12 Junho 2024
"De fato, se a ganância do médico pontifício Riccardo Galeazzi Lisi chega ao ponto, em 1958, de vender à impressora francesa as fotos de Pio XII em agonia, seis anos depois a revista semanal aluga um avião Caravelle – equipado para a ocasião como laboratório fotográfico – para receber boa parte da equipe editorial enviada para acompanhar e documentar a viagem, realmente histórica, de Paulo VI à Terra Santa", escreve Giovanni Maria Vian, catedrático de Filologia Patrística na Universidade de La Sapienza e ex-diretor do jornal L’Osservatore Romano nos anos 2007-2018, em artigo publicado por Domani 09-06-2024. A tradução é de Luisa Rabolini.
Na pré-história da fotografia no início há um papa. E outro aparece nos primórdios do cinema. Mas em ambos os casos os contornos do que aconteceu são desfocados. Começos nebulosos, portanto, ainda que a relação entre o papado e as duas novas artes tenha sido muito intensa, entre fortunas rapidíssimas, acidentes constrangedores, interesses econômicos e especulações, numa sucessão de histórias - muitas vezes recorrentes - que chegam à era dos celulares.
Nascido em uma família ao serviço da monarquia francesa, agora em declínio, Nicéphore Niépce parece encaminhado para uma carreira eclesiástica, mas em 1792 alista-se no exército revolucionário. Porém, a sua verdadeira vocação é a pesquisa e os experimentos científicos. Engenheiro, desde 1816 estuda a heliografia, um processo que lhe permitirá reproduzir imagens em suportes – como o "betume da Judéia" –sensíveis à luz.
A primeira representação fotográfica parece ter sido em 1822 aquela do Papa, o idoso Pio VII, monge protagonista de acontecimentos dramáticos que o obrigaram diversas vezes a viagens forçadas à França: para a coroação imperial de Napoleão e depois como seu prisioneiro durante anos. De um retrato – provavelmente uma gravura – do pontífice, pela primeira vez tendo se tornado popular além das fronteiras de seus estados justamente por causa de seus infortúnios, Niépce retira a imagem em vidro do Papa Chiaramonti, que foi perdida.
Mais de vinte anos depois, Gregório XVI, outro monge, visita Tivoli e ali, em 2 de outubro de 1845 é fotografado, sozinho e com a sua comitiva, por um pioneiro da nova arte, o jesuíta Vittorio della Rovere, que também apontou suas lentes para a lua e mais tarde deixaria a ordem.
Mas não são conservadas nem mesmo essas imagens, as primeiras de um pontífice obtidas ao vivo com o daguerreotipo, técnica aperfeiçoada por aquela de Niépce e que havia sido descrita seis anos antes por Giuseppe Gioacchino Belli no Zibaldone.
Poucos meses se passam das fotografias tiburtinas, e após a morte do Papa Cappellari é eleito Giovanni Maria Mastai Ferretti, de 54 anos, que assume o nome de Pio IX e reinará por 32 anos: um recorde absoluto. O jovem pontífice – recebido com entusiasmo depois dos sufocantes quinze anos gregorianos – é fotografado nos jardins do Quirinale no mesmo dia da sua coroação, 21 de junho de 1846.
Desde então, as imagens papais e a Roma papal multiplicaram-se rapidamente. Quem investiga as origens, com rigor histórico e paixão divertida, é o primeiro e maior dos vaticanistas, o escritor Silvio Negro, no livro Seconda Roma, quella dell’ultimo ventennio (1850-1870) del potere temporale pontifício [Segunda Roma, aquela do último vintênio (1850-1870) do poder temporal pontifício.
Na Roma do último papa rei, entra novamente em cena um clérigo, Antônio D'Alessandri, o “primeiro fotógrafo profissional romano”, que, no entanto, “não tinha uma vocação eclesiástica imperiosa", comenta com leve ironia Negro.
Voltando de Paris com novas máquinas e técnicas, abre um ateliê na via del Babuino. "A autoridade eclesiástica, devidamente consultada por se tratar de um padre, deu o seu consentimento, desde que não usasse a batina enquanto derramava ácidos e atendia os clientes".
O fotógrafo monta assim uma empresa familiar que rapidamente alcança o sucesso e obtém o direito exclusivo dos retratos do papa e da sua corte, retratando – após a queda do reino das Duas Sicílias – também os Bourbon exilados em Roma. Apesar de um decreto do cardeal vigário ameaçando multas, confiscos e penas severas para combater "cenas indecentes" ou mesmo obscenas realizadas com os novos processos, em 1862 estoura um escândalo que assume proporções europeias. Até os irmãos D'Alessandri são envolvidos, mas não têm culpa.
Na verdade, dois fotógrafos trapaceiros (mais tarde presos e julgados) compraram deles vários retratos oficiais de figuras da Cúria para criar fotomontagens maliciosas. A linda e extravagante rainha de Nápoles sem trono era representada na alegre companhia de prelados e do próprio pontífice: o rosto de Maria Sofia era grudado nas fotografias de uma modelo, “retocadas com habilidade de um artista" e novamente fotografadas.
Depois das vicissitudes e dos confrontos militares que precedem a tomada de Roma em 1870, documentada por Dom Antônio, ele entra em atrito com a cúria e acaba deixando o sacerdócio, mas continua a exercer a sua profissão por muito tempo, com notável habilidade e sucesso. Dessa vez foi substituído não por um clérigo, mas por um leigo, Francesco De Federicis.
"Livreiro e dono de papelaria" de profissão, vendia objetos sagrados na Piazza della Minerva e tinha em depósito fotografias de Roma e do Papa. As circunstâncias que o levam, desde 1878, a obter o cargo de fotógrafo papal - à qual se soma em 1901 a de "cinematógrafo pontifício" – são, depois da morte de Pio IX, o advento do novo Papa Leão XIII, mas, sobretudo, o conhecimento de um irmão de pontífice, o teólogo jesuíta Giuseppe Pecci, depois cardeal.
O comerciante tem a feliz ideia de lhe oferecer, já no dia seguinte à eleição, uma fotomontagem onde tinha aplicado as vestes papais a um retrato recente de Gioacchino Pecci, e recebe a proposta de fotografar o pontífice.
“Só objetei que não sendo fotógrafo, nem tendo estúdio, teria que dotar-me de equipamentos e artistas; o que eu faria assim que me fosse dada a garantia da vontade do Santo Padre" recordará mais tarde De Federicis, que durante anos multiplicará os insistentes pedidos para fotografar - e mais tarde para filmar – o papa, com a motivação explícita de ter que sustentar a família.
Na memória desarmante daquele episódio, são antecipados altos e baixos de um personagem que, quase por acaso, aparece no centro de uma situação que se revelará cada vez mais crucial na representação – e na projeção simbólica – do papado contemporâneo. Como escreve Gianluca della Maggiore em seu Le vedute delle origini su Leone XIII (Utet), a história de De Federicis “parece caracterizada por uma boa dose de aproximação e imperícia face a uma profissão nova", que nem o atraia.
Ao contrário do seu sujeito, o Papa Pecci. Este, quando ainda era bispo em Perugia, em 1867 havia dedicado refinados versos em latim à “ars photographica”. E já nos primeiros anos de pontificado uma alegoria da nova arte foi pintada por Domenico Torti em um afresco na Galeria de Candelabros dos Museus do Vaticano.
Quase como que para antecipar o entrelaçamento da fotografia na história da Santa Sé, documentada com muitas imagens da coleção Les photos secrètes du Vatican (Gründ-Plon) graças ao riquíssimo arquivo do Paris Match, por sua vez centro de dois eventos opostos, mas ambos emblemáticos.
De fato, se a ganância do médico pontifício Riccardo Galeazzi Lisi chega ao ponto, em 1958, de vender à impressora francesa as fotos de Pio XII em agonia, seis anos depois a revista semanal aluga um avião Caravelle – equipado para a ocasião como laboratório fotográfico – para receber boa parte da equipe editorial enviada para acompanhar e documentar a viagem, realmente histórica, de Paulo VI à Terra Santa.
Como os papas não mais italianos, as imagens se multiplicam desproporcionalmente. De fato, existem milhões de fotos realizadas por Arturo Mari com João Paulo II e por Francesco Sforza com os seus sucessores.
Mas o improvisado e altamente recomendado fotógrafo De Federicis também havia se cruzado com a entrada na história do cinema de um pontífice, o já muito idoso Leão XIII. Um episódio que foi objeto de discussão – como escreveu Mario Verdone, pai de Carlo, há cerca de sessenta anos – se tal primogenitura pertencesse aos irmãos Lumière graças ao seu agente Vittorio Calcina ou à nova-iorquina American Mutoscope Company, (depois conhecida como Biograph) e William Dickson. Foi este último o verdadeiro autor de pelo menos sete breves tomadas entre abril e julho de 1898 no Palácio Apostólico e nos jardins do Vaticano.
Um papel de destaque no caso foi desempenhado por alguns bispos estadunidenses e o sucesso das imagens foi realmente mundial. Mas surgiram controvérsias igualmente acaloradas, especialmente sobre o uso comercial dos filmes, apoiadas com grande eficácia pelo sensacionalismo da imprensa amarela de William Randolph Hearst, que em 1941 inspiraria Orson Welles para seu Cidadão Kane. Mas os tempos tinham mudado e no ano seguinte seria o próprio Pio XII em Pastor angelicus a interpretar a si mesmo.
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Os papas são os protagonistas da pré-história da fotografia. Artigo de Giovanni Maria Vian - Instituto Humanitas Unisinos - IHU