"Hoje necessitamos com urgência de uma consciência e de uma educação alimentar completamente diferente, porque só assim poderemos iniciar uma verdadeira transição ecológica e mudar o destino das gerações futuras", escreve Carlo Petrini, fundador do Slow Food, ativista e gastrônomo, sociólogo e autor do livro Terrafutura (Giunti e Slow Food Editore), no qual relata suas conversas com o Papa Francisco sobre a "ecologia integral” e o destino do planeta, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 23-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com um apelo dirigido às grandes empresas alimentares, o Papa Francisco quis ressaltar que esse sistema alimentar está nos envenenando. Uma intervenção, além de revolucionária, absolutamente necessária. É bastante significativo que uma figura do calibre de um Pontífice denuncie com franqueza as estruturas e os processos que estão colocando em perigo a vida do gênero humano neste planeta. No caso específico, Bergoglio apontou o dedo contra uma indústria de alimentos voltada exclusivamente para o consumo e o lucro, que, se não for contida, continuará a empregar e aumentar os efeitos negativos das duas principais crises que nos assolam há anos: aquela econômico-social e aquela climático-ambiental.
Vamos começar pela primeira. Para comprovar o impacto da agroindústria em termos econômicos e sociais, basta lembrar o que à primeira vista pode parecer uma equação simples e paradoxal. Por um lado, encontramos poucas grandes empresas que tratam da chamada produção em massa de alimentos. Os preços com que entram no mercado tornam seus produtos atrativos para aquela maioria de famílias que vivem perto da linha de pobreza.
Ao mesmo tempo, porém, os mesmos preços ditados por uma lógica de mercado dopada não podem ser competitivos para o segundo membro da equação: a multidão de agricultores e pequenos produtores que representam mais de 70% do total das propriedades agrícolas. Na verdade, estes últimos, além do árduo trabalho que a terra exige, devem conseguir recortar para si um “nicho” de mercado que lhes garanta não comercializar abaixo do custo os alimentos obtidos com práticas agrícolas saudáveis e virtuosas. Em outras palavras, para vender seus produtos a um valor justo e assim evitar o fantasma da extinção, os pequenos produtores são obrigados a vender a preços mais altos e menos acessíveis.
Esse cenário acaba sendo realmente preocupante, principalmente se a governar o todo (ou seja, a determinar o preço dos produtos), não há apenas a exploração de economias de escala, mas a baixa qualidade das matérias-primas, a utilização de produtos nocivos (tanto ao nível da produção como ao nível da transformação), condições de trabalho que muitas vezes beiram a escravidão e sobretudo lógicas de mercado capazes de influenciar um consumo muitas vezes supérfluo e que alimenta e legitima o desperdício.
O resultado dessa equação? Polarização das rendas e injustiça social. Em outras palavras: desigualdade!
E isso não é tudo. O sistema alimentar atual é sinônimo de desigualdade também devido a outro dramático paradoxo.
De fato, é necessário destacar o fato de que hoje vivemos em um mundo que conta por um lado com mais de 1 bilhão e 600 milhões de pessoas que sofrem de patologias estritamente ligadas à super nutrição; ao mesmo tempo, há mais de 800 milhões de casos de fome e desnutrição.
Se de um lado do globo, aquele menos desenvolvido economicamente, as pessoas ainda passam fome e adoecem por causa da alimentação de baixa qualidade, do outro lado, o que consideramos avançado, prolifera a obesidade, o diabetes e as doenças cardiovasculares. Este é outro cenário que mostra claramente como esse sistema cria divergências perigosas, que não podem mais ser toleradas.
Eu acrescentaria que, se o modelo ocidental de consumo alimentar fosse adotado ao mesmo tempo por todo o mundo, então dois planetas não seriam suficientes para satisfazer um estilo de vida que identifica a economia do descarte. Devemos necessariamente perceber que são acima de tudo as escolhas alimentares que nós adotamos que afetam a nossa saúde e, portanto, a saúde da sociedade e da nossa Terra.
Super nutrir a nós mesmos resulta em uma superprodução de alimentos, o que, por sua vez, implica em um desperdício desnecessário de energia. Campos inteiros são cultivados, capinados e explorados de forma totalmente desnecessária; o consumo dos recursos hídricos resulta excessivo, assim como a poluição relativa dos aquíferos; a transformação, o acondicionamento e o transporte da superabundância de alimentos fecham um círculo mefistofélico que adoece a nós mesmos e ao ambiente que nos circunda.
Passando para a questão climático-ambiental, podemos constatar que os resultados não mudam. Mais de um terço das emissões de gases de efeito estufa são atribuíveis à produção de alimentos. Mais da metade destes são atribuíveis a fazendas de criação de gado. Bastaria destacar esses dados para entender o impacto do sistema alimentar nesta crise. No entanto, mesmo neste caso, ao analisar mais detalhadamente, a situação torna-se cada vez mais paradoxal.
Eu explico o porquê. O primeiro setor afetado pelos efeitos imediatos das mudanças climáticas é justamente aquele alimentar. O aumento de um único grau de temperatura implica no deslocamento das lavouras em 150 metros de altitude e de 150 quilômetros de latitude. Como efeitos colaterais, temos o abandono de terras agora improdutivas (a desertificação é hoje uma praga generalizada) para bonificar novas áreas: o cultivo de vinhas que chega ao Reino Unido e as frutas exóticas na Sicília. Tudo isso implica não apenas custos imprevistos para as empresas de alimentos, mas também mais desmatamentos que, exatamente como em um círculo vicioso, alimentam o galope do aquecimento global.
Mas digo mais. A Organização Mundial de Saúde afirma que para uma dieta saudável e equilibrada são suficientes 25 quilos de carne por ano. Hoje, na Itália, há um consumo per capita anual de 80 quilos; e dizer que estamos entre os menos carnívoros da Europa. Sem levar em consideração os mais de 120 quilos de carne que um estadunidense come todos os anos. Em essência, cerca de 15% das emissões de gases de efeito estufa dependem de um consumo excessivo e exagerado de carne.
O mesmo discurso desenvolvido até agora sobre o tema do supérfluo pode ser trazido de volta à questão do desperdício. A FAO denuncia que todo ano um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado. É preciso, portanto, levar em consideração também o impacto ambiental que esse desperdício e esbanjamento de recursos implica.
É por isso que esse sistema alimentar é o emblema do fracasso do modelo capitalista. De fato, a lógica subjacente do capitalismo, que prevê a acumulação voltada para o investimento, não é de todo adequada para um setor que trata essencialmente de bens perecíveis. Um setor que evidencia, cada vez mais claramente, o que o Papa Francisco defende desde a elaboração da sua Laudato si': ou seja, que não nos é permitido pensar que podemos superar a crise econômica sem ter que enfrentar os problemas ambientais; assim como não podemos superar a violação dos direitos humanos e a desigualdade social sem ter que nos confrontar ao mesmo tempo com a crise climática.
Digo mais, nos últimos dois anos surgiu uma situação que demonstra como do nosso descuido e da nossa imobilidade na gestão dessas duas crises é possível esbarrar em situações ainda piores. A crise pandêmica que ainda estamos vivendo é, de fato, uma prova clara de como a destruição dos ecossistemas e da biodiversidade que os povoa, assim como a má distribuição dos recursos (problemas dos quais o sistema alimentar faz parte), geram naturalmente efeitos devastadores e imprevisíveis.
É ainda mais necessário se colocar ao lado do Papa Francisco quando defende que recomeçar dessa pandemia voltando aos velhos paradigmas é, ao mesmo tempo, uma ação suicida, ecocida e genocida. E em conexão com o que foi defendido até agora, muito passa por como decidimos nos alimentar.
Hoje necessitamos com urgência de uma consciência e de uma educação alimentar completamente diferente, porque só assim poderemos iniciar uma verdadeira transição ecológica e mudar o destino das gerações futuras.
Ao ampliar a nossa consciência sobre alimentação e nutrição, devemos parar de fazer escolhas alimentares nocivas com base apenas na lógica do preço. Ao fazer isso, até agora apenas contribuímos para o aumento do fosso social, com o agravante de deixar as rédeas do jogo nas mãos de poucos. Não só isso: vários estudos afirmam que para cada dólar gasto em alimentos de baixa qualidade, existem custos embutidos que chegam a 2 dólares de externalidades negativas para o meio ambiente e 2 dólares a serem atribuídos ao verdadeiro custo social. Vimos o que isso pode significar.
Também precisamos tomar consciência de que os primeiros a perecer por causa dos angustiantes resultados sociais, econômicos e ambientais são sempre os mais humildes. São os pequenos agricultores que não têm condições para converter suas produções ou abandonar suas terras, que agora se tornaram inférteis. São as populações daquelas áreas do mundo onde o aquecimento global está tornando a sobrevivência quase impossível e que, portanto, são forçadas a migrar.
São os pobres que sofrem por fome ou são forçados a comer alimentos insalubres.
Ao mesmo tempo, sentindo uma obrigação moral, devemos nos mobilizar para que sejam tomadas medidas de contenção para quem consome alimento em excesso e de convergência dos recursos alimentares para aquelas populações que ainda veem concretamente o risco de morrer de fome. O mesmo princípio se aplica ao consumo da carne: no mundo existem mais de vinte países que têm um consumo médio de carne abaixo de 10 quilos por ano. Não podemos pedir-lhes que reduzam o consumo, mas sim ajudá-las a alcançar níveis adequados de nutrição e sustentáveis.
Se com a revolução industrial atingimos níveis de bem-estar generalizado nunca antes vistos, há três séculos carregamos o efeito colateral de um modelo de produção baseado na infinitude dos recursos naturais. Com empenho e por meio de comportamentos cotidianos, o início dessa nova era de conversão ecológica ficará sob a responsabilidade das ações e decisões de cada cidadão. Aqui está minha esperança e meu ensejo de que a coragem e a esperança que o Papa Francisco reconhece aos movimentos populares possam ser difundidas em todos os cantos da sociedade. Chegou a hora de nos unirmos a esses "poetas sociais" para realizarmos ações fortes comuns que possam nos levar a um futuro melhor, mais limpo e mais justo.