11 Outubro 2021
Como era esperado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, o Idec, e seus parceiros da sociedade civil, a Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU foi realizada sem atingir o objetivo de dar voz e espaço para as pessoas que realmente fazem parte dos sistemas alimentares. Pelo contrário, o evento foi uma oportunidade para formalizar a interferência da indústria no modo em que se produz e consome alimentos, reforçando as crises globais de fome, obesidade e mudanças climáticas.
A reportagem é de Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - Idec, publicada pelo site Alimentando Políticas, 06-10-2021.
Centenas de promessas foram feitas por líderes de Estados e empresas durante a “Cúpula das Pessoas”, como foi apelidado o evento pelos seus organizadores, em uma tentativa de simular a participação da sociedade civil. No entanto, não há obrigação de cumprimento de nenhuma dessas promessas, uma vez que não são compromissos vinculantes.
A maioria dos pontos favorecem soluções relacionadas a inovações tecnológicas e aumento de produtividade, desconsiderando experiências e práticas bem sucedidas de agroecologia em diversos países. Assim, as empresas de alimentos e o agronegócio continuam a ditar as regras do jogo.
Para Michael Fakhri, relator especial sobre Direito à Alimentação do Alto Comissariado da ONU para Direitos Humanos (ACNUDH), a agroecologia é uma maneira das pessoas assumirem o controle sobre os sistemas alimentares.
“A agroecologia deve ser o foco principal porque começa com a questão da dinâmica do poder e trata o problema como uma questão relacionada ao acesso a recursos e controle sobre o sistema alimentar”, defendeu em seu relatório. Segundo ele, a agroecologia é também economicamente viável. “Pesquisas sugerem que, se calcularmos a produtividade em termos de produção total por hectare e não para uma única safra, e em termos de entrada de energia versus produção, a agroecologia é frequentemente mais produtiva do que técnicas industriais intensivas”.
Fakhri já havia criticado a cúpula anteriormente, ao dizer que “grande parte” dela era “construída sobre uma fantasia” ao não considerar os desafios adicionais que a pandemia de Covid-19 impôs aos sistemas alimentares.
Multistakeholders é um termo em inglês que significa, em tradução livre, partes interessadas. A Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU foi pensada neste formato, para dar espaço a todo e qualquer ator ou parte interessada – seja empresam, instituições ou pessoas – em discutir e propor caminhos para os sistemas alimentares.
Mas, na prática, este espaço de multistakeholders foi comprovadamente desequilibrado, porque as empresas multinacionais dispõem de imensos recursos para promover suas agendas, ao contrário de povos originários, tradicionais, agricultores familiares, extrativistas, consumidores e as pessoas que realmente fazem parte dos sistemas alimentares.
A declaração política do Secretário Geral da ONU António Guterres reforçou esta perspectiva multistakeholder adotada desde o início da organização da cúpula. “A ação que transforma exige o engajamento e a participação próxima das pessoas que conduzem nossos sistemas alimentares, como fazendeiros, pastores, trabalhadores da alimentação e pescadores. Além dos governos, a comunidade empresarial – de pequenas e médias empresas a corporações multinacionais – têm um papel importante a desempenhar”, afirmou ele.
Para Janine Coutinho, coordenadora do Programa de Alimentação Saudável e Sustentável do Idec, a cúpula poderia ter sido uma grande oportunidade da real escuta das necessidades dos povos sobre o seu direito legítimo a uma alimentação adequada e saudável. “Mas, ao invés de soluções reais baseadas nas demandas e direitos, foram apresentados caminhos que consideram os interesses das grandes corporações – os quais irão perpetuar a insegurança alimentar e aumentar as doenças crônicas não transmissíveis”, defende ela.
“Não conseguimos identificar nos documentos formais da cúpula o uso do termo ‘ultraprocessado’, por exemplo, mesmo levando em conta o conjunto robusto de evidências dos malefícios do consumo destes produtos, que causam obesidade, doenças crônicas, mortalidade precoce e até depressão”, explica Janine.
A sociedade civil segue na luta por soluções reais, como o reconhecimento dos impactos dos produtos ultraprocessados na saúde e no meio ambiente, reforço das medidas regulatórias (rotulagem frontal, taxação de bebidas regulatórias, restrição de marketing) e a promoção de guias alimentares, como o Guia Alimentar para a População Brasileira, produzido pelo Ministério da Saúde com apoio do Idec.
Segundo a organização do evento, as agências da ONU sediadas em Roma – a Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), o Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA) e o Programa Mundial de Alimentos (WFP) – irão, em conjunto, liderar um centro de coordenação para apoiar o acompanhamento da Cúpula de Sistemas Alimentares.
Essa medida, na prática, ignora o fato de que já existe um espaço participativo e consolidado dentro das Nações Unidas para debater sistemas alimentares, que é o Conselho de Segurança Alimentar, que dispõe de reconhecidos mecanismos de participação, inclusive da sociedade civil.
Além disso, as reflexões e discussões da cúpula terão continuidade por meio de coalizões que foram e ainda estão sendo lançadas e lideradas por países membros e outras organizações, como a OMS, a Organização Mundial da Saúde. Parece, portanto, que se confirmam os anúncios que uma das apostas da cúpula era a fragmentação das políticas, o enfraquecimento do papel dos países como articuladores de políticas.
Tereza Cristina, ministra da agricultura, pesca e abastecimento, foi a representante do governo brasileiro na cúpula. Anunciou que o Brasil integrará as coalizões de Desperdício, Pecuária Sustentável e Alimentação Escolar, além de lançar uma frente sobre Crescimento Sustentável da Produtividade em parceria com o governo dos Estados Unidos.
“Ao contrário dos fatos – taxas recordes de desmatamento, uso intensivo e indiscriminado de agrotóxicos, ocupação de terras de povos originários e tradicionais, redução de nossa biodiversidade ou as 19 milhões de pessoas passando fome no Brasil – a ministra continua anunciando a sustentabilidade do nosso sistemas alimentar hegemônico e que o país ‘alimenta o mundo’”, pontua Janine Coutinho.
Para reforçar as demandas da sociedade civil frente aos resultados da Cúpula de Sistemas Alimentares da ONU, as organizações parceiras da Comunidade de Prática da América Latina e Caribe sobre Nutrição e Saúde (Colansa) lançaram um manifesto com 16 pontos fundamentais para a transição de modelos de produção e consumo de alimentos.
Com foco nos direitos humanos, o documento aposta em sistemas alimentares que contribuam para a igualdade social, para promover a saúde da população, além de sustentabilidade ambiental e mitigação das mudanças climáticas.
Acesse aqui o manifesto na íntegra, que está aberto para novas assinaturas de pessoas e organizações. Acesse aqui para assinar o manifesto.
Assinam o manifesto:
COLANSA – Comunidad de Práctica Latinoamérica y Caribe Nutrición y Salud
CLAS – Coalición Latinoamérica Saludable
FIAN Colombia – Food First Information and Action Network
El Poder del Consumidor
Alianza por la Salud Alimentaria
Fundación Interamericana del Corazón Argentina
Laura Piaggio
Fernanda Kroker
Mercedes Mora Plazas, Universidad Nacional de Colombia
Guillermo Paraje
Elvira Rosa Ablan Bortone, Universidad de Los Andes, Venezuela
Gloria Durán Landazábal
O sítio Alimentando Políticas, projeto independente, de pesquisa, criado e mantido pelo Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), que promove fundamentação científica para gestores públicos preocupados em criar políticas públicas efetivas relacionadas à alimentação e à nutrição.
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Cúpula de sistemas alimentares da ONU acabou, mas os problemas ficaram - Instituto Humanitas Unisinos - IHU