05 Outubro 2022
A hospitalidade eucarística pode representar um autêntico laboratório ecumênico aberto à experimentação doutrinal e litúrgica, um lugar para se cultivar concretamente a convivialidade das diferenças, uma possibilidade para todos os cristãos – consagrados e leigos – se reapropriarem do momento central do cristianismo.
A reflexão é de Pietro Urciuoli, engenheiro italiano, membro da Ordem Franciscana Secular e sócio do Secretariado de Atividades Ecumênicas (SAE). O artigo foi publicado em Viandanti, 28-09-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A separação da mesa eucarística representa um dos principais canteiros de prova do ecumenismo. São vários os argumentos teológicos, principalmente eclesiológicos, a favor ou contra, que podem ser sintetizados nesta alternativa: a eucaristia deve ser considerada como o sustento do caminho ecumênico ou como seu coroamento final?
Descendo a um nível mais prático, há quem considere a hospitalidade eucarística no mínimo inoportuna, considerando que seu caráter intrinsecamente transgressivo pode prejudicar, mais do que beneficiar, a causa do ecumenismo.; Para outros, em vez disso, sinais fortes desse tipo são indispensáveis para exortar as Igrejas a darem passos concretos no caminho da unidade.
Diante dessas discussões, surge então a vivência cotidiana de quem experimenta na própria pele a dor da separação, dos matrimônios interconfessionais às comunidades mistas envolvidas no setor social (pensemos nos corredores humanitários). Como explicar a essas pessoas que compartilhar uma vida de fé não é suficiente para compartilhar a eucaristia?
A hospitalidade eucarística, portanto, parece suspensa entre uma pluralidade de motivações contrárias. Para a Igreja Católica Romana (Unitatis redintegratio, n.8), ela deve ser considerada ao mesmo tempo impedida, se for considerada no seu valor de sinal de unidade da Igreja, e recomendada, se, ao invés disso, for considerada como instrumento de participação na vida da graça.
Se considerarmos ainda que as problemáticas referentes à eucaristia devem ser ligadas às do ministério ordenado – outro tema profundamente divisivo do caminho ecumênico – é fácil compreender que a hospitalidade eucarística ainda está bem longe de ser aceita pelas Igrejas [1].
Onde estamos, então? É preciso distinguir os níveis de reflexão.
No nível normativo, as posições das principais denominações cristãs são estáveis e consolidadas. De fato, embora no curso do caminho ecumênico tenham ocorrido importantes convergências, sobre a eucaristia – assim como sobre o ministério ordenado, a sucessão apostólica e o primado petrino – as distâncias entre as Igrejas são substancialmente as mesmas de sempre. Para a maioria das denominações evangélicas, principalmente para as históricas, a Santa Ceia é “aberta”, ou seja, cristãos pertencentes a outras confissões também são admitidos para participar.
Para a Igreja Católica Romana, porém, as coisas são diferentes: de acordo com o Código de Direito Canônico de 1983 (cân. 1.365) a communicatio in sacris entre católicos e não católicos – isto é, a partilha da vida sacramental e especificamente os sacramentos da penitência, eucaristia e extrema unção – deve ser considerada vetada, a menos que haja exceções limitadas e específicas, diferentes quando as relações são com as Igrejas orientais ou com as outras confissões cristãs [2].
Não houve nenhuma novidade normativa substancial nem mesmo no “Vade-mécum ecumênico” do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos (agora Dicastério) de dezembro de 2020 [disponível em português aqui], que trata do assunto no n. 36, lembrando tanto o Código de Direito Canônico quanto o Diretório Ecumênico de 1993.
Finalmente, no que diz respeito às Igrejas Ortodoxas, o problema simplesmente não se levanta, pois nenhuma forma de comunhão sacramental é concebível fora de uma prévia comunhão eclesial.
Algo se move, porém, no plano da reflexão teológica. Na Alemanha, em 2019, o ÖAK (Ökumenische Arbeitskreis), um grupo de trabalho ecumênico de teólogos protestantes e católicos fundado em 1946 com o objetivo de discutir juntos questões dogmáticas, produziu um volumoso documento, “Juntos à mesa do Senhor” [disponível em italiano aqui]. Algumas passagens conclusivas do documento (n.8) são significativas:
“O Grupo de Trabalho ecumênico de teólogos evangélicos e católicos considera teologicamente fundamentada a prática da participação recíproca na celebração da Ceia/Eucaristia no respeito das tradições litúrgicas alheias. […] Esse parecer implica o reconhecimento das respectivas formas litúrgicas, além dos serviços de presidência, do modo como são realizados pela comunidade que celebra e convida à celebração, em nome de Jesus Cristo, os batizados de outras confissões. […] Na práxis por nós proposta, pressupõe-se o reconhecimento do batismo como vínculo sacramental da fé e como pressuposto da participação […]” [3].
Na Itália, em junho de 2019, os teólogos Giovanni Cereti e Paolo Ricca redigiram uma espécie de manifesto, “A Ceia do Senhor” [disponível em italiano aqui], assinado por várias personalidades do panorama eclesial italiano. Os dois teólogos concluem afirmando que se deve considerar possível “que toda pessoa cristã batizada, em obediência à própria consciência e permanecendo em plena solidariedade com a própria Igreja, seja acolhida como hóspede bem-vindo em todas as mesas cristãs em que se celebra a Ceia do Senhor” [4].
Também da região alemã provêm sinais interessantes no nível da práxis. Foi muito significativo o que ocorreu durante o terceiro Congresso da Igreja Ecumênica (Ökumenischer Kirchentag, ÖEKT), que foi realizado de 13 a 16 de maio de 2021, em Frankfurt. Na noite de encerramento, a copresidente protestante do Kirchentag, Bettina Limperg, participou da missa católica na Catedral de Frankfurt, recebendo publicamente a eucaristia. Da mesma forma, o copresidente católico do Kirchentag, Thomas Sternberg, participou da Ceia do Senhor durante o culto protestante.
É mais difícil fazer um balanço das experiências concretas de hospitalidade eucarística na Itália, onde ainda são poucas as experiências sistemáticas e contínuas – mesmo que não faltem aquelas esporádicas e ocasionais – entre católico-romanos e evangélicos.
São várias as causas disso. Certamente, além das diferenças de caráter doutrinal, outros fatores também têm seu peso, incluindo o temor de punições canônicas para os primeiros, uma desconfiança residual e latente em relação ao mundo católico para os segundos. De todos os modos, trata-se de experiências pouco publicizadas (muitas vezes deliberadamente) que a newsletter Ospitalità Eucaristica [5], ativa nas redes há quatro anos [página no Facebook], está tentando trazer à tona.
Pessoalmente, e para concluir, considero que o cerne do problema não é a prática da hospitalidade eucarística em si, mas o modo como ela é preparada, ou seja, o modo como ela é inserida em um caminho formativo e em um contexto de relações ecumênicas. Caso contrário, seria apenas um novo ritualismo substancialmente, com um fim em si mesmo, motivo de perplexidade (senão até de escândalo) para a maioria.
Adequadamente preparada, a hospitalidade eucarística, ao contrário, pode representar um autêntico laboratório ecumênico aberto à experimentação doutrinal e litúrgica, um lugar para se cultivar concretamente a convivialidade das diferenças, uma possibilidade para todos os cristãos – consagrados e leigos – se reapropriarem do momento central do cristianismo, vivisseccionado há muitos séculos em disputas teológicas para alguns poucos adeptos aos trabalhos.
Enfim, um contexto ótimo para exercer aquele sensus fidei do povo de Deus ainda muito adormecido e negligenciado, aquele “instinto sobrenatural próprio de todos os batizados de reconhecer a doutrina e a práxis cristãs autênticas e de aderir a ela” [6], para a construção do ecumenismo dos anos vindouros.
1. Em geral, as tentativas feitas até agora são principalmente limitadas à área evangélica (com referência particular às denominações históricas) e à área católico-romana, enquanto a ortodoxa permanece substancialmente alheia.
2. O Código de Direito Canônico foi modificado em junho de 2021, porém não há novidades sobre o assunto: o can. 1.365 foi reproduzido de modo substancialmente idêntico no cân. 1.381.
3. Il Regno-documenti, n. 11, de 1º de junho de 2020.
4. O texto é reproduzido no livro M. Ricciuti, P. Urciuoli (orgs.), “Ospitalità eucaristica: in cammino verso l’unità dei cristiani” (Turim: Claudiana, 2020). O volume, por meio das contribuições de 19 expoentes das principais Igrejas cristãs presentes no território italiano, dá conta da perspectiva católica, ortodoxa, luterana, batista, metodista, valdense, adventista, anglicana e pentecostal sobre o tema da hospitalidade eucarística.
5. Para receber a newsletter Ospitalità Eucaristica, pode-se escrever para Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
6. Comissão Teológica Internacional, “O sensus fidei na vida da Igreja”, 2014.
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Hospitalidade eucarística: um laboratório ecumênico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU