22 Setembro 2018
"O Papa Francisco é perfeito? Ele seria o primeiro a responder que não. No entanto, sua semelhança com Jesus em transmitir um olhar de misericórdia para milhões em grande necessidade é convincente e poderosamente comovente para os muitos que se juntam a ele em todo o mundo", escreve Nancy Enright, professora nos departamentos de estudos ingleses e católicos da Seton Hall University, onde dirige o programa do currículo principal da universidade, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 21-09-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
"Vocação de São Mateus" (1599-1600), obra de Caravaggio, na Capela Contarelli, São Luís dos Franceses, Roma (Foto: Wikimedia Commons/Paul Hermans)
[Nota de IHU On-Line: ontem, dia 21 de setembro, foi a festa de São Mateus, apóstolo e evangelista.]
Críticas ao Papa Francisco muitas vezes se concentram em como ele está "confundindo" os crentes por não ser suficientemente rigoroso na aplicação do ensinamento da Igreja. O colunista do New York Times, Ross Douthat, é um exemplo daqueles que criticam Francisco por "mudanças na moralidade sexual, acima de tudo, mais uma liberalização geral na hierarquia e na Igreja".
Essas críticas parecem ignorar o fato de que o próprio Jesus foi criticado por exatamente a mesma coisa, e enquanto Jesus desafiou seus seguidores a irem além da lei ("Ouvistes que foi dito..."), ao mesmo tempo, o ministério de Jesus e seus primeiros seguidores concentrou-se em transmitir amor e misericórdia, em vez do esclarecer regras.
Havia muitas regras no judaísmo no tempo de Jesus e muitos professores que se concentravam em explicá-las. Embora Jesus tenha dito: "Não julgueis que vim abolir a lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição." (Mateus 5:17), Jesus foi frequentemente criticado, como Francisco é, por não ser rigoroso ou rígido o suficiente na maneira como lidava com os pecadores ou aplicava a lei sobre eles.
Os Evangelhos oferecem muitos exemplos desse tipo. Incentivar uma reação de misericórdia àqueles considerados fora da lei significa uma renúncia à lei? Essa reação é realmente confusa, ou é simplesmente desafiadora para as premissas existentes? Um encontro bíblico e sua representação artística dão uma perspectiva para essas questões.
O incidente em questão, a vocação de Mateus, também conhecido como Levi, conecta-se significativamente com o relato de Francisco de sua vocação para ser padre, aos 17 anos de idade, na festa de São Mateus. Em vários artigos sobre Francisco, mais notavelmente a narrativa do padre jesuíta Antonio Spadaro de várias entrevistas com Francisco, publicada em setembro de 2013 (na revista America nos Estados Unidos), o Papa é citado associando sua experiência com a de Mateus, o cobrador de impostos, e sua representação por Caravaggio. A pintura de 1599-1600 de Caravaggio pode ser vista na Igreja de São Luís dos Franceses em Roma, a qual Francisco disse que visitava e na qual rezava quando viajava para Roma como arcebispo de Buenos Aires.
Francisco, de fato, faz referência ao encontro de Jesus com Mateus nas palavras que tomou como seu lema pessoal, como disse a Spadaro: "Sou aquele que é considerado pelo Senhor. Sempre senti que meu lema, Miserando atque eligendo ["«Vidit ergo Iesus publicanum et quia miserando atque eligendo vidit, ait illi Sequere me» (Viu Jesus um publicano e dado que olhou para ele com sentimento de amor e o escolheu, disse-lhe: Segue-me)"], era muito verdadeiro para mim". A frase em latim é do sermão do Venerável Beda na festa de São Mateus.
Assim como Mateus foi imerecida e inesperadamente chamado por Jesus, também ele o foi quando o jovem Jorge Bergoglio recebeu o chamado para o sacerdócio, diz Francisco.
A pintura de Caravaggio retrata poderosamente o importante encontro entre o rabino jovem e carismático e o cobrador de impostos estafado. Mateus aponta para si mesmo interrogativamente, como se ele não pudesse acreditar que estava sendo escolhido por Jesus, e ele não tem certeza se quer mesmo aceitar o chamado caso esteja sendo escolhido.
Caravaggio retrata Mateus e seus companheiros no que era, então, a vestimenta contemporânea. Ao fazer isso, o artista mostra que este é um momento atemporal, não algo em um passado distante, mas aplicável a todos nós. Mateus, como um empresário duvidosamente honesto do tempo de Caravaggio (ou do nosso), está sendo visto com misericórdia e chamado por Cristo.
Seus companheiros, todos vestidos com elegância e provavelmente também cobradores de impostos, olham para Jesus com surpresa. O apóstolo Pedro está com Jesus, ambos vestidos com roupas de estilo bíblico - o presente e o passado ligados artisticamente em um momento de kairos - com o gesto de mão de Pedro imitando o de Jesus.
No entanto, o que talvez seja ainda mais interessante sobre a conexão do Papa com Mateus e com os atuais críticos de Francisco é visto nos eventos que acontecem após o encontro entre Jesus e o coletor de impostos. Uma vez chamado, Mateus realiza uma festa para Jesus em sua casa, entre seus amigos ("cobradores de impostos e pecadores"), e os líderes religiosos ficam chocados. "Por que ele come com essas pessoas?" eles perguntam (Mateus 9:9-13).
Como os críticos de Francisco hoje, os líderes acham a aparente clemência de Jesus perturbadora e talvez confusa, dadas suas outras declarações sobre como ele não veio para negar a Lei de Moisés. Como pode Jesus parecer apoiar a lei e subvertê-la com sua generosa misericórdia e comunhão com pecadores conhecidos?
A resposta se encontra no que está no coração do ministério tanto de Francisco como de Jesus, o amor, que - como Jesus diz em outro lugar - também está no coração da lei (Mateus 22:36-40).
Embora isso possa parecer um clichê, é crucial para entender a história do Evangelho e o ministério de Francisco. Em um mundo de pessoas pecadoras, com vidas complexas (não menos agora do que 2.000 anos atrás), o olhar de misericórdia mencionado por Francisco em sua discussão do chamado de Jesus a Mateus é central para a mensagem de Jesus.
Jesus diz, em resposta aos seus críticos sobre sua visita à casa de Mateus: "Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores" (Mateus 9:13). Amor e misericórdia se estenderam em direção aos tidos como pecadores- não mudanças na lei, mas na abordagem daqueles que estão fora dela e são julgados por aqueles dentro dela - e compaixão foi transmitida àqueles marginalizados por um mundo cruel e materialista (novamente, não menos agora do que 2.000 anos atrás): estas são as coisas que mais interessam a Francisco, como interessaram a Jesus em seu ministério na terra.
Percorrer os Evangelhos e sublinhar cada crítica dirigida a Jesus irá transmitir, veementemente, a qualquer leitor imparcial que seus inimigos raramente, ou nunca, estavam chateados por ele estabelecer a lei aos pecadores, tornando as "regras" claras para eles. Pelo contrário, em quase todos os casos em que a crítica envolve a interação de Jesus com pessoas comuns, trata-se de uma crítica de que ele é muito misericordioso, aceita demais, se disponibiliza demais para "comer e beber com os pecadores".
Francisco é tipicamente criticado nas mesmas linhas.
O Papa Francisco é perfeito? Ele seria o primeiro a responder que não. No entanto, sua semelhança com Jesus em transmitir um olhar de misericórdia para milhões em grande necessidade é convincente e poderosamente comovente para os muitos que se juntam a ele em todo o mundo. Douthat, na mesma coluna do Times citada anteriormente, sugere que Francisco trilha uma linha perigosa entre herói e herege.
Para os críticos de seus dias, Jesus também fez isso.
Embora os críticos de Francisco sejam frequentemente os mais barulhentos, espero que ele saiba que milhões de católicos, assim como incontáveis pessoas de outras religiões e pessoas sem fé, o valorizam por seguir os passos daquele que o chamou há tantos anos.
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O olhar de misericórdia em comum entre o Papa Francisco e a "Vocação de São Mateus", de Caravaggio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU