Publicada em fevereiro, a exortação apostólica Querida Amazônia gerou expectativas em torno a um dos temas mais polêmicos do Sínodo Pan-Amazônico: os ministérios da Igreja. Ventilava-se a possibilidade de admissão de padres casados, de diáconas, novos papéis aos leigos, leigas, religiosos e religiosas para uma Igreja com características próprias, onde o centro e os sacerdotes estão distantes em tempo e espaço do povo e o acesso aos sacramentos, sobretudo a Eucaristia, é ocasional.
Francisco não bateu o martelo sobre as mudanças polêmicas, mas escreveu em seu sonho eclesial a necessidade “de que o ministério esteja ao serviço duma maior frequência da celebração da Eucaristia” (QA 83), e considera que “o exercício do ministério sacerdotal não é monolítico e adquire matizes diferentes nos vários lugares da terra”, mas é específico do sacerdote o sacramento da Ordem sacra que o habilita a presidir à Eucaristia e perdoar os pecados (84).
Enquanto progressistas e conservadores repercutiam frustrados as interpretações de Francisco sobre a Igreja amazônica, o coronavírus expandia-se pelo mundo e um novo modo de convívio fazia-se necessário. A privação aos sacramentos, até então questionada pelos povos da floresta por causa da distância, aos poucos se tornou um problema universalizado por uma ameaça viral. Em 10 de março, a Itália proibiu aglomerações e com isso a celebração de cultos. Em poucos dias o resto do mundo foi adotando as mesmas medidas e as Igrejas fecharam suas portas.
Oração nos Jardins do Vaticano, em 04-10-2019, festa de São Francisco de Assis. Foto: Vatican Media
Nos últimos cinco meses, bilhões de católicos viram-se na necessidade de reinventar suas maneiras de celebrar a liturgia, a oração comunitária e o acesso aos sacramentos. Na maior parte do planeta, o alimento eucarístico ficou reservado a alguns poucos sacerdotes. Novamente, os ministérios emergem ao centro do debate, desta vez não como um problema “local”, mas universal.
O teólogo Tomáš Halík provoca pensar a pandemia também como "um sinal de Deus", um kairós, para buscar Cristo novamente, reconhecendo-o por suas feridas: “Podemos, naturalmente, aceitar estas igrejas vazias e silenciosas simplesmente como uma medida temporária que, em breve, será esquecida. Mas também podemos acolher isso como um kairós: um momento oportuno para “avançar para águas mais profundas” e procurar uma nova identidade para o cristianismo, em um mundo que se transforma radicalmente debaixo dos nossos olhos”.
O teólogo italiano Andrea Grillo tratou sobre o problema dos sacramentos, da liturgia e dos ministérios durante a pandemia em diversos artigos. Em um deles, intitulado “O sacramento da máscara: forma e conteúdo do culto cristão”, Grillo destaca a contradição do ministério sacerdotal privado na pandemia de participar do culto em sua própria casa, isso é, a comunidade. De igual modo, o autor relata a ausência de participação, assistência, do povo nos ritos litúrgicos da pandemia. Para ele, essa é uma situação de curto-circuito: “Entre público e privado, está o curto-circuito que vivemos hoje de modo traumático. O sujeito da salvação – como disse Guardini ainda em 1918 – não é a alma, mas sim o ser humano. Pelo menos no culto, não podemos nos virar ‘saltando’ do público ao privado, da cerimônia à alma. Ou elaboramos uma estratégia ‘de comunidade’ ou não saímos disso”.
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O acesso a sacramentos foi limitado e novas interpretações sobre eles foram surgido. No entanto, isso ocorreu para além do debate teológico a nível acadêmico, a prática de oração e comunhão na ausência de presbíteros foi vivida em muitas casas e comunidades religiosas. A IHU On-Line publicou a tradução do relato de Patricia Rumsey, membro do Mosteiro das Pobres Claras, sobre a vivência da Semana Santa na sua comunidade monástica. Segundo Rumsey essa experiência de oração sem padres as “convenceram de que uma mulher pode presidir as celebrações com a mesma eficiência de um homem. E, tendo em mente o papel que as mulheres desempenharam durante a primeira Semana Santa, elas talvez o façam de maneira ainda mais apropriada”.
Já o monge beneditino François Cassingena-Trévedy destacou em entrevista que a celebração eucarística sem a comunidade é um ato incompleto: “Devemos apagar de nossas cabeças a tentação de concebermos a missa como um simples dispensador do pão eucarístico. Somos cristãos em comunidade. O próprio ato de celebração conjunta é fundamental. Ela é também um compromisso físico por meio do nosso corpo, primordial no cristianismo. Precisamos cantar, ouvir, ver, sentir. Sem a celebração eucarística, iríamos sentir falta da experiência física da comunidade, da presença real da comunidade”.
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O padre neozelandês J. P. Grayland escreve no artigo “Ministério da Igreja pós-pandemia” sobre as tensões entre o sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum que ficaram evidenciadas na atual conjuntura. Grayland constata uma disparidade de ritos durante a pandemia: por um lado “clericalizados”, onde apenas os sacerdotes ordenados podem comungar, e outros “laicizados”, onde leigos celebram a liturgia em suas casas, sem a consagração da eucaristia, mas em “comunhão espiritual”.
Dado esse problema, o autor indaga: “Se a iniciação cristã é uma iniciação na Igreja, e se ela convida cada crente a exercer os tria munera de Jesus (mestre, santificador e líder) principalmente dentro da Igreja, há de se perguntar: Por que todos os crentes simplesmente não podem celebrar a Eucaristia quando um sacerdote ordenado não se faz presente?”.
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A teóloga Anne-Marie Pelletier, nomeada pelo papa Francisco para compor a Comissão de Estudo sobre o Diaconato Feminino, fez um apelo para “revisitar a questão dos ministérios na Igreja”. Embora a pesquisa possa transformar o papel da mulher na Igreja, a teóloga afirmou em entrevista a La Croix International, e publicada em português pela IHU On-Line, que é necessário ir além: “enfocar demais neste ponto corre o risco de obscurecer a verdadeira extensão do problema. É a questão dos ministérios na Igreja o que necessita ser reaberto, já que são eles que afetam ambos os sexos e os estados diferentes de vida”.
Para ela, o acesso das mulheres a ministérios ordenados deve levar a uma transformação do significado destes e, portanto, a forma de atuar. “Se um dia a mulher aceder ao sacerdócio ministerial – hipótese atualmente excluída –, então que seja diferente, sendo vivido e praticado de forma um pouco diversa, com mais vida. Caso contrário, será só uma questão de poder e competição”, afirmou.
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O padre e professor de teologia histórica Thomas O’Loughlin escreve no artigo “Revisitando a questão do ministério” esse assunto deve perpassar qualquer debate sobre a reorganização da Igreja. No artigo destaque que os ministérios não são imutáveis, mas foram construídos ao decorrer dos séculos e se alinhando à sociedade.
O teólogo explica que “os cristãos formam um povo, um povo sacerdotal”. Essa característica é própria dos cristãos, que não os faz um “povo que deve a Deus”. Recorda que é o encontro da comunidade que faz a presença de Deus:
“Onde dois ou três estiverem reunidos em nome de Jesus, ele está aí no meio deles (Mateus 18,20), e assim suas ações em conjunto – como a de celebrar uma refeição – ocorrem na presença do Pai, porque Cristo, presente entre eles, é sempre o seu Sumo Sacerdote. Essa visão teológica tem implicações importantes para os cristãos em particular que se encontram realizando ações, desempenhando ministérios específicos na Igreja. No cristianismo, o ministério é da comunidade inteira”
O’Loughlin conclui argumentando que mudanças sempre estão por acontecer, mas que em relação aos ministérios, a diversidade de dons deve fazer com que cada membro exerça a sua parte, sem maior ou menor importância que outro.
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Uma lista dos problemas dos ministérios eclesiais em meio à pandemia foi elaborada por Andrea Grillo no artigo “Liturgia e Covid-19: diversamente Igreja. Como ser assembleia celebrante em tempos de pandemia”. Para ele o conflito entre duas lógicas e projetos de Igreja, um conciliar e outro relacionado ao que chama de Estado de Exceção litúrgica, embasado pelo Motu próprio Summorum Pontificum, de Bento XVI (2007), explodiu com o confinamento e se percebe com: 1) a tentativa de valorizar uma Igreja de emergência só de padres celebrantes, que recorre a léxicos e a cânones primo-modernos e pré-conciliares; 2) a tentativa de justificar o papel da assembleia, de uma ministerialidade ampliada e do papel feminino, que implica a retomada de discursos fortes e decisivos sobre essas questões”.
Grillo, no entanto, posiciona-se por uma “desclericalização radical e urgente” que necessita de: “1) A assembleia celebrante é o corpo de Cristo ressuscitado (e, portanto, não pode, de forma alguma, ser pensado ou tornado acessório); 2) a assembleia precisa de mais ministérios, não só do presbítero; 3) as mulheres podem exercer funções de autoridade, porque podem e devem ser reconhecidas como titulares de um ministério em sentido forte e pleno. Nas mulheres, está implicado e se expressa o anúncio apostólico, do qual depende a própria tradição eclesial na sua plena verdade”.
O conflito para Grillo é entre uma Igreja de portas abertas que manteve outra Igreja no seu interior com as portas fechadas, e que é evidente com o pontificado de Francisco. “Por essa condição invertida, bem antes da pandemia de hoje que desertifica o mundo, mesmo quando saía em uma Praça de São Pedro aberta, no meio da multidão festiva, Francisco já parecia tremendamente sozinho, pelo fato de viver de portas abertas em uma Igreja que as preferia fechadas, já então”, escreve o teólogo.
O impacto da pandemia é imensurável nas diferentes esferas da sociedade. Na Igreja, as históricas contradições se acentuaram e uma síntese pode estar pode estar mais próxima de ser elaborada.