16 Junho 2020
A responsabilidade do presidente pelo “desempenho” da assembleia demanda uma discussão ampla e aberta em toda a Igreja.
A reflexão é de Thomas O’Loughlin, padre da Diocese de Arundel e Brighton e professor de Teologia Histórica da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, em artigo publicado por La Croix International, 15-06-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A liturgia católica teve o seu maior abalo social em gerações.
Ninguém havia visto igrejas trancadas antes. Poucos jamais haviam pensado em liturgias “em streaming”. E, em todo o mundo, houve experimentos litúrgicos que eram impensáveis há apenas algumas semanas.
Agora, as igrejas estão reabrindo – lentamente –, mas o legado da experiência do vírus pode durar muito mais tempo.
Teremos uma sensação imediata de “volta à normalidade”, mas não devemos nos enganar: as coisas não serão as mesmas.
Mais importante, muitos lentos processos sociais de mudança foram acelerados, e isso deve nos levar a fazer algumas perguntas básicas – e embaraçosas.
Em toda situação de responsabilidade social – e o dever de presidir a liturgia é uma delas – uma questão-chave a ser feita é quem é responsável por que e perante quem.
Embora qualquer resposta nunca seja clara ou totalmente definida, em uma atividade de grupo bem-sucedida normalmente há um acordo considerável entre todas as partes sobre as várias regiões e direções de responsabilidade. Por outro lado, quando essa pergunta não pode ser respondida, segue-se o caos.
Enquanto isso, naquelas áreas em que existem grandes divergências entre os vários indivíduos ou grupos, cada um com algo em jogo em uma situação, o resultado é estresse, baixa coesão e, muitas vezes, conflitos entre as partes.
Esse tipo de problema parece muito o material de relações industriais, que geralmente não é discutido em obras de liturgia ou em formações de liturgia. O resultado é que muitos padres ficam perplexos com o que lhes é exigido pelas suas assembleias.
Além disso, muitos estão cientes de que, de alguma forma, toda a situação em que são levantadas questões de responsabilidade parece “errada”. Enquanto do lado da assembleia há muitas vezes sentimentos de profunda insatisfação com o desempenho dos seus padres.
De fato, parece haver uma crise profunda na liturgia católica. Temos estatísticas bem documentadas de números cada vez menores nas nossas celebrações – e essa tendência pode ser acelerada pelo vírus.
Um “sinal” tão óbvio de que as coisas não estão funcionando é desmoralizante.
E a isso se somam (1) as tensões do fechamento de igrejas no mundo desenvolvido; (2) a crescente pressão para que o clero vá a cada vez mais lugares aos sábados/domingos; e (3) assembleias cada vez mais prontas para criticar o desempenho perceptível de um padre.
Isso vem acontecendo lentamente há décadas, mas as transmissões “em streaming” contribuíram enormemente para que as pessoas se vejam como consumidoras de um produto litúrgico. O efeito é que homens já cansados e estressados estão ficando cada vez mais desanimados e desapontados por serem incapazes de responder criativamente.
Contudo, esse aspecto do ministério quase não recebe atenção nas reuniões do clero, nas reuniões de nível diocesano ou na literatura.
Meu objetivo é chamar a atenção para o problema de estimular a discussão entre os próprios clérigos e, depois, entre eles e suas assembleias, quando se reúnem para discutir os assuntos paroquiais.
Vamos tentar ver onde estamos agora, observando de onde viemos. Embora já tenham se passado 50 anos desde a chegada do Rito Romano reformado e mais de 50 anos desde que as línguas locais foram introduzidas, muitos padres ativos hoje foram formados na mentalidade da liturgia pré-conciliar.
As atitudes e a cultura dessa liturgia não desapareceram da noite para o dia no Primeiro Domingo do Advento de 1969. Algumas só estão mudando agora, à medida que as gerações crescem e vão com seus filhos à missa, para quem o rito pré-conciliar é “história”.
Assim, enquanto cada vez mais se encontram novas atitudes entre os grupos-chave para a transmissão da fé em uma comunidade, muitos padres ainda precisam mudar as atitudes muitas vezes formadas antes de eles entrarem no seminário.
A recente reversão da justificativa da “missa privada” e as justificativas usadas por muitas Conferências Episcopais diretamente dos manuais da era tridentina são evidências de como a cultura mais antiga sobrevive por baixo das reformas do Concílio Vaticano II (1962-1965).
Comparemos dois grupos em 1960: uma paróquia católica e uma igreja congregacionalista.
Os católicos esperavam que somente o padre fosse o responsável pela liturgia, acima das necessidades reais.
Ele (1) fornecia uma missa pública em horários pré-anunciados em um número suficiente – de acordo com suas habilidades legais para fazer isso – para que os paroquianos “cumprissem seus deveres” aos domingos; (2) proporcionava uma oportunidade para qualquer católico que desejasse receber a Comunhão; e (3) pregava em dias específicos.
Os párocos tinham o dever pessoal adicional de oferecer a “Missa pro populo”.
Embora muitos padres pudessem ter outras obrigações, essas tarefas eram supererrogatórias. O padrão mínimo era claramente definido e conhecido.
Por sua vez, a assembleia católica tinha o dever – claramente explicitado – de “ouvir missa” aos domingos e em outros dias designados, além de cumprir o preceito pascal.
O ato de ouvir missa também era definido quanto à duração e à presença mínima. Tudo acima desse mínimo era voluntário e desnecessário.
As principais responsabilidades do padre não eram em relação à assembleia assim como eram para praticamente todas as missas (ou seja, as missas baixas), mas sim à lei (nas questões principais), às rubricas (nas questões de desempenho) e a Deus (em termos da sua própria aptidão para celebrar).
Se alguma delas fracassasse, havia uma posição de recuo no sentido de que a celebração foi “válida, mas ilícita”, o que ainda podia garantir que “o trabalho foi feito” (opus operandum operatum), tudo claramente definido no Missal.
Essa preocupação com o ritual era uma responsabilidade individual em relação a uma abstração – todo o corpus da lei ritual. Embora isso às vezes causasse estresse entre os padres que sofriam de escrupulosidade, não havia nenhuma polícia ritual que garantisse que os detalhes dos rituais fossem observados.
Muitos padres, ao saberem que as rubricas não permitiam isto ou aquilo, simplesmente colocavam a lei à prova, dizendo: “Observem-me”. Quando os céus não caíam, eles sabiam que toda lei – a menos que seja sustentada pela força física – tem apenas a força vinculante que as pessoas lhe concedem.
Portanto, o padre tinha dois conjuntos de responsabilidades totalmente distintos. Em termos de quantidade, a responsabilidade com as pessoas era mínima, enquanto a responsabilidade com a lei era máxima. Ambas estavam claramente separadas e, em cada caso, estavam bem definidas.
Além disso, todos conheciam esses limites. Por isso, os padres eram intercambiáveis a qualquer momento, pelo menos em termos de “dizer missa”.
Por exemplo, uma paróquia inglesa podia não gostar de ter um irlandês como seu pároco, mas isso não afetava a celebração real da missa.
Enquanto um padre francês visitante que queria “dizer missa” era apenas deslocado para celebrar uma missa pública sem mais delongas, se isso permitisse que o padre local evitasse rezar mais de uma missa e pudesse tomar o seu café da manhã mais cedo!
A situação da Igreja congregacionalista não poderia ser mais diferente. O grupo se encontraria por escolha própria e por uma decisão pessoal, não por uma obrigação legal. Era a assembleia deles; eles eram responsáveis coletivamente pelo rito; e afugentariam a ideia de fazer parte de um ritual.
O ministro era um deles, apesar de reconhecer suas habilidades devido à formação. Não havia nenhum direito automático de presidir por causa de um status independente da assembleia.
A assembleia, de fato, era a empregadora do ministro. Eles o entrevistavam e verificavam se gostavam do seu estilo.
O potencial ministro seria inicialmente convidado a vir e a pregar – um processo chamado de “pregar com um público” –, porque a pregação era vista como a parte pessoal do ministro em qualquer rito, e o desempenho da pregação era um indicador-chave da adequação. O resto era uma forma livre criada e modificada para se adequar à assembleia.
Embora isso geralmente pudesse ser decidido pelo ministro, ficava mais claro que os desejos da assembleia eram primordiais.
Além disso, havia mecanismos para responsabilizar um ministro e, se necessário, demiti-lo. Ele era “ministro para eles”, isto é, servo da assembleia e apenas pelo tempo que eles quisessem e nos seus termos.
Apesar das diferenças com a paróquia católica, havia uma consciência igual e provavelmente mais explícita da responsabilidade litúrgica. A assembleia era responsável coletivamente pelo seu culto. O “seu” ministro facilitava isso.
Podia haver uma consciência de manter padrões de culto com a denominação mais ampla, mas isso era pouco mais do que uma consciência de que certas práticas eram “muito romanistas” para serem levadas em consideração. O ministro era totalmente responsável pela sua parte particular na liturgia para o grupo.
A responsabilidade pessoal diante de Deus era um assunto totalmente privado, e as principais tarefas que o ministro tinha que realizar eram se comunicar por meio do sermão, coordenar os vários grupos por meio de negociação e, até certo ponto, ter um estilo vitorioso que nem amedrontasse as pessoas, nem entediasse muitas delas com muita frequência.
A situação paralela à do padre francês visitante seria a de um pastor de Zurique que simplesmente se sentaria como um membro visitante da assembleia.
Não haveria nenhuma necessidade de uma consideração especial por ele, e qualquer ideia de liderar o serviço ratione personae seria absurda.
Muitos padres hoje estão estressados por serem pegos entre esses extremos: puxados em ambas as direções com formação insuficiente e muitas vezes incapazes de articular esse problema que surgiu sobre eles.
Ainda há tensão no que diz respeito à obediência à lei geral e às rubricas. A liturgia não é uma forma livre; ela deve estar de acordo com os limites permitidos de adaptação.
Roma tem salientado repetidamente os direitos das pessoas a terem “a liturgia autêntica”. Ela tem criticado os “abusos” e encorajado os ordinários locais a policiarem as celebrações sob a sua responsabilidade.
De fato, qualquer desvio das rubricas, não importa o quão dignamente isso tenha sido exigido por uma situação, pode ser considerado um abuso.
No entanto, existem três outras complexidades, desconhecidas quando os ritos eram em latim e quando, exceto pelo raro especialista leigo, eles não podiam ser acompanhados pela assembleia.
O primeiro é o fenômeno crescente de informantes litúrgicos não remunerados e autodesignados – às vezes chamados em tom de brincadeira de “polícia do templo”. O padre ignorou as rubricas: portanto, deve ser denunciado.
Toda comunidade parece ter uma ou duas dessas pessoas, e elas são funcionalmente semelhantes aos fundamentalistas bíblicos: a liturgia está dada, congelada pelo texto, deve ser abordada pela rejeição aos estudos modernos, e, quando se aproximam daqueles que trabalham com tais estudos, é com a suspeita suposição de que eles não seguem a “sã doutrina”.
O fundamentalismo é um fato em todas as formas de cristianismo moderno e é especialmente virulento no mundo anglófono. Muitas vezes, ele se reduz à sua forma mais abundante (o fundamentalismo bíblico), mas é, de fato, muito mais difuso.
Entre os católicos, uma de suas formas é o fundamentalismo litúrgico: “O padre tem um livro e deve se ater a ele”.
A resposta simples é que a liturgia é louvor, não um livro; e que os livros são apenas ajudas elaboradas para a memória.
Mas, como o catolicismo patrulha a liturgia desde 1570, insistindo na uniformidade impressa, essa resposta excita os piores temores dos fundamentalistas de que a “religião dos velhos tempos” está sendo liquidada!
Segundo, muitas vezes os padres, quando “seguem o livro”, descobrem que suas ações são rejeitadas por algumas partes de suas assembleias, como se ele estivesse agindo por um capricho pessoal.
Recentemente, um bispo zeloso assumiu a posição de que apenas os homens devem “normalmente” ser convidados a ser “ministros especiais da Eucaristia”. Ele viu isso como um reflexo do fato de que o padre tem que ser homem e imaginou que uma mulher que desempenha esse papel pode contribuir para a “teoria de gênero”.
Deixando de lado os fatores que levaram a essa posição duvidosa, notemos simplesmente que a experiência mostra que essa não seria uma boa ideia em regiões onde as mulheres católicas assumem a sua igualdade com os homens da assembleia.
Um padre que segue as instruções do bispo zeloso fica, então, dividido entre o seu dever para com o senso comum ordinário e pastoral. Alguns padres apenas proclamam sem rodeios: “Culpem o bispo!”. Outros, indispostos a “passar a bola”, são culpados pessoalmente por não estarem “dispostos a ouvir”. Outros ficam perplexos com o fato de as pessoas ficarem irritadas.
Essas tensões decorrem de uma adesão à responsabilidade perante a lei cujos limites dentro dos grupos que ela afeta não são claros.
Terceiro, o foco da maioria das formações ainda é a competência para realizar a liturgia como algo já dado. Não é um conjunto de habilidades sobre como presidir a liturgia, uma atividade que assume que há mais formas livres na liturgia do que se costuma ver.
Portanto, cada distanciamento da formação cria uma tensão sobre a lealdade, além da incerteza sobre o que é melhor.
No entanto, dada a riqueza da nossa liturgia, os seminários devem se concentrar no domínio técnico da formação.
Existe a tensão que resulta para muitos padres de um senso de responsabilidade pela “forma ritual ideal”.
A liturgia restaurada do Vaticano II apresentou um ideal da liturgia eucarística mais excelente do que qualquer coisa vista antes. Isso ocorreu por causa de mais de um século de estudos e de formas de piedade com bons recursos que remontam à época de Prosper Guéranger OSB (+1875).
O resultado foi que muitos padres trabalharam para renovar a liturgia em suas comunidades. Frequentemente há incompreensão, desinteresse e, pior, oposição aberta – e esse também é um fator de estresse e de baixa moral.
Aqui está um caso de alguém que reconhece a sua responsabilidade básica como líder e professor de liturgia, mas no qual muitas vezes há uma rejeição da responsabilidade por outros na comunidade; principalmente por aqueles que desempenham funções na liturgia, como sacristãos e músicos, mas essa recusa em assumir a responsabilidade como um genuíno participante de uma liturgia baseada na participação é um grande fracasso entre os leigos católicos hoje.
A dissonância resultante de expectativas entre o presidente da liturgia e os outros participantes frequentemente provoca uma bagunça em toda a liturgia.
Existem tensões que resultam de limites pouco claros entre o papel do padre e o da assembleia.
Na liturgia pré-1969, um padre tinha poucos assuntos sobre os quais precisava consultar alguém da comunidade sobre a liturgia eucarística. Agora, espera-se que ele ouça as necessidades da comunidade e responda às suas necessidades como um elemento básico do seu funcionamento.
O padre em uma liturgia vernácula também deve ser um comunicador habilidoso. Ele é julgado pela assembleia sobre esse ponto em comparação com uma referência aos comunicadores profissionais. Um padre que “me aborrece” ou, pior ainda, “aborrece os meus filhos” merece ir, aos olhos de muitos, para o ferro-velho clerical.
O fato de a Eucaristia não poder ser celebrada sem ele é visto como algo secundário. Muitos pensam que, se ele não pode se comunicar e atender às “minhas necessidades”, então ou ele ou eu devemos ir embora.
A principal responsabilidade aqui é a de atender às necessidades daqueles que se veem em um papel de quase empregador. Espera-se que o padre seja o ouvinte.
Soma-se a isso o estresse adicional de coordenar os vários grupos de interesse litúrgico e a arbitragem entre eles. Frequentemente, nesses processos, não fica claro a ninguém sobre quem eles têm responsabilidade, exceto sobre o seu próprio papel.
O fato de que todos eles possam ter responsabilidade perante a comunidade – ou o culto efetivo da comunidade, ou “a liturgia da Igreja”, ou a virtude da religião – não faz parte do seu quadro de decisões.
Em tais situações, como o padre é um indivíduo e o foco do processo de escuta e coordenação, ele está em uma situação de perda-perda.
Não é de se admirar, portanto, que muitos padres tenham desistido da agenda da liturgia renovada; o que, por sua vez, exacerba o problema fundamental de as pessoas verem a liturgia como irrelevante.
Finalmente, não devemos ver essa nova linha de responsabilidade pelo “desempenho” da assembleia como uma patologia transitória.
Dentro de uma liturgia vernácula e participativa, como o Vaticano II reconheceu que a liturgia eucarística deve ser, essa linha de responsabilidade do presidente pela assembleia é pelo menos tão importante quanto a sua responsabilidade ou a responsabilidade do grupo pelas demandas da liturgia, conforme expressadas em nossos livros litúrgicos.
Os efeitos das mudanças iniciadas há mais de 50 anos são sentidos apenas agora. Celebrar a liturgia é mais exigente agora do que nunca.
É informativo relembrar os manuais anteriores aos anos 1960 sobre como “dizer missa”. Eles a viam como uma ação individual que requeria habilidade e prática técnicas, mas as tarefas são claras, e as linhas de responsabilidade, nítidas.
Hoje, o conjunto de habilidades necessárias é muito mais diversificado, mas geralmente sub-reconhecido. Que há novas atitudes em relação à liturgia e novas linhas de responsabilidade dentro dela é algo que tendemos a ignorar, mas que devemos discutir aberta e amplamente.
Além disso, como a presidência da Eucaristia é algo intimamente ligado a toda a noção de identidade do padre ordenado, essa discussão terá ramificações muito além da esfera litúrgica.
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Depois do vírus: liturgia e responsabilidade. Artigo de Thomas O’Loughlin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU