09 Mai 2022
Já há inúmeros exemplos de como nenhuma derrota militar é jamais definitiva e como as “guerras do ressentimento” representam um ciclo infernal sem fim. A estratégia anglo-americana, portanto, é incompleta e limitada para os europeus.
A opinião é de Mario Giro, professor de Relações Internacionais na Universidade para Estrangeiros de Perugia, membro da Comunidade de Santo Egídio e ex-vice-ministro italiano das Relações Internacionais. O artigo foi publicado por Domani, 06-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A natureza da guerra mudou. Estamos dentro da fog war, a névoa da guerra, um período de grande confusão em que erros e acertos se confundem, a propaganda se mistura com as notícias, as intenções verdadeiras se escondem atrás da excitação belicista.
Na névoa da guerra, os objetivos militares mudam, e as partes em conflito constroem a sua própria narrativa especial de vitória, visando a consolidar a sua própria posição na futura ordem mundial que surgirá da dura disputa.
O conflito atual é uma história aberta: ninguém pode dizer como acabará, muito menos militares ou especialistas que, muitas vezes, erraram as previsões.
Uma singular “espécie de vitória” poderia ser representada pelo fim do equilíbrio nascido a partir do colapso da União Soviética. Em outras palavras, esta guerra poderia representar o fim da globalização, ou seja, do duopólio China-EUA que previa uma Europa reduzida a mercado e uma Rússia marginalizada como fornecedora de energia.
No quadro da globalização, apenas Washington e Pequim tinham os meios de acesso global que faltavam às outras potências intermediárias. O conflito atual nos leva de volta a um velho mundo dividido em zonas de influência, em que o que importa é o duelo permanente entre esferas concorrentes que se desafiam nos quadrantes do planeta ou nos diversos setores.
É um mundo que cai bem para a Rússia, mais adequado a ela, e onde, pelo contrário, a China não se encontra, depois de ter investido tanto para se tornar uma potência global como os Estados Unidos. A desglobalização induzida pelo conflito já representa uma meia vitória para quem considera o mercado global uma invenção hegemônica ocidental. Moscou prefere um mundo multipolar: um tabuleiro de xadrez em que os movimentos possíveis sejam infinitos, e o resultado, imprevisível e nunca definitivo.
Por isso, a guerra está mudando de natureza: de conflito local a guerra total. O Ocidente também passou do apoio à resistência ucraniana para a busca de uma vitória; das armas defensivas às ofensivas e pesadas.
A guerra se estende e se torna incisiva. Os Estados Unidos reagem à mudança na natureza da guerra: se o que está em jogo é a desglobalização, eles querem evitar que a Rússia se torne poderosa demais. Consequentemente, a ideia não é mais punir a Rússia pelo que ela faz na Ucrânia, mas derrotá-la, curvá-la, destruir o seu potencial econômico-militar.
Até poucas semanas atrás, declarava-se o contrário e só se falava da legítima defesa e resistência dos ucranianos. Agora, estes últimos se tornaram o instrumento para algo maior, outro tipo de guerra, sem limites, em que a paz só é obtida com a derrota definitiva de um dos dois protagonistas. Tal programa transforma os ucranianos em objeto e não mais em sujeito da disputa. A demonização recíproca do inimigo está levando o conflito a um nível sem volta.
A guerra muda de natureza vista também do lado de Moscou: primeiro, tratava-se de recuperar a influência na Ucrânia; hoje, de dividi-la, como demonstrado pela conduta bélica. Desnazificar a Ucrânia, segundo o léxico usado pela liderança russa, significa desnacionalizá-la, privando-a do direito de ser nação.
De acordo com tal posição, um nazista ucraniano é qualquer pessoa que seja nacionalista, ou seja, que acredite na independência do Estado ucraniano. É por isso que a mídia e os responsáveis russos utilizam essa palavra que parece vir de outra época: nazista e nacionalista se tornaram sinônimos. O poder russo não reconhece a nação ucraniana como uma entidade em si mesma.
Como provas de “nazismo” ucraniano, a existência do batalhão Azov ou a ereção das estátuas de Stepan Bandera continuam sendo detalhes: o verdadeiro problema é que qualquer pessoa que acredite ou defenda a independência da Ucrânia se torna um nazista por antonomásia.
A tese russa é que o Ocidente quis construir uma “anti-Rússia”, isto é, uma Ucrânia que encarne um “antípoda” de Moscou. Tal programa ocidental é considerado ainda mais perigoso pelo fato de dividir um “único povo”: russos, ucranianos e bielorrussos que – novamente de acordo com essa tese – estão intimamente unidos. Enquanto se tratava da Geórgia ou do Cazaquistão (ou dos países bálticos), a questão era grave, mas suportável.
Encostar em Kiev e Minsk significa – para quem ocupa o Kremlin hoje – incidir na carne viva da “mãe Rússia”. As imagens que vemos da destruição das cidades são a “guerra justa” dos russos, a resposta ao perigo existencial percebido em Moscou: é melhor dividir a Ucrânia do que vê-la se desnaturando em uma anti-Rússia.
Para o poder central russo, uma Ucrânia antirrussa e pró-ocidental seria uma ofensa ardente, especialmente depois que o próprio Vladimir Putin declarou como decadente e decaído o modelo liberal-democrático europeu. Quando perguntados sobre o porquê dessa guerra, muitos analistas russos reagem dizendo que, no mínimo, a verdadeira pergunta é por que Moscou esperou tanto tempo.
Agora, os planos de guerra também mudaram para os russos: no início, eles achavam que 20% do exército ucraniano passariam para o seu lado, e 30% se renderiam. Algo assim ocorreu no Donbass em 2014, mas, depois de oito anos, as armas e o treinamento ocidentais mudaram o exército ucraniano.
Desde o fim do cerco de Kiev, os militares russos não avançam mais a céu aberto, mas tomam vilarejo após vilarejo para expandir para leste e para sul a zona “redimida” daquilo que eles definem como ucronazismo, o ultranacionalismo ucraniano. Há ódio à influência ocidental que produziu uma hibridação considerada artificial entre ucranianos e europeus (começando em particular pelos poloneses).
Para essa visão, o ucranianismo é “uma construção artificial antirrussa”, um perigo existencial para todos os russos, mas também para os próprios ucranianos que devem ser – segundo as autoridades russas – “ajudados” a se reapropriarem da sua cultura russa específica.
A mudança de natureza da guerra é contrária aos interesses europeus de longo prazo. Obviamente, uma Ucrânia agredida, destruída e impedida na sua soberania representa uma violação grave do princípio de autodeterminação dos povos e de independência dos Estados.
Não é possível, de forma alguma, aceitar uma exceção a tal direito, nem mesmo com justificativas históricas ou culturais: admitir isso significaria minar um dos princípios básicos da paz global. Por outro lado, uma Rússia hipoteticamente derrotada também permaneceria muito perigosa por muito tempo. Ao contrário dos estadunidenses, os europeus têm que conviver com ela no mesmo quadro continental.
Já há inúmeros exemplos de como nenhuma derrota militar é jamais definitiva e como as “guerras do ressentimento” (como Domenico Quirico as chama) representam um ciclo infernal sem fim. A estratégia anglo-americana, portanto, é incompleta e limitada para os europeus.
A reunião de Ramstein, na qual foi selada a decisão já tomada da guerra sem limites, esmaga a Europa em uma posição impossível: não podemos nos permitir uma guerra de anos e décadas que transformará a União Europeia na retaguarda de um conflito permanente.
Como Luca Ricolfi destaca com razão, quanto mais a guerra perdurar, maior será o risco nuclear, não só da arma tática, mas do incidente catastrófico, como o bombardeio (por engano?) de uma usina. Um conflito no coração da Europa que dure 10 anos é um risco aceitável para Washington; não para nós, europeus.
O interesse da Europa é que Putin pare a guerra imediatamente e que se construa um novo acordo de segurança e cooperação no continente. Portanto, é necessário discutir rapidamente de que modo sair agora do conflito mediante uma forte iniciativa política europeia que pare Putin e detenha a deriva para uma guerra sem limites.
No contexto de uma aliança atlântica fortalecida pela agressão russa, os estadunidenses terão que levar em conta essas graves preocupações europeias, a fim de cooperar para um projeto de paz e estabilidade de mais longo prazo.
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A natureza desta guerra mudou. E agora só a Europa pode pará-la - Instituto Humanitas Unisinos - IHU