08 Agosto 2024
Intitular uma era geológica ao impacto do ser humano é outro dos absurdos dos humanistas, que leem o mundo por meio de lentes fortemente antropocentrantes. Ainda estamos imersos na Era Terciária, dentro daquela biosfera que, apesar das contínuas transições, evoluções e flutuações, sancionou o advento do mundo cenozóico.
A opinião é de Roberto Marchesini, etólogo e filósofo italiano. O artigo foi publicado por Marchesini Etologia, 05-08-2024. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A palavra Antropoceno foi se afirmando cada vez mais nestes últimos anos, desde que o biólogo Eugene Stormer, ainda nos anos 1980, e o químico Paul Crutzen, durante um congresso no ano 2000, adotaram-na para indicar uma era geológica caracterizada pelo impacto massivo do ser humano sobre o planeta inteiro. A plena formalização do termo pode ser atribuída ao artigo de Crutzen na revista Nature, “Geology of mankind” (2002), e ao livro “Welcome to the Anthropocene”.
Sem dúvida, o termo destaca o impacto que o ser humano teve no planeta, especialmente nos últimos 200 anos, a ponto de caracterizar sua conformação e suas dinâmicas, acima de tudo sobre a biosfera, que, a partir da segunda metade do século XX, tem conhecido uma drástica redução em termos de biodiversidade, a ponto de ser definida como uma Sexta Extinção em Massa.
Enfatizar essas questões críticas, ou seja, a responsabilidade humana no aquecimento global e no comprometimento dos equilíbrios da biosfera, pode ser um fator positivo, na verdade. Por esse motivo, alguns autores, como Timothy Morton no ensaio “Dark Ecology” (2022), consideram que o termo Antropoceno é o mais antiantropocêntrico que pode existir.
Pelo contrário, eu considero que atribuir uma era geológica ao ser humano é a última fronteira do antropocentrismo e exalta ainda mais a percepção de que o planeta é, no fundo, uma entidade antropoformada e, portanto, controlada pelo ser humano, quando, pelo contrário, nunca houve uma época histórica tão incerta para a sobrevivência da nossa espécie quanto esta.
O antropocentrismo é o fulcro de todos os problemas do ser humano e, se são diversas as fontes que o alimentam – tais como:
i) a perspectiva antropocentrada, uma espécie de egocentrismo de espécie;
ii) a ideologia antropocêntrica, expressão típica do humanismo –, não há dúvida de que essa intitulação também é capaz de estimular a ambição humana.
A palavra Antropoceno, de fato, é capaz de reforçar:
iii) o suprematismo antropocêntrico, ou seja, a ideia de um poder-superioridade do ser humano sobre a biosfera, quando, na realidade, é o ser humano quem está cada vez mais exposto às flutuações da biosfera;
iv) a estética antropoplástica, ou seja, a ideia de que a conversão das entidades naturais em entidades artificiais é realizável ao extremo e, em todo o caso, representa uma melhoria;
v) o orgulho demiúrgico, a ilusão de que o ser humano pode gerar um mundo alternativo à biosfera.
A minha impressão, por isso, é que, ao contrário do que afirma Morton, com quem, aliás, compartilho as outras afirmações sobre a responsabilidade humana pelo que está acontecendo, é que a intitulação geológica nada mais faz do que alimentar os piores vícios do antropocentrismo, agindo até mesmo em aspectos que têm pouco a ver com a racionalidade.
No fundo, as pessoas tendem a salvaguardar – no sentido de proteger, elevar, reforçar – um Eu que se estende em círculos concêntricos aos familiares, aos diversos pertencimentos, a tudo aquilo sobre o qual pode se projetar – um Nós que se adensa e se consolida graças a uma alteridade contralateral. Nada como o não humano é capaz de realizar melhor essa contralateralidade, razão pela qual enfraquecer o significado da biosfera significa inevitavelmente reforçar o antropocentrismo, quer com um sentimento de culpa ou não.
Outros autores não concordam com o termo Antropoceno porque este atribuiria uma culpa genérica ao ser humano quando, pelo contrário, o desastre ecológico em curso seria mais atribuível a um sistema social, econômico e cultural que foi se afirmando a partir de um certo momento. Por exemplo, dentro da corrente do Marxismo Ecológico, foi-se afirmando o termo substitutivo do Capitaloceno, proposto em 2009 pelo ecologista sueco Andreas Malm e desenvolvido por Jason Moore no ensaio “Anthropocene or Capitalocene?” (2017), para enfatizar que não era correto atribuir a responsabilidade pelo desastre ecológico a uma humanidade genérica, mas sim a um sistema econômico e social específico.
De forma semelhante, Donna Haraway fala de um Plantationocene, para ressaltar a importância do modelo de plantation para compreender não só a destruição da paisagem, convertida por simplificação, mas também da exploração do ser humano, um modelo que se estende da agronomia para a fábrica, para a zootecnia e, em geral, para o modo como o trabalho assalariado é concebido.
Na realidade, podemos notar pontos de convergência entre essas três definições, por exemplo na ideia de considerar as entidades naturais como recursos à disposição ao ser humano, que reivindica o seu usufruto ad libitum.
O segundo aspecto é que, em todo o caso, aceita-se a ideia elíptica de uma era geológica nova, desencadeada por forças que, de algum modo, estão dentro da nossa espécie, levantando a hipótese de um poder geomórfico do ser humano.
Tendo de seguir esse caminho – que, no entanto, eu contesto e vou explicar por que –, talvez fosse mais correto atribuir essa mudança à revolução do Neolítico, quando algumas populações começaram a modificar o ambiente por meio da agricultura e da pecuária, criando uma nova situação biocenótica que, depois, evoluiu para muitas formas diferentes graças à disponibilidade de máquinas e de fontes de energia, e em relação às mudanças por elas produzidas.
A partir desse momento, ao modificar rios e construir canais, ao limpar e arar terrenos, ao construir espaços ecumênicos e depois portos, cidades, fronteiras e assim por diante, o ser humano iniciou aquela conversão do ambiente que hoje parece ser uma expressão do humano.
É claro que, no início, o impacto não era muito relevante, nada mais do que algo que se assemelhava à construção de nichos vigente em outras espécies, tal como a criação e a agricultura podiam evocar uma simbiose.
Mas, depois, sobretudo a partir das revoluções industriais, essa transformação assumiu uma relevância tal a ponto de acelerar as mudanças provocadas pelo homem sobre a biosfera.
Podemos, então, falar de um gradiente neolítico, para indicar o nível de mudança trazido ao planeta em uma certa sociedade, em uma escala que pode partir do gradiente básico pré-neolítico, por exemplo a simples coleta de alimentos ou a utilização de cavernas como abrigos, ainda presentes em algumas comunidades.
Isso significaria que, dependendo do gradiente neolítico de cada sociedade, estaríamos diante de formas diferentes de responsabilidade humana perante o desastre ecológico.
Mas, se eu evito falar de um Neoliticoceno, do qual surgiriam aqueles gérmens de degradação do planeta, de erosão da biosfera, de submissão dos animais, de exploração do ser humano e de todos aqueles desastres já em sua infância e depois conclamados no capitalismo, é porque eu não acredito que estejamos diante de uma era geológica nova.
É claro que eu tenho diante dos meus olhos o desastre ecológico em curso e o impacto das economias humanas sobre o planeta, mas, assim como eu nunca atribuiria o impacto do meteorito sobre o plácido mundo do Mesozoico a um Asteroideceno, nem mencionaria um Vulcanoceno para falar da crise que marcou o fim da era paleozoica, também não farei isso agora. O motivo será dito em breve.
O ser humano não está inaugurando uma nova era, mas simplesmente pondo em risco a era geológica cenozoica que sancionou o sucesso de alguns animais como os besouros, as aves e os mamíferos. Não somos diferentes do asteroide que caiu sobre o universo dos dinossauros há 65 milhões de anos ou das armadilhas siberianas que há cerca de 250 milhões de anos levaram à extinção dos trilobitas e de dois terços das famílias dos anfíbios terrestres e dos répteis presentes.
O impacto da extinção do Permiano-Triássico foi tremendo, com a extinção de 80% das espécies marinhas e de mais de 70% dos vertebrados terrestres, causando uma perda tão grave de biodiversidade que demorou mais de 10 milhões de anos – comparemos esse dado com o do aparecimento dos Homininae – para restaurar uma nova biosfera.
Intitular uma era geológica ao impacto do ser humano é outro dos absurdos dos humanistas, que leem o mundo por meio de lentes fortemente antropocentrantes. Ainda estamos imersos na Era Terciária, dentro daquela biosfera que, apesar das contínuas transições, evoluções e flutuações, sancionou o advento do mundo cenozóico.
Somos, é verdade, a nova causa de uma extinção em massa, um processo já em curso que, muito provavelmente, marcará o fim desta era geológica, varrendo da face do planeta também este estranho mamífero que pensa que não é um animal e que não está submetido ao metabolismo da biosfera.
É claro, há uma grande diferença entre intitular uma era geológica que pensamos que está se abrindo diante de nós, à qual assistimos como em uma vernissage, sob a aparência intelectual de um arrependido que, no entanto, não se converte – aquele fascínio da contradição que tanto agrada a Morton –, em vez de ser nada mais do que um acidente, um dos muitos que ocorreram sobre a Terra, mesmo que nós contemos seis deles, nada diferentes de um asteroide ou de um excesso de atividade vulcânica.
Mas o antropocentrismo está todo aqui: transformar em especial aquilo que é simplesmente específico, uma incurável vanglória.
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A ridícula fábula do Antropoceno. Artigo de Roberto Marchesini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU