10 Março 2022
“Estamos prontos para mostrar que, ao defender a Europa, lutamos pela liberdade em todos os lugares? Nossa vergonhosa recusa em oferecer um tratamento igualitário a todos os refugiados envia ao mundo uma mensagem muito diferente”, escreve Slavoj Žižek, escritor e filósofo esloveno, em artigo publicado pelo jornal peruano El Comercio, 05-03-2022. A tradução é do Cepat.
Após o ataque russo à Ucrânia, o governo esloveno proclamou imediatamente que estava disposto a receber milhares de refugiados ucranianos. Como cidadão da Eslovênia, senti orgulho, mas também vergonha.
Quando há seis meses o Afeganistão caiu diante dos talibãs, esse mesmo governo se negou a aceitar refugiados afegãos, com o argumento de que deveriam permanecer em seu país e lutar. E há alguns meses, quando milhares de refugiados (em sua maioria curdos iraquianos) tentaram entrar na Polônia pela Bielorrússia, o governo esloveno afirmou que a Europa estava sendo atacada e ofereceu ajuda militar para colaborar com a vil tentativa da Polônia de rejeitá-los.
Na região, surgiram dois tipos de refugiados. Um tuíte do governo esloveno publicado no dia 25 de fevereiro deixou clara a distinção: “Os refugiados da Ucrânia provêm de um ambiente em que, no sentido cultural, religioso e histórico, é algo totalmente diferente do ambiente do qual provêm os refugiados do Afeganistão”. Após o escândalo que se seguiu, o governo se apressou em excluir o tuíte, mas a verdade obscena já estava à vista de todos: a Europa deve se defender do não europeu.
Essa ideia será catastrófica para a Europa na concorrência mundial que está sendo travada pela influência geopolítica. Nossos meios de comunicação e elites a apresentam como um conflito entre uma esfera “liberal” ocidental e uma esfera “eurasiática” russa, ignorando o conjunto muito maior de países (na América Latina, Oriente Médio, África e o sudeste da Ásia) que estão nos olhando com muita atenção.
Nem sequer a China está disposta a dar um apoio total à Rússia, mas tem planos próprios. Em uma mensagem ao líder norte-coreano Kim Jong-un, um dia após o início da invasão russa à Ucrânia, o presidente chinês Xi Jinping disse que a China está pronta para colaborar no desenvolvimento de uma relação de amizade e cooperação com a RPDC [República Popular Democrática da Coreia] “tendo em conta a nova situação”. Existe o temor de que a China use a “nova situação” para “libertar” Taiwan.
O que deveria nos preocupar agora é que a radicalização que vemos (mais evidente no caso do presidente russo Vladimir Putin) não é apenas retórica. Muitos integrantes da esquerda liberal, convencidos de que os dois lados sabiam que não podiam se permitir uma guerra total, pensaram que quando Putin reunia tropas na fronteira com Ucrânia estava blefando. Mesmo quando descreveu o governo do presidente ucraniano Volodymyr Zelensky como um “bando de drogados e neonazistas”, a maioria esperava que a Rússia só ocuparia as duas “repúblicas populares” rompidas, controladas por separatistas russos com o apoio do Kremlin ou, no máximo, ampliaria a ocupação para toda a região de Donbass, na Ucrânia oriental.
E agora alguns que se dizem esquerdistas (eu não os chamaria assim) culpam o Ocidente pelo fato de que o presidente estadunidense, Joe Biden, estava certo em relação às intenções de Putin. O argumento é bem conhecido: que a OTAN foi cercando lentamente a Rússia, fomentou revoluções coloridas em sua vizinhança e ignorou os temores razoáveis de um país que durante o último século recebeu ataques do Ocidente.
É claro que, aqui, está presente um elemento de verdade. Mas dizer somente isso é equivalente a justificar Hitler jogando a culpa no injusto Tratado de Versalhes. Pior ainda, implica conceder que as grandes potências têm direito a esferas de influência, às quais todos devem se submeter pelo bem da estabilidade global. A suposição de Putin de que as relações internacionais são uma concorrência entre grandes potências se vê refletida em sua repetida afirmação de que “não teve outra alternativa” a não ser intervir pela força militar na Ucrânia.
Isso é verdade? Trata-se, na realidade, de um problema de fascismo ucraniano? Essa pergunta deve ser dirigida à Rússia de Putin. O autor de cabeceira de Putin é Ivan Ilyin, cujas obras estão sendo reimpressas e distribuídas entre apparatchiks estatais e conscritos. Após sua expulsão da União Soviética, em inícios dos anos 1920, Ilyin defendeu uma versão russa do fascismo, onde o Estado é uma comunidade orgânica guiada por um monarca paternal e a liberdade consiste em conhecer o lugar que a cada um corresponde. Para Ilyin (e para Putin), vota-se para expressar apoio coletivo ao líder, não para legitimá-lo ou elegê-lo.
Aleksandr Dugin, o filósofo da corte de Putin, segue de muito perto os passos de Ilyin, acrescentando-lhe um complemento pós-moderno de relativismo historicista:
“[...] as assim chamadas verdades são questão de crença. Acreditamos no que fazemos, acreditamos no que dizemos. E esse é o único modo de definir a verdade. Nós temos nossa verdade especial russa, e vocês têm que aceitá-la. Se os Estados Unidos não querem iniciar uma guerra, precisam reconhecer que os Estados Unidos não são mais o único senhor. E [com] a situação na Síria e Ucrânia, a Rússia está dizendo “vocês não são mais os que mandam”. É a questão de quem domina o mundo. Na verdade, só uma guerra pode decidir isso”.
Mas, e as pessoas na Síria e na Ucrânia? Também podem decidir sua própria verdade ou são apenas um campo de batalha para aspirantes a donos do mundo?
A ideia de que cada “modo de vida” tem uma verdade própria é o que torna Putin atraente para populistas de direita como o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que disse que a invasão russa da Ucrânia era obra de um “gênio”. E o sentimento é mútuo: Putin fala em “desnazificar” a Ucrânia, mas não se deve esquecer que apoia o Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen, na França, a Liga, de Matteo Salvini, na Itália, e outros movimentos neofascistas reais.
A “verdade russa” é apenas um mito conveniente para justificar a visão imperial de Putin, e a melhor maneira da Europa resisti-la é estender pontes aos países em desenvolvimento e emergentes, muitos dos quais têm uma longa lista de queixas justificadas contra a colonização e a exploração do Ocidente. Não basta “defender a Europa”. A verdadeira tarefa é convencer outros países de que o Ocidente pode lhes oferecer melhores opções do que a Rússia ou a China. E a única forma de conseguir isso é mudar a nós mesmos, por meio de uma erradicação implacável do neocolonialismo, inclusive quando se apresenta na forma de ajuda humanitária.
Estamos prontos para mostrar que, ao defender a Europa, lutamos pela liberdade em todos os lugares? Nossa vergonhosa recusa em oferecer um tratamento igualitário a todos os refugiados envia ao mundo uma mensagem muito diferente.
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O que significa defender a Europa? Artigo de Slavoj Žižek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU