11 Março 2022
Uma autêntica abordagem do processo sinodal requer que nós revisemos as respostas litúrgicas durante o lockdown.
O comentário é de J.P. Grayland, padre neozelandês da Diocese de Palmerston North, na Nova Zelândia, autor do livro “Liturgical Lockdown: covid and the absence of the laity” (Ed. Te Hepara Pai, 2021) publicado por La Croix International, 07-03-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Capa do livro (Foto: Divulgação)
As missas online, o drive-in eucarístico e o caminhar até a comunhão durante o lockdown litúrgico nos mostrou a cultura dominante da Igreja.
Onde essas práticas se tornaram padrão de bispos, a potencial falha do processo sinodal é alta porque essas práticas foram feitas possíveis pela exclusão do laicato. Qual é o potencial dos bispos escutarem os leigos visto que eles os excluíram de sua participação litúrgica?
Alguns argumentarão que a liturgia não é o centro da vida da Igreja ou que os bispos usaram formatos online por compaixão e cuidado em uma pandemia. No entanto, se os líderes da Igreja podem excluir os leigos liturgicamente, qual é o sentido de incluí-los em outra conversa eclesial?
Meu ponto é este: onde a prática litúrgica não é vista como eclesial, ela não é vista.
A Igreja é o kyriakon (pertencente ao Senhor) ekklesia (assembleia) de Cristo. A liturgia celebra e torna isso manifesto. Liturgia, adoração, ação de graças – qualquer que seja a palavra que você queira usar – está no centro do ser e do propósito da Igreja. Sem a liturgia, a Igreja é apenas mais um clube ou sistema de assistência social.
Muitas vezes, as divisões litúrgicas são tratadas como diferenças de estilo quando uma pessoa prefere Bach ao Led Zeppelin. Nesse nível superficial, os argumentos de estilo e preferência dominam, mas estes são apenas um ponto de partida.
A liturgia, em seu nível mais profundo, articula a busca primordial e perene da humanidade: “Quem é Deus; quem sou eu, e minha vida é eterna?”. Esta busca é retomada sacramentalmente e expressa liturgicamente.
Como indivíduos e grupos realizam ritos litúrgicos é muito mais instrutivo do que apenas uma preferência de estilo.
Os ritos litúrgicos articulam a compreensão e as crenças de um indivíduo ou de um grupo sobre as relações entre Deus e a Igreja, o sacerdócio, a vida sacramental e a autoridade eclesial. A encenação ritual ilustra uma cultura religiosa de crença muito mais profunda e formativa.
Esta cultura é formada, informada e reformada através da vida eclesial, da mediação sacramental e do pensamento teológico.
Durante o lockdown litúrgico de 2020-2021, o aumento do uso de missas online foi possível por quatro razões principais.
Primeiro, a natureza performativa da estrutura ritual da Missa; segundo, a natureza funcional do sacerdócio; terceiro, a presunção de que a função da Missa é essencialmente clerical; e quarto, que a presença dos leigos na liturgia não é constitutiva.
Enquanto muitos destinatários leigos da missa online relataram que acharam a experiência “confortante”, muitos também relataram que era muito centrada no padre e, em última análise, insatisfatória. Por outro lado, muitos padres viram o aumento da presença online como uma validação de seu ministério.
O problema crítico da ausência dos leigos nunca foi totalmente resolvido. O sucesso das missas online só pode ser elogiado evitando-se questões de presença litúrgica autêntica como presença física.
Por que qualquer leigo manteria um diálogo sobre a vida da Igreja depois de ser sistematicamente excluído por seus líderes dados por Deus de sua participação legítima em sua própria vida litúrgica?
Uma abordagem autêntica do processo sinodal exige que revisemos as respostas litúrgicas durante o lockdown.
A prática litúrgica é essencialmente eclesiológica. Onde a liturgia (missa) é considerada uma forma ritualizada e institucional que funciona independentemente de todos os outros negócios da Igreja – vamos à missa, não vivemos a missa – a sinodalidade já falhou porque o vínculo essencial entre a missão e a ação da Igreja foi descontado.
As estruturas e doutrinas institucionais (Deus, sacerdócio, batismo, ministério e autoridade eclesial) que Johann Adam Moehler (1796-1838) em “Die Einheit in der Kirche chamou de Gemeinschaft” e Romano Guardini em “Vom Sinn der Kirche” descreveram como essenciais para a comunhão espiritual ou mística em Cristo, encontram a sua expressão autêntica na prática litúrgica. A prática litúrgica é a eclesiologia em ação.
Uma eclesiologia litúrgica robusta contribui para o desenvolvimento da eclesiologia sinodal pelo exame da prática e da cultura litúrgica real. Isso oferece uma janela para as culturas fortes, muitas vezes submersas, de crença, dogma e identidade que impulsionam a prática individual e em grupo, porque exige que os participantes considerem sua prática primeiro.
Por exemplo, quando uma pessoa concorda que a prática litúrgica autêntica pertence principalmente ao sacerdote/bispo por ordenação, e não aos leigos pelo batismo, há pouca necessidade de discutir a governança inclusiva. O padrão litúrgico já definiu a perspectiva eclesial.
Da mesma forma, uma pessoa que aborda a prática litúrgica como transformadora buscará a transformação através do processo sinodal. Eles provavelmente dirão que o culto se baseia no batismo e não verão a liturgia como essencialmente performativa ou funcional.
Se o processo sinodal não for transformador, essa pessoa se afastará, decepcionada.
As práticas litúrgicas durante o lockdown pela covid não são incidentais ao processo e à visão sinodal; tampouco eram o produto da covid. As práticas de confinamento já existiam profundamente na psique da Igreja porque são o cenário padrão de uma cultura eclesial muito mais profunda.
A missa online, com seu leigo observador passivo e seu sacerdote performativo e funcional, é o exemplo mais claro do desafio do processo sinodal.
Se não podemos ouvir uns aos outros no culto, qual é o sentido de nos envolvermos uns com os outros no nível de governança? Uma mudança na governança mudará nossa abordagem à liturgia ou nossa liturgia deve mudar primeiro?
Suponha que sua participação em um processo não seja um elemento constitutivo da prática de sua organização. Você participaria com base nessa presunção?
A prática litúrgica revela a cultura eclesial que a sinodalidade precisa abordar, mas provavelmente não o fará.
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Lockdown litúrgico: uma janela para o pensamento sinodal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU