31 Março 2023
Por aproximação e sugestão, é possível encontrar algumas referências às solicitações do Papa Francisco em três pinturas de Caravaggio, reconhecendo, porém, que a arte não deve fazer discursos diretamente interpretativos ou teológicos.
A reflexão é de Francesco Parimbelli, pintor italiano, em artigo publicado por La Barca e il Mare, 24-03-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Algumas linhas do magistério e da pastoral do Papa Francisco, junto com a complexa riqueza de seus documentos, já foram delineadas em vários textos.
Foram delineados o amplo consenso e a simpatia que o papa recebe, até mesmo por parte de um mundo tradicionalmente distante da Igreja. Por outro lado, foram mencionados os atritos e as hostilidades latentes de uma parte do clero em relação ao pontífice.
Na imediaticidade do senso comum, estão impressas algumas características distintivas do papa: a espontaneidade da linguagem e do modo de comunicar, a atenção aos últimos e aos fracos, o apelo à justiça nas relações políticas e nas relações de trabalho, a sintonia e a proximidade com as pessoas, o aborrecimento diante dos privilégios do clero, os constantes convites ao cuidado do ambiente para salvaguardar o futuro da terra, os contínuos apelos à paz…
Foram recordados gestos e eventos que parecem simbólicos (o papa durante a pandemia em uma Praça São Pedro deserta, em Lampedusa após um massacre de migrantes), e algumas frases que ficaram na memória (“a globalização da indiferença torna-nos todos responsáveis”, “como eu gostaria de uma Igreja pobre para os pobres...”).
Por aproximação e sugestão, tentemos encontrar algumas referências a essas solicitações em três pinturas de Caravaggio, cientes, porém, de que a arte não deve fazer discursos diretamente interpretativos ou teológicos.
A pintura poderia se intitular “Retrato de um cesto de frutas”, tamanha é a importância conferida ao objeto, que não é nada genérico, mas sim específico e individual.
“Cesto de frutas”, 1597-1598, Milão, Pinacoteca Ambrosiana (Foto: Wikimedia)
A perspectiva é reduzida, achatada pela visão frontal, pelo horizonte que atravessa o objeto.
A profundidade, ao contrário, é sugerida e como que absorvida pela corporeidade das frutas, expressada em volume e não por linhas de fuga de perspectiva, e é quase negada pela semicontraluz de fundo que tende a esmagar o conjunto, destacando-o sobre a luminosidade do fundo.
O fundo plano é de gesso ocre, quase uma reinterpretação daquele ouro que dava às figuras dos séculos XIII e XIV o seu isolamento hierático e a sua transcendência. A posição central confere ao cesto uma grandiosidade monumental, em tensão com a assimetria produzida pelo ramo de videira que rompe transversalmente o enquadramento, estendendo-se para além das margens do quadro.
É uma composição humilde e ao mesmo tempo monumental. Por que tanta grandiosidade e tanto silêncio solene, tanto cuidado na execução para um objeto tão modesto e cotidiano?
Certamente, não se trata da simples alegoria da natureza morta como representação da caducidade das coisas e da beleza. Caravaggio trata esse cesto de frutas como trata a figura: o que é humilde, o que parece irreparavelmente destinado a se corromper e a desaparecer, na verdade, está envolto em ouro, precioso, sagrado, eterno, porque é conservado e salvo por Deus. Sua fragilidade e caducidade tornam-se sacramento, assim como para o ser humano.
Uma cena “de gênero” (o ambiente da taverna) e uma cena sagrada ao mesmo tempo.
Não fica imediatamente claro quem é Levi, conhecido como Mateus: pode ser o homem de barba, ricamente vestido e com o rosto iluminado (como ele realmente é), mas também poderia ser o jovem à cabeceira da mesa, com o rosto obscurecido pela sombra e concentrado na contagem das moedas.
“Vocação de São Mateus, 1599-1600, Roma, Igreja de San Luigi dei Francesi, Capela Contarelli (Foto: Wikimedia)
Jesus, imerso na sombra, aponta para essa direção, mas a confusão entre Mateus e o jovem turvamente absorto no dinheiro é sem dúvida intencional: isso é demonstrado pelas mãos, que à primeira vista parecem pertencer ambas ao jovem cobrador de impostos, mas são duas mãos direitas: uma de Mateus, a outra de seu vizinho; e suas mangas também se confundem e depois se distinguem.
O dedo indicador de Mateus é incerto ao apontar para si mesmo ou para seu companheiro. Ele parece dizer: “Você quer a mim ou àquele perto de mim?” ou: “Veja, eu sou como ele”. De fato, eles estão contando as mesmas moedas, com suas mãos perto uma da outra.
Os gestos totalmente semelhantes das mãos que apontam também têm significados e expressões diferentes na pintura: os de Jesus são determinados; os de Pedro (ao lado de Jesus) e de Mateus são perplexos e interrogativos.
Portanto, a mesma cena, o mesmo aceno, a mesma evidência das coisas são captados de maneiras variadas pelos espectadores: indiferença, fechamento, surpresa, interrogação. A cena “de gênero”, o ambiente da taberna, é o ambiente cotidiano em que se manifesta o evento sagrado para quem tem olhos e ouvidos para entender.
Quem é o chamado? Aquele com o rosto já iluminado por uma revelação ou aquele com o rosto obscurecido? Não serão ambos?
“Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores”: Jesus amplia e nos faz compreender o sentido do chamado: eu chamo você, mas também chamo o outro e, por meio de você, chamo a todos. E Caravaggio atualiza a cena ao vestir os personagens com roupas do século XVII: o chamado é para cada um, hoje.
Cristo está na sombra, apenas seu rosto e sua mão emergem na luz. Ele chama sem que se possa vê-lo inteira e plenamente: a vocação e o caminho cristãos envolvem um discernimento contínuo, difícil, na fé.
Segundo algumas leituras críticas, a poética de Caravaggio sobre as pessoas pobres e humildes teria se inspirado na corrente pauperista da Contrarreforma, de Carlos Borromeu e de seu primo, o cardeal Federico dei Promessi Sposi, autor do tratado “De pictura sacra”.
No ambiente milanês em que Caravaggio deu seus primeiros passos, essas inspirações e esse clima estavam muito presentes: o pauperismo tinha o ideal de uma Igreja pobre, livre da tentação da pompa e do triunfalismo, para poder falar melhor aos corações simples do povo de Deus .
No entanto, se as coisas fossem realmente assim, Caravaggio não teria se deparado com tantos obstáculos para fazer com que as imagens que lhe foram encomendadas fossem aceitas por igrejas e ordens religiosas.
Caravaggio, como todo grande artista, é ao mesmo tempo pintor de seu tempo, capaz de perceber sensibilidades e fermentações que o cercam, traduzindo-os em suas obras, mas também um artista que supera e ultrapassa seu próprio tempo, para tomar estradas que seus contemporâneos custam a perceber e a compreender completamente.
Podemos dizer algo assim também sobre o Papa Francisco?
Caravaggio era o protegido de Frederico Borromeu, mas sabe-se lá se, no fundo de sua alma, não havia mais coisas que o uniam ao herege Giordano Bruno condenado à fogueira.
Recordávamos que uma das imagens mais impressas na memória de muitos, pelo seu caráter icônico e simbólico, é a do Papa Francisco que, durante a pandemia, reza em uma Praça São Pedro deserta e chuvosa, invocando o Senhor e sua proximidade à dor e à morte dos seres humanos.
Na “Ressurreição de Lázaro” encontramos, simetricamente invertida, a mesma figura de Cristo da “Vocação de Mateus”: Lázaro está em plena luz, e Cristo repete o mesmo gesto com o braço direito levantado, com a mão que chama e que salva.
“Ressurreição de Lázaro”, 1609, Museu Regional de Messina (Foto: Wikimedia)
Por que, mais uma vez, Caravaggio coloca na sombra aquele que, junto com Lázaro, é o ator principal do episódio evangélico? Tentemos interpretar: você conhece Cristo sobretudo pela marca decisiva que ele deixa em sua vida, Deus habita dentro de você e faz resplandecer o seu corpo.
Uma veste de luz abraço o corpo estendido e ainda rígido de Lázaro, aquele corpo esplêndido, disposto em cruz como se dissesse que cada ser humano tem seu próprio sofrimento pessoal. A luz também investe as figuras das pessoas que o seguram: os parentes daquele que volta à vida, raptado da morte.
O restante dos presentes se move nas sombras.
O contraste evocado por Caravaggio torna-se paradoxal: são eles, todos os outros, que parecem imersos nas trevas da morte, enquanto Lázaro, que ainda parece morto, nunca se afastou realmente da vida.
É muito sugestiva a interpretação de Tomaso Montanari, que atribui a dor e o pranto de Jesus, antes do milagre, à consciência de que vai tirar seu amigo do repouso destinado à vida de ressurreição: “É invencível a sensação de que Lázaro não quer: isto é, que a sua natureza se opõe desesperadamente a essa inatural irrupção de um poder sobre-humano, que o morto resiste ao inútil esforço de voltar à vida para, depois, inevitavelmente, morrer novamente”.
É comovente o detalhe do rosto da irmã que quase quer soprar a vida ao irmão.
No centro quase exato do quadro, a palma de uma das mãos de Lázaro se estende para cima; uma mão estendida como tantas vezes ocorre nas pinturas do artista: invocação, anseio, súplica, gesto criatural do ser humano que busca seu Salvador.
Como sempre, é também uma união da luz e da sombra, sinal enigmático do além-fronteira (ao qual talvez aludisse a janela, opaca, nem clara nem escura, na “Vocação de Mateus”) .
Diz-se que Caravaggio, na pintura de “Davi com a cabeça de Golias”, atribuiu suas próprias feições à cabeça decepada do inimigo abatido. O rosto desfigurado pela morte emerge do fundo escuro: um autorretrato que é, ao mesmo tempo, deboche e confissão trágica, desesperada.
“Davi com a cabeça de Golias”, 1609-1610, Roma, Galeria Borghese (Foto: Wikimedia)
Pensemos novamente naquele rosto, na mão estendida de Lázaro, em toda a humanidade pobre e esplêndida representada por Caravaggio.
Assim, às vezes acontece que no escuro
um rosto ensanguente, uma mão
nos implore – assim há
quem ignore e quem, em vez disso, traga no coração
a comunhão dos vivos e dos mortos.
(Giovanni Raboni)
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Papa Francisco e a Igreja pobre: uma leitura a partir das pinturas de Caravaggio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU