29 Setembro 2021
"Há muito mais profecia no musical dedicado à Cinderela do que no nosso magistério, que com tanto (demasiado) esforço tenta sair do impasse para tentar nos dizer, quem sabe quando, uma palavra decisiva a respeito da possibilidade de que metade do gênero humano seja considerada com direito de receber um dos sete sacramentos", escreve Anita Prati, em artigo publicado por Adista, 28-09-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Digito no buscador as palavras-chave “comissão diaconato feminino” - só para ter uma ideia da situação atual. Os links mais recentes, nem mesmo uma dezena, todos datados entre abril a maio de 2020, ou seja, um ano e meio atrás, falam da nova comissão de estudos organizada pelo Papa após a conclusão do Sínodo sobre a Amazônia.
Vou resumir. A primeira comissão de estudo sobre o diaconato feminino foi instituída pelo Papa Francisco em 2016 a pedido explícito da União Internacional das Superioras Gerais: “Quando vocês me sugeriram que criasse uma comissão - porque a ideia foi de vocês - eu disse sim, fiz a comissão”, recordou o Papa Francisco, em maio de 2019, ao entregar os resultados dos trabalhos da comissão às religiosas reunidas em assembleia plenária.
Resultados pouco significativos, porém, como o próprio Papa se viu obrigado a reconhecer: "O resultado do pouco a que todos concordaram (...) o resultado não é grande coisa" (aqui).
Aqueles três anos de estudo, de fato, só serviram para confirmar a presença de uma diaconia também para as mulheres nos primeiros séculos de vida da Igreja - um mero dado histórico sobre o qual, aliás, não creio que pudesse haver qualquer razoável (ou seja, científica) possibilidade de levantar dúvidas.
Poucos meses depois, encerrando os trabalhos do Sínodo sobre a Amazônia, o Papa Francisco, provavelmente ciente das inúmeras decepções que Querida Amazônia teria suscitado entre aqueles que esperavam palavras fortes de abertura e novidade daquele Sínodo, havia entre outras coisas anunciado sua disponibilidade de aceitar o apelo para reconvocar a comissão de estudos sobre o diaconato feminino e "abri-la com novos membros para continuar a estudar", porque "havia se chegado a um acordo entre todos que não estava claro" (aqui).
Mais alguns meses e em abril de 2020 chegou a comunicação oficial dos nomes dos doze estudiosos, incluindo cinco teólogas, que se juntavam a essa nova comissão. As notícias na Internet parecem parar nessa data. Ou seja, a comissão existe, mas não se move. Por causa da Covid, de fato, a comissão nunca se reuniu, nem mesmo por videoconferência.
Agora, entretanto, talvez algo esteja se movendo. Para ter notícias, é preciso olhar um pouco mais atentamente, investigando entre as dobras da rede. Eis então, por um lado, um artigo publicado no final de agosto passado no semanário inglês on-line de informação católica The Tablet, que anuncia, para meados de setembro, o primeiro encontro da comissão em Roma; e, do outro lado, a retomada do mesmo artigo na revista Adista de 3 de setembro, com o sintético título “Depois de um ano e meio, reúne-se a comissão para o Diaconato feminino” (aqui). Algo está se movendo, então?
Se olharmos os pronunciamentos do magistério sobre as vívidas questões da contemporaneidade, partindo, para não nos afastarmos muito no tempo, de Pio IX e do Concílio Vaticano I, a impressão que se tem é que a sensibilidade profética - se profecia é saber ler os sinais dos tempos - muitas vezes falta nesses documentos: do Non expedit, que estigmatizou a participação dos católicos na vida política ativa do recém-nascido estado unitário, à encíclica Pascendi dominici gregis de Pio X (1907) que condenava modernismo, enredando e impedindo, efetivamente, o livre pensamento; da definição de Mussolini como “o homem que a Providência nos fez encontrar” (assim declarou Pio XI após a assinatura dos Pactos de Latrão de 1929), à excomunhão dos comunistas por decreto do Santo Ofício de 1 de julho de 1949; da condenação dos contraceptivos da Humanae vitae (1968), à não admissão à comunhão eucarística dos divorciados em segunda união da Familiaris consortio (1981).
Todos esses documentos falam-nos da incapacidade do Magistério em assumir com consciência e serenidade profética os fermentos de mudança que atravessam o mundo.
A distância temporal permite-nos, hoje, apreender de imediato o fosso candente entre a palavra diretiva e sancionadora do magistério e a vida, inexoravelmente projetada numa direção obstinada e contrária.
Basta pensar nos rostos e nas histórias das pessoas que encontramos todas as semanas em nossas paróquias, nos salões comunitários, na missa dominical, nos encontros de formação, no catecismo, nos ensaios do coral, para perceber o quanto aqueles tons peremptórios, aqueles vetos e aquelas sanções, aquelas diretrizes e aquelas imposições, no longo prazo - o único capaz de medir realmente a qualidade e a capacidade profética das palavras - revelaram-se irrisórios e ineficazes, incapazes de captar os kairòs que, em todos os tempos, preserva e manifesta os sinais dos tempos.
Há poucos dias vi um filme, lançado no início de setembro, que propõe uma releitura intrigante da eterna fábula da Cinderela. Não é uma obra-prima ou uma obra memorável, apenas um filme bem feito e agradável, um daqueles produtos que a indústria cinematográfica estadunidense sabe fornecer com grande perícia e habilidade.
Entre canções originais e covers de temas famosos, as histórias de protagonistas principais e personagens secundários se desenrolam seguindo itinerários inéditos, em alguns aspectos surpreendentes, mas por outros simplesmente em consonância com um mundo, o nosso, que está inexoravelmente minando o paradigma, até agora aparentemente inoxidável, do patriarcado androcêntrico. Um mundo felizmente feminista, multiétnico e globalizado.
Enquanto eu acompanhava com curiosidade e diversão o filme que se desenrolava, me peguei refletindo sobre a força de sua mensagem: uma mensagem que considera estreitas as malhas do banal e quimérico "viveram felizes para sempre" embaladas em chave exclusivamente nupcial, mas que proclama com explosivo entusiasmo a felicidade de viver em um mundo feminista, multiétnico e globalizado. Um mundo, repito, felizmente feminista, multiétnico e globalizado...
Cinderela, setembro de 2021. Comissão de estudos sobre o diaconato feminino, setembro de 2021. Se profecia é saber ler os sinais dos tempos, bem, há profecia nesse musical estadunidense. Aliás, há muito mais profecia no musical dedicado à Cinderela do que no nosso magistério, que com tanto (demasiado) esforço tenta sair do impasse para tentar nos dizer, quem sabe quando, uma palavra decisiva a respeito da possibilidade de que metade do gênero humano seja considerada com direito de receber um dos sete sacramentos.
Todos os membros da Igreja devem saber reconhecer os sinais dos tempos e empenhar-se com coerência ao serviço do evangelho, reza uma das orações eucarísticas. Como se costuma dizer nesses casos, seria cômico se não fosse trágico.
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Cinderelas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU