaticano. Uma mudança essencial de rota: em vez de só convidar pesquisadores e intelectuais, passa-se a ouvir como os movimentos populares analisam a realidade do mundo atual e como atuam para enfrentar o que os afeta. Mais uma mudança: o Vaticano acolhe a proposta de abrir espaço para um encontro mundial de movimentos populares. E aí, com o grupo de lideranças que já se reunira, e havia recebido apoio pessoal do papa, foi organizado o I Encontro Mundial de Movimentos Populares, realizado no Vaticano em outubro do ano passado. E foi aí que, depois de dois dias de trabalho autônomo dos movimentos em torno de três direitos fundamentais: Terra, Trabalho e Teto, o papa, em sua fala, formulou a meta: “Nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem trabalho, nenhuma família sem teto”, e anunciou o compromisso da Igreja de apoiar as lutas dos movimentos populares.
A partir da sugestão de que fossem apoiados encontros internacionais em diferentes regiões, possibilitando a inclusão de mais movimentos que aceitassem o convite, foi planejado o II Encontro Mundial de Movimentos Populares, realizado em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. É importante ter presente que Evo Morales participou do I Encontro não como presidente da Bolívia, e sim como líder de um dos movimentos sociais que lhe confiaram a missão da Presidência: o movimento dos cocaleros.
Apenas para deixar bem claro, vale destacar que não se trata de reunir movimentos populares como estratégia da Igreja; o objetivo do papa é duplo: ouvir o que os movimentos populares têm a dizer e criar oportunidades para que eles se articulem em âmbito mundial. Na linha de agenda, foi tomada a decisão de manterem-se interligados, buscando as mediações necessárias, e mais concretamente, já há a decisão de realizar outro Encontro Mundial em Belo Horizonte, em fevereiro de 2016, com patrocínio da CNBB.
IHU On-Line - Que leitura faz do encontro do papa com os movimentos populares na Bolívia? Qual é o significado político e social do encontro?
Ivo Poletto – Em primeiro lugar vale destacar a prática do papa: ele deixou estampada em seu rosto a alegria por encontrar-se com os mil e quinhentos representantes de movimentos populares de mais de 40 países. Mesmo no final de um dia de muitas atividades, ele chegou e saiu jovial, declarando nos gestos e palavras que estava feliz de encontrar-se com amigos e amigas, com parceiros de caminhada.
Com essa base, o papa ouviu com muita atenção o conteúdo da Carta de Santa Cruz, em que foram sistematizadas e resumidas as principais reflexões críticas sobre a realidade do mundo atual e os compromissos assumidos pelos movimentos no II Encontro. Despois de acompanhar o discurso de Evo Morales, desta vez falando como líder popular e presidente da Bolívia, o papa apresentou a sua mensagem.
Impressiona como Francisco surpreende as pessoas. Neste Encontro, mesmo as que se declaram não crentes ou ateias sentiram que ele fala para todos, sem discriminação. E percebem como é sincera sua palavra, tanto pela firmeza das denúncias do sistema como no anúncio de que a Igreja quer estar com os movimentos populares em suas lutas para transformar o mundo. Ele tem gestos e palavras de quem vive o macroecumenismo, capaz de ver valores e atos de amor em toda pessoa que tem sentimentos de humanidade.
"E este foi um dos convites do papa: a necessidade da união para enfrentar o sistema que mata" |
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IHU On-Line - Quais movimentos participaram do encontro?
Ivo Poletto – Como foram mais de oitenta, não seria possível e conveniente citar nomes. O que vale destacar é que os convites foram feitos com esse critério: movimentos ligados a lutas por terra, trabalho e teto. Houve cuidado para evitar que uma das frentes de luta tivesse maioria, desejando que estivessem presentes iniciativas populares urbanas e rurais. Com certeza não estavam todos os movimentos populares, nem mesmo a América Latina, de onde veio a maioria dos participantes. Mas creio que em representatividades foi razoável.
Houve também presença das pastorais sociais dos diferentes países, algumas delas acompanhando movimentos parceiros. O Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Social, por exemplo, abriu espaço para a participação de um membro da comissão nacional do Movimento Nacional de Afetados por Desastres Socioambientais - MONADES, que, entre outros, lutam pelo direito de nova moradia. E igualmente participaram alguns bispos, sem que isso significasse algum tipo de direção. Pelo contrário, ouvi comentários de admiração em relação à forma simples de sua presença, atenção e participação.
IHU On-Line - Quais foram os temas que apareceram com mais destaque no encontro, tanto da parte do papa quanto dos movimentos?
Ivo Poletto – Os debates e trocas de experiências aconteceram em torno dos “3 ts”: terra, trabalho e teto. Junto com o reconhecimento da persistência das lutas populares, que revelam que o direito à terra, ao trabalho e ao teto não é algo doado por alguém ou pelo Estado, mas está enraizado na dignidade da pessoa, da família, dos povos, foi muito forte, explícita e profunda a reflexão crítica em relação à ausência ou à falta de prioridade das políticas públicas que deveriam garantir de forma universal estes direitos. E por isso, temas como pobreza, segurança e soberania alimentar, marginalização e abandono das pessoas nas periferias urbanas, a repressão, violência e criminalização dos movimentos populares, foram temas recorrentes. E em relação ao direito à terra, os direitos coletivos dos povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais foram insistentemente defendidos.
Nessa direção, às análises de assessores e às denúncias de lideranças dos movimentos, somou-se de forma surpreendente a crítica profética do Papa Francisco ao sistema dominante no mundo: ele explora os pobres e a Terra, ele mata.
Por outro lado, o papa deixou clara a resposta à pergunta: o que podem fazer os movimentos populares em relação à situação dramática em que se encontra a humanidade e a Terra?, afirmando: “muito! Podem fazer muito. Na verdade, já estão fazendo muito...”.
IHU On-Line - As tensões que os movimentos populares enfrentam na América Latina, como na própria Bolívia, por exemplo, foram tratadas no encontro? De que modo?
Ivo Poletto – O que se percebeu nos presentes foi uma atitude de sentirem-se convidados para uma prática nova, uma prática de encontro com o objetivo de construir a necessária unidade para avançar na conquista dos direitos; na verdade, na construção de um mundo novo, com sociedades assentadas sobre relações de cooperação entre pessoas e povos e sobre relações harmoniosas com a natureza. Mesmo quando apareceram pontos de vista e até de práticas diferentes, a atitude foi mais de procurar o que havia de comum, respeitando as diferenças.
É evidente que, no caso destes encontros se multiplicarem, como já se anuncia, haverá necessidade de avaliar e refletir sobre as diferenças, buscando uma unidade superior e mais eficaz. Por outro lado, a prática do papa e de seus companheiros do Vaticano, deixando claro que não desejam instrumentalizar a nada e ninguém, já está produzindo o fruto de uma maior abertura dos participantes ao diálogo. E este foi um dos convites do papa: a necessidade da união para enfrentar o sistema que mata.
IHU On-Line - Como interpreta especificamente essa mensagem do papa aos movimentos populares: “Atrevo-me a dizer que o futuro da humanidade está, em grande medida, nas vossas mãos, na vossa capacidade de vos organizar e promover alternativas criativas na busca diária dos “3 T” (trabalho, teto, terra), e também na vossa participação como protagonistas nos grandes processos de mudança nacionais, regionais e mundiais. Não se acanhem!”. Como lê essa mensagem, considerando que os governos da América Latina em geral, aqueles que se dizem progressistas, não dão conta das demandas dos movimentos populares?
Ivo Poletto – Ele falou aos movimentos populares, não aos governos, mesmo os que foram eleitos por estes movimentos. Pode-se até dizer, no contexto da mensagem papal, que ele estava dizendo que, queiram ou não os governos, sejam ou não fiéis os eleitos a cargos governamentais, está nas mãos dos excluídos, dos sobrantes, dos que são descartados pelo sistema econômico, cultural e político dominante, o futuro da humanidade. É claro que ao iniciar a frase com o “atrevo-me”, ele manifestava ao mesmo tempo uma afirmação positiva e um desejo, deixando para quem não se encontra exatamente na situação de exclusão a pergunta: e você, vai continuar indiferente, ou vai unir-se aos movimentos populares?
Dialogando com amigos e amigas, ainda lá em Santa Cruz, lembrei-me que esta afirmação tem tudo em comum com a esperança em que se assentou a nossa Educação Popular – que depois foi também denominada como “libertadora” –, de modo especial na fundamentação de Paulo Freire: os excluídos são portadores da possibilidade de um mundo de todas e para todas as pessoas, justamente por não estarem presos a bens e interesses que facilmente excluem os demais. Está na linha também dos processos revolucionários que visavam a socialização, mesmo se, depois, as práticas institucionalizadas não corresponderam, o que os levou a fracassos.
Por outro lado, arrisco-me a dizer, mesmo não me dedicando tanto à teologia bíblica nos últimos tempos, que esta afirmação é a tradução atualizada da bem-aventurança: “bem-aventurados os pobres porque deles é o reino de Deus”. Sabendo que, para Jesus, Reino é o processo permanente de construção de formas humanas de as pessoas estarem mais próximas do projeto de Deus para suas filhas e filhos, e por isso, de serem melhores mulheres e homens, melhor humanidade – processo que Deus, em sua bondade, complementará na forma de vida que só ele conhece –, os pobres é que são portadores do projeto de humanidade mais radical, mais humano, mais possível para todas as pessoas e para a própria Terra. Os ricos não estão abertos a isso; estão ocupados demais, desejam acumular, impedindo sequer espaço para que cada família tenha um teto. Por isso, a comunidade do evangelista Lucas dirá: “ai de vós, os ricos...”.
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"Ele falou aos movimentos populares, não aos governos, mesmo os que foram eleitos por estes movimentos" |
IHU On-Line - Que semelhanças e diferenças percebe nas visitas do papa ao Equador e à Bolívia?
Ivo Poletto – A participação no II Encontro dos Movimentos Populares me impediu de acompanhar com atenção a visita do papa ao Equador. Prefiro, por isso, não fazer comparações. De toda forma, não há dúvida de que sua visita à América Latina antes de sua ida aos Estados Unidos tem a ver com a coerência que caracteriza suas práticas. No caso do encontro dos movimentos populares, estava muito claro o convite no sentido de colaborarem em relação ao que deve estar presente em suas mensagens ao país mais consumista de todo o planeta; por outro lado, ao falar aos povos da América Latina também estava presente sua mensagem de questionamento e de convite em favor de uma mudança profunda no estilo de vida, na cultura consumista tanto dos setores ricos desses países, como os dos países que se enriqueceram explorando os pobres e a Terra.
IHU On-Line - O que o papa quis dizer com seu discurso acerca de uma economia a serviço da vida? Que cosmovisão ele está propondo a partir dessa ideia?
Ivo Poletto – Desde que as sociedades humanas se organizaram, inclusive com constituições republicanas, em torno da afirmação da livre iniciativa capitalista como fonte do progresso, a vida humana e tudo que constitui a Terra foram submetidas à economia. Em outras palavras, a história tornou-se a história do crescimento econômico, das lutas e guerras para definir o domínio mundial desse tipo de economia.
O que o papa afirma, com todas as letras e tendo como base também a insustentável concentração da riqueza que esse modo de pensar e de organizar a vida produziu, e por isso, a inevitável e desejada multiplicação da pobreza, da miséria, da fome, da morte por fome, bem como a inevitável e desejada exploração dos bens naturais a ponto de gerar gravíssimos desequilíbrios climáticos e ecológicos, é que este é um caminho sem futuro, um grave erro, uma fonte de injustiças, uma ameaça à vida da humanidade e de todos os seres vivos da Terra.
Por isso, a grande tarefa, o grande desafio atual é o de colocar a economia a serviço da vida, dos povos. Isso significará também fazer que a política, os governos, os legisladores e o sistema judiciário deixem de estar a serviço dos que controlam esta economia e passem a agir em favor da vida em sua integralidade. A economia a serviço da vida é uma das dimensões existenciais necessárias para se chegar ao que o papa denomina “ecologia integral”: um mundo, desde a comunidade local até o conjunto da humanidade, em que os seres humanos usem sua inteligência e demais capacidades, não para dominar e explorar, mas para promover relações de cooperação entre eles e relações de cuidado e harmonia com tudo que constitui o ambiente da vida na Terra.
Trata-se de uma visão utópica? Certamente, mas é preciso ter presente que ela já existe, praticada por povos, mesmo se ainda carregada de limites. É isso que leva o papa a afirmar que os movimentos populares “já estão fazendo muito”: já estão construindo práticas que anunciam que um mundo diferente é possível. A utopia, então, continua sendo necessária para nos fazer caminhar, como insistia o poeta Eduardo Galeano.
IHU On-Line - Como interpreta a insistência do papa com o discurso acerca da importância de se fazer uma mudança? O que ele quer dizer especificamente com “processo de mudança”?
Ivo Poletto – Ele assumiu a expressão boliviana de “processo de mudança” para indicar pelo menos duas dimensões das práticas: por um lado, evitar o assistencialismo, as práticas que reduzem o pobre a objeto da ação alheia; por outro, assumir e implementar práticas que produzem etapas sucessivas de mudança, que partem do que é possível de imediato, mas que avançam na direção de mudanças profundas, até atingirem as bases da dominação colonial, cultural, econômica, política. Esses processos demandam a participação consciente e desejada das pessoas, das comunidades, dos povos. Só assim existirão movimentos populares fortes, capazes de mobilizar o poder transformador dos pobres, dos excluídos.
Essa advertência de metodologia adequada às mudanças estruturais necessárias e urgentes no mundo atual servem tanto para os movimentos populares quanto para os governos que desejam realizar estas mudanças com participação de seus povos. Saber que não é possível realizar tudo de imediato não serve como justificativa para não fazer nada de novo, ou para acomodar-se e continuar fazendo mais do mesmo, sabendo que isso agravará o que deve ser mudado. Deve, sim, abrir espaço para a sabedoria popular e para sua participação nos processos de mudança possíveis de forma constante e progressiva, visando sempre colocar a economia a serviço da vida. E não qualquer economia, mas aquela que garante o que é necessário para uma vida feliz e digna para todas as pessoas sem ferir de morte a Mãe Terra; ao contrário, uma economia que produz o necessário em diálogo com a Terra.
"O grande desafio atual é o de colocar a economia a serviço da vida, dos povos" |
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IHU On-Line - Por que o papa insiste tanto na imagem dos pobres em seus discursos?
Ivo Poletto – Ele não insiste na “imagem dos pobres”. Ele os nomeia, em diversas oportunidades e em diferentes ordens, em sua mensagem aos movimentos populares. Basta ler com atenção sua fala para dar-se conta de como ele está dialogando com pessoas, com setores sociais, como movimentos concretos de catadores de materiais recicláveis, por exemplo, ou de camponeses sem terra, ou de povos indígenas, de famílias sem teto... A ponto de, extremando o diálogo com sujeitos concretos, ele mesmo formular perguntas sobre o que cada um deles pode fazer, provocando-os a não aceitarem o discurso de que não fazem nada, de que não são capazes de fazer algo significativo, que insistem em negar seu valor de pessoas e cidadãos. A resposta é clara: “vocês já fazem muito... e me arrisco a dizer que o futuro da humanidade está nas mãos de vocês...”.
Por isso, o pobre, para o papa, não é uma abstração, um alguém indefinido a ser apresentado como um possível próximo a ser encontrado. Ele é um ser humano, uma comunidade de periferia urbana ou uma vila rural, um povo indígena, um conjunto de migrantes que se arriscam a atravessar o mar em busca de chances de vida, uma mulher com seus filhos... Com certeza, sua iniciativa de provocar oportunidade de encontro mundial dos movimentos populares, isto é, de iniciativas concretas destes pobres concretos, é uma das formas de estreitar relações de solidariedade e de amor aos pobres... seguindo o exemplo de Jesus de Nazaré, quando convidou a “amar como ele amou as pessoas”, e por isso pode dizer: “ninguém ama mais do que a pessoa é dá sua vida pela pessoa que ama”. É tão concreto o pobre para o papa, que vale a pena dar sua vida por ele.
IHU On-Line - Em que contexto e momento histórico o papa lança tanto a Encíclica Laudato Si’ quanto faz o discurso no Encontro com os movimentos sociais na América Latina?
Ivo Poletto – A humanidade vive um tempo desafiador. Há consciência de que não se pode seguir no caminho que produziu o progresso com um tipo de vida centrado e a serviço da economia neoliberal globalizada. Isso serve ao consumismo de uma minoria e à exclusão da maioria da humanidade. Isso exigiu e continua exigindo uma exploração intensiva de bens da natureza que estressam a Terra, provocam aquecimento da temperatura e mudanças climáticas ameaçadoras. Se teimar em seguir por esse caminho, parte da humanidade estará colocando em risco a vida humana, a vida de muitas outras espécies, o próprio ambiente que torna possível a vida.
Nesse contexto, o papa, ao lançar a encíclica Laudato Si’, sobre o Cuidado da Casa Comum, bem como ao falar aos movimentos populares em Santa Cruz de la Sierra, está dando sua contribuição para o processo de preparação e construção da 21ª Conferência da ONU sobre o Clima (COP-21), que será realizada em dezembro deste ano em Paris. Tendo por base o que os pobres estão fazendo, e contando com o potencial de seus movimentos populares, ele provoca os governos a darem os passos necessários na direção de acordos mundiais que enfrentem o que está colocando a vida em risco em todo o planeta. Ele irá aos Estados Unidos em setembro, passando antes em Cuba, e lá, entre as atividades junto ao povo, falará com o presidente Obama, com os políticos no Congresso Nacional e com os representantes dos governos dos países membros na Assembleia Geral da ONU.
Repetindo o que é tão caro e importante à visão apresentada na Laudato Si’, “tudo está interligado”. Isso se dá na relação entre os elementos que constituem o universo e o planeta Terra, entre os seres vivos, incluindo os menores e escondidos no solo, entre a água e os solos e a atmosfera, entre os seres vivos dos mares e a atmosfera, entre os próprios seres humanos. Daí a necessidade de mudanças estruturais urgentes no sistema dominante, já que ele parte e se assenta na separação de tudo, a começar do rompimento da relação entre os seres humanos e a natureza, da relação entre economia e vida, entre economia e ética, entre conhecimentos e apropriação privada de tecnologias, entre política e poder popular...
IHU On-Line - Que relações estabelece entre a Encíclica e o discurso do papa na Bolívia?
Ivo Poletto – Vale repetir: tudo está interligado. Ele próprio lembrou da encíclica em sua mensagem aos movimentos populares, de modo especial quando detalhou o que estendia ser a sua terceira sugestão de tarefa para e com os movimentos sociais: defender da Terra. Não se trata só de “cuidar”, pois esta é uma tarefa permanente. Agora, no contexto desafiador em que nos encontramos, precisamos juntar forças para “defender a Terra”.
Ele já havia pedido licença para propor três tarefas aos movimentos populares, e indicara as duas primeiras: “colocar a economia a serviço dos povos”, e “unir nossos povos no caminho da justiça e da paz”. Como se percebe, são tarefas para este tempo da história, e para realizá-las é essencial unir os povos. Insistiu muito sobre a necessidade de superar divisões, unindo-nos em torno do que é absolutamente necessário para salvar a Terra. A economia, a justiça e a paz, o equilíbrio do ambiente vital – tudo está interligado.
"A economia a serviço da vida é uma das dimensões existenciais necessárias para se chegar ao que o papa denomina 'ecologia integral'" |
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Ivo Poletto – As mensagens da encíclica e da fala aos movimentos populares não são apenas uma palavra amiga aos cristãos, e especialmente aos católicos, para quem Francisco é papa. Nem são palavras amigas para os que estavam em Santa Cruz. Francisco está proferindo palavras amigas para todas as pessoas que têm sentimento de humanidade. O tempo atual exige, e ele está praticando, uma abertura macroecumênica. E ele deixou claro o desejo que todas as instâncias da Igreja Católica – dioceses, conferências episcopais – abram espaço para que se amplie e se aprofunde este caminho de encontro, diálogo e construção de unidade entre os movimentos populares. De sua parte, não teve dúvida: contem sempre com a gente!
A frase final foi exemplar: rezem por mim, e se tiverem dificuldade de rezar, lembrem de mim e desejem que tudo esteja bem. Esta é a forma mais universal de oração: desejar que cada pessoa, que cada ser vivo, esteja bem... Pai, que venha a nós – a cada pessoa e a toda a humanidade – o Teu Reino.
Por Patricia Fachin
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Papa Francisco e uma mudança de rota: como os movimentos populares analisam a realidade? Entrevista especial com Ivo Poletto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU