19 Outubro 2021
"O gesto de comer nunca é neutro. O que comemos, como comemos, quanto comemos: os pronomes e os advérbios interrogativos que unem o verbo comer contam sempre pedaços da história - individual e social - e afetam e decidem o nosso estar no mundo", escreve Anita Prati, em artigo publicado por Settimana News, 17-10-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Como pode a visão suportar / a matança de seres que são massacrados e despedaçados? Não é repulsivo beber seus humores e sangue, / as carnes cruas no espeto? / Não é monstruoso desejar se alimentar de um ser que ainda emite sons? / Os ritos de sarcofagia e de canibalismo sobrevivem ... (Franco Battiato, Sarcofagia).
Vem dos últimos dias, a notícia, que também ganhou espaço em alguns dos jornais nacionais, da decisão das cantinas universitárias de Berlim de reduzir drasticamente o percentual de carne servida nos pratos destinados aos alunos.
Algumas semanas depois da iniciativa da Volkswagen que, na sua histórica sede em Wolfsburg, com o retorno das férias de verão, baniu o currywurst e o buletten do refeitório da sede central, as trinta e quatro cantinas e cafés universitários de Berlim com o começo do semestre de inverno oferecerão aos alunos menus exclusivamente veganos e vegetarianos, limitando os pratos de peixe e carne a um percentual máximo de 4%.
A decisão foi tomada levando em consideração as demandas e pressões das organizações estudantis, que se tornaram porta-vozes de uma sensibilidade cada vez mais difundida no mundo juvenil alemão e não só. Motivações éticas e ambientais, ecológicas em sentido amplo, entrelaçam-se: de um lado a reflexão sobre a violência, de outro a consciência do impacto deletério que o consumo de produtos de origem animal tem no meio ambiente.
É uma virada que fala de uma importante mudança de paradigma, um sinal que aproxima um pouco mais os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030. É significativo que essa sensibilidade seja tão desenvolvida entre os jovens: o futuro chama através deles, e nós, adultos, temos o dever de ouvi-los. E para amadurecer em consciência também é necessário repensar o verbo "comer".
O gesto de comer nunca é neutro. O que comemos, como comemos, quanto comemos: os pronomes e os advérbios interrogativos que unem o verbo comer contam sempre pedaços da história - individual e social - e afetam e decidem o nosso estar no mundo. Os seres humanos vêm ao mundo marcado pela necessidade e pela falta e é também graças à fome que, no mundo, podem permanecer.
Assim como a percepção da dor permite que nos protejamos diante dos perigos da existência, é a fome que, dando voz à falta, garante a sobrevivência: o choro do recém-nascido chama o seio que o alimentará. Mas o seio que alimenta o recém-nascido não é um dispensador asséptico de substâncias nutrientes, e já a primeira mamada de colostro sacia necessidades que não são apenas de alimento.
Cada vez que levamos um bocado à boca voltamos para celebrar aquela primeira liturgia, e a comida que nos alimenta silencia um pouco - mesmo que apenas pelo curto tempo de digestão - até mesmo nossas ansiedades e nosso medo de ficarmos sozinhos em um mundo demasiado grande para nós.
Comemos porque somos seres necessitados. Comemos aquilo de que precisamos: alimento, sim, mas também afeto, cuidado, proteção, serenidade, beleza, confiança, paz. Comemos porque uma mãe nos alimentou e simbolicamente voltamos para a mãe que nos alimenta sempre que nos aproximamos da mesa ou colocamos comida na boca.
Comer é reviver a dimensão experiencial da necessidade satisfeita: me tenho portado e sossegado como uma criança desmamada de sua mãe; a minha alma está como uma criança desmamada. [1]
Comer nunca é um gesto neutro porque cada vez que comemos pegamos pedaços do mundo e os colocamos dentro de nós. Para ficar no mundo e continuar-a-estar no mundo, para ficar no mundo, devemos comer.
Quem já cuidou de um doente na fase terminal da doença sabe bem que um dos sinais inequívocos de que o fim se aproxima é a perda da vontade de comer e do instinto da fome. Por meio da educação, o mundo, reduzido a migalhas e triturado, estabelece uma conexão íntima e vital conosco e se torna vida para a nossa vida. A violência está sempre à espreita; mas a cultura nos salva do risco da brutalidade, e comer pode se tornar um ritual social, um convívio, uma festa. Eucaristia.
Esta é a palavra que encontramos no título do terceiro livreto da trilogia “animalista” de Plutarco [2], traduzido como Sobre comer carne.
Em vez de seguir os passos de Pitágoras e demorar nas razões que levaram o filósofo de Samos a fazer da abstinência das carne um dos pilares de sua escola de pensamento, Plutarco pergunta "com que sentimento, com que disposição de espírito ou raciocínio lógico o primeiro o homem tocou o sangue com a boca, levou aos lábios a carne de um animal morto e, depois de ter servido às mesas cadáveres e simulacros de vida, chamou de comida e, mais ainda, de iguarias aqueles membros que pouco antes mugiam, emitiam sons, podiam se mover e ver”.[3]
A dieta à base de carne poderia ter encontrado justificativa na época pré-histórica, quando a humanidade não tinha outra maneira que a violência brutal para obter comida; mas, Plutarco se perguntava, “que fúria, que paixão insana empurra a ter sede de sangue vós, homens de hoje, que têm tantos recursos à vossa disposição?” [4]
Parar diante das questões que Plutarco coloca na introdução de sua argumentada reflexão Perì sarkophagia poderia ajudar a repensar o gesto de comer com maior consciência. Porque se pode comer violentando o mundo com leveza acrítica, sentindo-se autorizado pelo carrinho vazio do supermercado a encher as sacolas de compras com tudo o que as prateleiras do shopping nos colocam à disposição.
Mas também pode-se começar a levar nossos pensamentos aos abismos de violência e sofrimento colocados à vácuo pelo plástico que sela postas de salmão e peitos de frango. E depois, talvez, a pergunta inicial de Plutarco deveria, hoje, ser reformulada nestes termos: “Que fúria, que paixão insana vos move para a sede de sangue vós, homens de hoje, que já não tendes mais tantos recursos à disposição?”.
Que os recursos à nossa disposição sejam cada vez mais frágeis e cada vez mais em risco a cada dia que passa, os especialistas nos dizem há décadas, e o clima louco deste verão de 2021 [na Europa] declarou isso a todos em letras flamejantes. Podemos continuar fingindo que nada está acontecendo? As novas gerações estão nos dizendo que não.
“Laudato sì’, meu Senhor, por nossa irmã mãe Terra, que sustenta e governa, e produz vários frutos com flores e ervas coloridas”. Esta irmã protesta contra o mal que lhe causamos, pelo uso e abuso irresponsáveis dos bens que Deus colocou nela. Crescemos pensando que éramos seus donos e dominadores, autorizados a saqueá-la. A violência que existe no coração do homem ferido pelo pecado também se manifesta nos sintomas de doenças que sentimos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, está nossa terra oprimida e devastada, que "geme e sofre as dores do parto".[5]
[1] Salmo 131
[2] Plutarco foi um dos grandes escritores da Grécia pós-clássica. Nascido por volta de 46 d.C. e falecido em 127 d.C., é o autor grego de quem sobreviveu o mais numeroso corpus de obras, dividido em dois grandes grupos: Vidas Paralelas e Moralia. Se a sua fama ao longo dos séculos esteve ligada sobretudo às Vidas Paralelas, para apreender a variedade de interesses de Plutarco e a riqueza dos temas com que trata, basta apenas folhear os títulos incluídos nas Morália: encontramos, de fato, escritos éticos, políticos, científicos, de caráter pedagógico e religioso, de crítica filosófica e literária, de erudição, de poética e de retórica. Uma trilogia verdadeiramente interessante está entre os escritos científicos: De sollertia animalium, Bruta animalia ratione uti, De esu carnium. Desvencilhando-se do antropocentrismo dominante no panorama cultural greco-romano da época, nesses folhetos Plutarco torna-se porta-voz de uma concepção de mundo que, hoje, não hesitaríamos em definir como “animalista”. Sacerdote do templo de Delfos, Plutarco manifesta em muitos de seus escritos uma clara inspiração religiosa, e também as reflexões ligadas ao mundo animal e, em particular, à oportunidade-necessidade de comer ou não comer carne brotam dessa sensibilidade.
[3] Plutarco, Tutti i Moralia – Prima traduzione italiana completa -, editada por Emanuele Lelli e Giuliano Pisani, Bompiani 2017, pág. 1921
[4] Plutarco, op. cit., p. 1923
[5] Papa Francisco, Carta Encíclica Laudato Sì’ sobre o cuidado da casa comum.
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De esu carnium. Cantinas universitárias reduzem drasticamente o percentual de carne por pressão dos estudantes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU