“Há que se reconhecer que a pandemia desvendou em profundidade o nível de desigualdade existente no Brasil, além de agravar a desigualdade em suas diversas dimensões: econômica, social, cultural, territorial, trazendo inclusive novas demandas para as políticas sociais”, escreve Denise Ratmann Arruda Colin, assistente social do Ministério Público do Paraná, atualmente ocupando o cargo de diretora do Departamento de Planejamento e Gestão da Sub-Procuradoria para Assuntos de Planejamento Institucional do Ministério Público do Paraná.
Colin é professora do curso de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná e pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR. Doutora em sociologia pela Universidade Federal do Paraná. Foi Secretária Nacional de Assistência Social no Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome/MDS no período de 2011 a 2014. Foi coordenadora da política estadual de assistência social na Secretaria de Estado do Trabalho, emprego e Promoção Social do Paraná, de 2003 a 2009.
O artigo foi escrito a propósito do debate [online] Política Nacional de Assistência no contexto da crise socioeconômica e sanitária no Brasil, ocorrido no último dia 09 de junho.
A atividade promovida pelo CEPAT, contou com a parceria e o apoio do Instituto Humanitas Unisinos - IHU, o Departamento de Ciências Sociais, da UEM, o Curso de Serviço Social da PUCPR, o Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR e o Observatório Nacional de Justiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida – OLMA.
OS QUE LUTAM
Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons;
Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons;
Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda;
Porém há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis.
Bertolt Brecht
O Centro de Promoção de Agentes de Transformação – CEPAT de Curitiba, com o objetivo debater o impacto da pandemia da Covid 19 junto a política pública de assistência social e as repercussões para a população em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social, estruturou o Projeto de Formação Político-Cidadã para os(as) Trabalhadores(as) do Sistema Único da Assistência Social – SUAS, a ser ministrado por meio de duas webconferências no mês de junho de 2021, tendo por fundamento a construção de respostas coletivas às demandas comunitárias impulsionadas pelo contexto de crise econômica e sanitária, na perspectiva de reorganizar a sociedade sob bases mais equitativas e com maior justiça social. O primeiro evento, transcrito no texto em tela, oportunizou o aprofundamento do debate, da troca de experiências, e culminou na realimentação do compromisso conjunto na defesa de direitos e do modelo de Estado Social, além de viabilizar o compartilhamento de afetos num período de isolamento social.
Denise Ratmann Arruda Colin. da PUCPR, no debate [online] "Política Nacional de Assistência no contexto da crise socioeconômica e sanitária no Brasil"
As respectivas conferências se constituirão em etapas preparatórias para os ciclos de estudos e debates: TransFORMAR comunidades: Construção de metodologias populares, que acontecerão ao longo do segundo semestre do corrente ano, em quatro oficinas dedicadas a ampliar o conhecimento e a aplicação de referenciais teórico-metodológicos e instrumentais técnico-operativos como estratégia para consolidar o acesso a direitos socioassistenciais, visando o protagonismo dos profissionais e das comunidades no enfrentamento efetivo das múltiplas expressões da questão social visando o asseguramento da proteção social.
O diálogo foi estruturado em duas dimensões:
1) Contextualização da política de assistência social no atual cenário de pandemia que gerou uma crise humanitária e o acirramento das desigualdades sociais, considerando as implicações dos desmontes dos direitos sociais e dos sistemas de políticas públicas, cujas crises sociais, políticas e econômicas já vinham se mostrando marcantes no Brasil, e agora se acumulam com a crise epidemiológica;
2) Discussão acerca de algumas possibilidades e limites de atuação na perspectiva da mobilização e da incidência política diante desta conjuntura, vislumbrando um novo projeto de sociedade alinhado ao princípio da dignidade humana, e com participação democrática cidadã.
De pronto há que se demarcar que a crise econômica e sanitária que atualmente comparece no Brasil não se inicia com a pandemia, e tampouco é originária do momento atual, mas sim remonta da forma de constituição da sociedade brasileira. Historicamente somos marcados por uma trajetória escravocrata, patriarcal e de colonialidade (QUIJANO, 2009), que em muito contribuiu para incitar o preconceito de raça, de gênero e de classe social, agravado com as repercussões da relação capital x trabalho x poder nas disputas de diferentes interesses que configuram a sociedade moderna capitalista, e contribuem para instalar a polaridade de potencializar ou de inviabilizar o acesso a direitos, bens, riquezas e serviços sociais conquistados na esfera pública.
Para Florestan Fernandes (1976), o fundamento é que nunca houve um processo de alteração das estruturas econômicas e políticas, mas apenas a reapropriação das estruturas de poder por meio da associação entre os procedimentos conservadores da oligarquia e a dominação da burguesia, que propagava a assimetria do desenvolvimento econômico com a democracia e nunca permitiu a inclusão dos escravos libertos e demais pessoas que comporiam a classe trabalhadora no processo decisório das agendas públicas.
Diante das graves crises mundiais, emanadas do sistema capitalista, o Estado se torna imprescindível, tal como ocorreu nos Estados Unidos, em função da grande depressão de 1929, com o Plano Marshall e a estruturação do Estado de Bem-Estar Social na Europa, em decorrência da necessária recuperação dos países aliados após a II Guerra Mundial em 1945, crise do petróleo (CASTEL, 1998; ESPING-ANDERSEN, 1991), e nesse século com a recessão de 2008. A diferença é que aliada com as adversidades econômicas e políticas da conjuntura brasileira, agora se espraia também uma situação epidemiológica de desconhecida consumação, seja do ponto de vista de saúde pública seja quanto aos impactos diretos e indiretos, nas mais diversas vertentes, em âmbito nacional e mundial, que culmina na geração de uma descomunal crise humanitária.
Portanto, estão enraizadas as desigualdades estruturais que assolam o Brasil, como as desigualdades sociais, políticas, econômicas, culturais e territoriais, impulsionadas por um modelo de desenvolvimento cada vez mais financeirizado, excludente e centralizador de poder e riquezas na mão de uma elite (DOWBOR, 2020).
Para promover a gestão dessa realidade na sociedade ocidental contemporânea depara-se com a permanente presença de distintos modelos de Estado e de concepção de proteção social, submetidos às pressões dos diferentes interesses e das correlações de forças vigentes. Sob a égide do Estado Neoliberal [1], se apresenta a reduzida intervenção estatal na economia, com primazia do livre mercado, do individualismo, da flexibilização das relações do trabalho, da globalização da produção, da valorização do capital financeiro e dos avanços tecnológicos, como forma de impulsionar o crescimento econômico sustentável.
Sob esse prisma, a proteção social é pensada como atendimento focalizado, destinado à população extremamente pobre, tendo como fundamento a solidariedade social e, portando, sob a responsabilidade da sociedade civil. Volta à cena a noção da caridade e da filantropia, ou seja, do dever moral, sem interferir nos fundamentos estruturais das desigualdades sociais, e tampouco confrontar os interesses econômicos na vertente neoliberal do mercado autorregulável, retirando de foco a máxima do direito de todos os cidadãos e dever do Estado (BEGHIN, 2005).
E sob a ótica do Estado Social e Democrático de Direito, cuja interpretação aferida para o sistema de proteção social é muito mais abrangente, porque parte do pressuposto de que impera um consenso societário acerca do princípio constitucional de dignidade da pessoa humana, de reciprocidade social e de prevalência do interesse coletivo. Ela pressupõe a instituição de um patamar de civilidade assegurado pela responsabilidade da esfera pública na superação das desigualdades que conformam a organização da sociedade brasileira e que se manifestam em variados espectros em todo território nacional. Essa concepção de proteção social na sociedade moderna se configura como resposta institucional às expressões da questão social, das desigualdades impostas pelo modelo de desenvolvimento capitalista, sendo efetivada pelas políticas públicas na provisão de serviços e benefícios sociais, como forma parcial de participar da reprodução social e do trabalho, produzidas na contradição entre as classes sociais.
Yasbek (1993) recorda que no caso do Brasil, as desigualdades acabaram por criar uma gama da população expropriada de seus direitos e subjugada às expressões da questão social, mas que tal população, pela sua resistência, vocalizou a imposição da presença de um Estado Social que se colocasse como corretivo à estrutura de desigualdade social, política, econômica, cultural, territorial, de raça e de gênero. E, assim, forjou a estruturação das políticas sociais e dos sistemas de proteção social, como o Sistema Único de Saúde - SUS, o Sistema Único de Assistência Social - SUAS, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - SISAN, o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente - SGD, os Sistemas de Educação, o Sistema de Segurança Pública, etc.
Todavia, ao longo do percurso de institucionalização das políticas sociais na agenda pública, tendo como parâmetro os princípios da universalidade e da indivisibilidade dos direitos, o que se identificou foram, na maioria das vezes, a construção de processos tardios, inconsistentes e descontinuados, produzidos de forma centralizada, em períodos de autoritarismo e de ideologias desenvolvimentistas, com sobreposição de competências (DRAIBE, 1993), e que acabaram por moldar, moralizar e naturalizar a pobreza no sentido foucaultiano do poder disciplinar. E raros foram os momentos de conquistas civilizatórias, como o da promulgação da Constituição Federal de 1988, que também está carreada de contradições, particularmente entre as previsões dos direitos sociais e econômicos, e das bases políticas.
Esse enfoque se tornou reprodutor das desigualdades, e abriu espaço para o questionamento da legitimidade das instituições, do modelo de governança, além de direcionar para um elevado risco de aumento da violência e dos conflitos internos e externos. Como afirma Bauman (2008), em tempos de sociedade do consumo, houve uma extrema valorização de elementos que traduzem a lógica do capital como a competição, o individualismo, a fragmentação dos processos, a fragilização dos laços sociais, e a transformação da vida humana em mercadoria, e as políticas públicas acabaram se pautando sob a ótica meritocrática e gerencial. Daí a importância de dotar o ser humano e as relações sociais munidas de um potencial ético-político-emancipatório, por meio de novas práxis, novas estratégias democráticas, com a ampliação do Estado na vertente gramsciana, cujos sujeitos coletivos defendem a agenda dos direitos humanos.
Segundo órgãos de pesquisa oficiais, como o IBGE [2], e até agências multilaterais, nas duas últimas décadas, o Brasil vivenciou um processo de expansão do emprego, de aumento real do salário mínimo, de eliminação da extrema pobreza, da fome e da taxa de mortalidade materno-infantil, de aprimoramento dos sistemas das políticas sociais, de proteção à população vulnerável, às crianças e adolescentes, à juventude, aos idosos, às pessoas com deficiência, às mulheres, de promoção da participação e do controle, entre outros indicadores. Mas a partir de 2015, novamente houve uma alteração do índice de Gini, que demonstra a desigualdade de renda, além do decréscimo da economia, do Produto Interno Bruto - PIB per capita, quando retornou a aceleração do desemprego e da informalidade.
E as últimas notícias da imprensa, datadas de 01/06/2021, abordam o crescimento da economia e do PIB e, ao mesmo tempo, registram o aumento da pobreza, com o Brasil voltando ao mapa da fome, e do desemprego. Do total de 210 milhões de habitantes, 41 milhões de trabalhadores estão no setor informal, 14,4 milhões estão desempregados, com projeção de chegar a 20 milhões como consequência da pandemia, e 33 milhões, apesar de possuírem vínculos formais no setor privado tiveram, em sua grande maioria, significativas reduções salariais (dados do IBGE no 1º trimestre de 2021). Esta realidade vem comprovar que a riqueza produzida está concentrada na mão de determinados grupos e não é redistribuída para o conjunto da população brasileira.
Viviane Aparecida Ferreira de Lara Matos, do CEPAT e Denise Ratmann Arruda Colin, da PUCPR, no debate [online] "Política Nacional de Assistência no contexto da crise socioeconômica e sanitária no Brasil"
Também é possível visualizar alguns exemplos da desestruturação do sistema de proteção social brasileiro na atualidade, onde será utilizado como referência o impacto sobre a política de assistência social:
1) A aprovação da EC nº 95/2016 (teto dos gastos), que congela por 20 anos os investimentos nas políticas sociais, sinaliza a retirada de R$ 800 bilhões do SUAS, conforme Nota Técnica nº 27, do DISOC/IPEA, de setembro de 2016;
2) A sobreposição de estruturas organizacionais no Ministério da Cidadania, tal como a Secretaria de Nacional de Assistência Social com a Secretaria de Desenvolvimento Social;
3) O estabelecimento de ações, serviços, programas, projetos, benefícios e de cofinanciamento em paralelo ao respectivo sistema público, como o Programa Criança Feliz; Renda Emergencial; e agora a nova proposta para o CadÚnico e o Programa Bolsa Família;
4) A desconsideração das instâncias de deliberação (Conferência Nacional que não foi convocada em 2019) e de pactuação (Comissão Intergestores Tripartite), cujas reuniões estão sendo postergadas e as deliberações e/ou pactuações se transformaram em meras comunicações, posto que não admitem o diferente e o questionamento;
5) A ausência de pactuação para reajuste das transferências de recursos e para ampliação da cobertura de serviços, a despeito das demandas e também da inflação terem aumentado imensamente, ampliando as condições de desproteção social;
6) A sistemático atraso nos repasses do fundo público para Estados e Municípios, totalizando até agora R$ 2,3 bilhões de anos anteriores e redução de R$ 1,7 bilhões no orçamento de 2020, que impactam diretamente na manutenção dos serviços e direciona para um atendimento cada vez mais precarizado, visto que a restrição de recursos vem se agravando a cada ano: em 2014 o cofinanciamento federal era na ordem de R$ 3,06 bilhões e em 2020 representou apenas R$ 3,06 bilhões, segundo informações obtidas junto ao blog do Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS;
7) O direcionamento dos recursos para Programas, que não tem continuidade, cujas receitas são provenientes de Emendas Parlamentares;
8) O aumento das desigualdades, que recai fortemente na população dos territórios mais vulneráveis, mulheres, jovens e negros, com baixo escolaridade e trabalhos precários; entre tantos outros desmontes.
Conclui-se, assim, que tais desmontes não iniciaram com a pandemia, visto que vem persistindo desde 2015, e que são fruto das crises cíclicas do capital. Mas há que se reconhecer que a pandemia desvendou em profundidade o nível de desigualdade existente no Brasil, além de agravar a desigualdade em suas diversas dimensões: econômica, social, cultural, territorial, trazendo inclusive novas demandas para as políticas sociais.
Nessa perspectiva, cabe relacionar as requisições que passam a tencionar o sistema de proteção social, tais como:
1) A necessidade de ampliação do acesso à transferência de renda, em virtude do aumento do desemprego e da proibição do trabalho em algumas áreas produtivas devido ao lockdown, como a da informalidade com os vendedores ambulantes e os catadores de material reciclável; da cultura; do lazer, dos pequenos negócios, etc. Essa situação resultou no fato de que 60 milhões de brasileiros tiveram que solicitar a concessão do auxílio emergencial, muito embora nem todos tenham conseguido acessar;
2) A necessidade de serviços de saúde mental para atendimento dos casos de depressão e de outras doenças geradas em função do isolamento social e da violência;
3) A necessidade de retomada dos conteúdos educacionais diante dos prejuízos das aulas remotas e dos altos índices de abandono e evasão escolar;
4) A necessidade de ampliação dos serviços e equipes do SUAS para atendimento da demanda com o aumento das vulnerabilidades e violações de direitos;
5) A necessidade de fomento à política do trabalho e de economia solidária;
6) A necessidade de introdução de um modelo de desenvolvimento econômico aliado com o social e o ambientalmente sustentável;
7) A necessidade de elaboração de Plano de Contingência articulado com as políticas sociais, durante e pós/trans-pandemia;
8) A necessidade de disponibilizar vacina para imunização de toda população.
Como possibilidade de delineamento de uma nova ordem societária, temos a premência em se consolidar a vertente do Estado Social, tal como previsto na Constituição Federal de 1988, que prevê a imperiosidade da aliança entre o desenvolvimento econômico com o social e o ambientalmente sustentável; a redistribuição da renda; a redução das desigualdades; a garantia do aumento real do salário mínimo; o fomento às condições de trabalho digno; o aprimoramento das políticas sociais; a proteção às crianças e adolescentes, à juventude, aos idosos, às pessoas com deficiência, às mulheres.
Portanto, fica evidenciado de que outro modelo de Estado é possível, o que induz a imprescindível mobilização coletiva com o propósito de resgatar os direitos já conquistados pela sociedade, denunciar os desmontes, reordenar as ofertas públicas considerando as novas demandas, e promover um amplo debate com as organizações da sociedade civil, os movimentos sociais, os partidos políticos, os sindicatos, os centros de defesa, as igrejas, os fóruns, os conselhos para desenhar essa reinvenção e fazer frente aos impactos das reformas trabalhista e previdenciária já em vigência, e as reformas administrativa, política e tributária em discussão no Congresso Nacional.
Ana Paula Abranoski, do CEPAT, Denise Ratmann Arruda Colin, da PUCPR, Lilian Avanzo, do CEPAT, e Viviane Aparecida Ferreira de Lara Matos, do CEPAT, no debate [online] "Política Nacional de Assistência no contexto da crise socioeconômica e sanitária no Brasil"
E que no caso da política de assistência social esse direcionamento foi mais efetivamente implementado a partir de 2003, com a deliberação na IV Conferência Nacional de Assistência Social pela instituição do Sistema Único de Assistência Social em todo território nacional, enquanto um sistema público, gratuito, unificado, universal para quem dele necessitar, voltado para a atenção à população em situação de vulnerabilidade e risco, a ser prestada por trabalhadores qualificados através da oferta de um conjunto de serviços continuados e de benefícios socioassistenciais nos 5.570 municípios, 26 Estados e Distrito Federal, e tendo como diretriz a participação popular e o controle social.
De forma colaborativa entre as três esferas de governo foi estabelecido nova sistemática de cofinanciamento, com repasse regular e automático fundo a fundo público, para subsidiar a rede de atendimento que atualmente está composta por 13.000 equipamentos públicos, dentre Centros de Referência de Assistência Social - CRAS, Centros de Referência de Assistência Social - CREAS, Centros de População de Rua - Centros Pop, unidades de acolhimento institucional; 17.000 entidades prestadoras de serviços; 420.000 trabalhadores do SUAS; 93.000 conselheiros de assistência social, 4,5 milhões de beneficiários do Benefício de Prestação Continuada - BPC; 13 milhões de famílias beneficiárias do Programa Bolsa Família – PBF; 60 milhões de usuários, sendo 25 milhões em acompanhamento nos serviços socioassistenciais (Censo SUAS 2019). Ademais, foi estruturado um arranjo organizacional composto por instâncias de deliberação (Conferências e Conselhos de Assistência Social); de pactuação (Comissões Intergestores Tri e Bipartite); de gestão (Secretarias de Assistência Social e órgãos similares); de participação social (Fóruns de Trabalhadores, de Usuários e de Entidades; Frentes Parlamentares e de Defesa do SUAS).
A proteção social não contributiva ofertada pela política de assistência social é assegurada por meio da prestação de serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais, incluindo a transferência de renda, consubstanciados na oferta de bens materiais e imateriais. Os bens materiais viabilizam a sobrevivência e visam alterar as condições de acesso a recursos, bens e riquezas. Já os bens imateriais, culturais e simbólicos, promovem a inserção na vida social, voltadas ao empoderamento, ao desenvolvimento da autonomia, das condições de pertencimento, e da organização e luta por direitos.
Tem por eixo central de intervenção a dimensão relacional e protetiva dos indivíduos e famílias, a convivência comunitária e a incidência política no território, além de proteger em situações de emergência e calamidade. Por isso, a política de assistência social foi considerada como essencial no Decreto Presidencial que regulamentou a atenção à pandemia do COVID 19 no Brasil, e que necessariamente deve estar integrada com outras políticas sociais (saúde, trabalho, habitação, segurança alimentar, entre outras).
Assumiu como objetivos consoante o art. 2º da Lei Federal nº 8.742/93 – Lei Orgânica de Assistência Social/LOAS, assegurar a proteção social, na garantia da vida, da redução de danos e da prevenção da incidência de riscos; a defesa de direitos, visando o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais; e a vigilância socioassistencial, ao analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos.
A despeito da insuficiência de serviços e de recursos para o atendimento das inúmeras desproteções a que a população brasileira está submetida, fruto dos condicionantes das enormes desigualdades, e agora agravada com os desmontes das políticas sociais e dos direitos sociais, como já assinalado anteriormente, é possível realçar alguns elementos podem contribuir com a instituição de uma governança eficiente e colaborativa, durante e trans-pandemia.
O primeiro aspecto diz respeito a elaboração de um real diagnóstico local, regional e estadual, como ferramenta para reconhecimento das vulnerabilidades e das violações de direitos, que traduzem as desproteções e as novas demandas apresentadas em virtude da pandemia, considerando as distintas especificidades e distinções existentes entre e intra-territórios, indivíduos e famílias. Implica, ainda, no mapeamento da rede de proteção, dos grupos de apoio e dos recursos humanos, materiais e financeiros existentes e necessários, bem assim na identificação dos vínculos estabelecidos na relação das equipes de referência dos serviços e os territórios, as famílias, os coletivos e os indivíduos.
O segundo aspecto remonta ao fomento do trabalho social desenvolvido junto aos usuários e às famílias em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social, compreendido como o conjunto de procedimentos efetuados a partir de pressupostos éticos, conhecimentos teórico-metodológicos e técnico-operativos, com a finalidade de contribuir para o fortalecimento da convivência, o acesso e exercício dos direitos, e o fomento às possibilidades de intervenção na vida social.
Tem por pressuposto uma concepção ampla de família, ou seja, constituída por um conjunto de pessoas, unidas por laços consanguíneos, afetivos e/ou de solidariedade. É considerada como um núcleo primário de afetividade, acolhida, convívio, sociabilidade, autonomia, sustentabilidade e referência no processo de desenvolvimento e exercício da cidadania, cabendo ao Estado o papel de fortalecer sua capacidade protetiva e de assegurar os direitos de seus membros, a fim de evitar a culpabilização e o conservadorismo. Cabe lembrar que essa família também pode ser reprodutora de conflito, isolamento e até mesmo de violações de direitos, o que exige atenção na totalidade das demandas apresentadas. A ideia de família abarca uma construção a partir de critérios e contextos históricos, sociais, econômicos e culturais específicos, e que expressam diferentes arranjos familiares (monoparentais, homoafetivos, intergeracionais, tradicionais) (MIOTO, 2017).
Nessa esteira, é preciso absorver as particularidades de grupos populacionais específicos (mulheres, jovens, negros, LGBTQI+) e/ou de ciclos de reprodução da pobreza, violência e exploração; a pluralidade de papéis e posições ocupadas por cada um dos membros da família; as relações familiares, comunitárias e redes sociais de apoio estabelecidas, assim como suas potencialidades e necessidades individuais e coletivas, além do nível de acesso às políticas públicas, direitos e condições dignas de sobrevivência e cidadania. O que jamais deve significar controle do Estado e imposição de um modo de vida ou de determinados comportamentos às famílias e aos indivíduos.
O terceiro aspecto resgata a responsabilidade da política de assistência social no período e pós/trans-pandemia, requisitando sua participação no Comitê Local de Crise e a elaboração do Plano de Contingência da Política de Assistência Social, com o reordenamento das equipes, dos equipamentos, dos serviços, e das ofertas, e a previsão de recursos orçamentários e financeiros em comum acordo com o Poder Legislativo, considerando as novas demandas e as peculiaridades de determinados públicos.
A título de exemplo vale destacar a atenção à população de rua, migrantes, catadores de materiais recicláveis (aluguel social; espaços exclusivos para a quarentena de assintomáticos ou suspeitos; segurança alimentar e cozinhas comunitárias); aos usuários do serviço de convivência e fortalecimento de vínculos - SCFV (articulação com as escolas, movimentos sociais, organizações de cultura e esporte); o acompanhamento aos indivíduos e famílias prestados pelo Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família - PAIF, pelo Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos – PAEFI; o acompanhamento e assessoramento para unidades de acolhimento institucional e Programa de Família Acolhedora (com contatos sistemáticos; plano de atividades de cultura, lazer, sociabilidade),em estreita parceria com as diversas políticas setoriais e de defesa de direitos, órgãos do sistema de justiça, entidades não governamentais, movimentos sociais, igrejas, entre outros.
Tornou-se prioritário a reorganização para concessão dos benefícios socioassistenciais, envolvendo cadastramento, revisão de critérios, fornecimento de orientação e apoio para preenchimento dos aplicativos, acompanhamento social dos beneficiários do BPC, PBF, benefícios eventuais (auxílio natalidade; auxílio funeral; cesta básica em articulação com a política de segurança alimentar e nutricional; aluguel social; etc) e do auxílio emergencial, tanto do governo federal quanto dos instituídos pelos Estados e Municípios.
Para a qualificação das prestações cabe a adoção de medidas de prevenção, com fornecimento de equipamentos de proteção individual, acompanhadas de suporte técnico e psicológico para as equipes da gestão, dos serviços, dos conselhos, e a produção de orientações e notas técnicas para atuação, particularmente que no concerne às condições de atendimento nas condições de isolamento social, do incentivo ao fortalecimento de vínculos, do desenvolvimento de novos formatos relacionais, inclusive com a utilização de ferramentas tecnológicas. Faz-se mister, também, o monitoramento do trabalho social desenvolvido, das denúncias recebidas, dos encaminhamentos efetuados e dos resultados obtidos, com registro e avaliação sistemática.
O quarto aspecto sinaliza as potencialidades de enfrentamento da crise econômica e sanitária por meio da defesa de articulação entre as políticas sociais e econômicas; da contraposição aos desmontes das políticas sociais com mobilização de toda sociedade; do acesso à renda integrada com a oferta de serviços públicos, e análise crítica dos modelos em disputa; de um modelo de proteção social público e universal, com o SUAS fortalecido, em detrimento de uma atuação estatal subsidiária, pontual e emergencial, no campo do conflito entre a lógica do direito e da filantropia/solidariedade. Enfim, precisamos reinventar o Brasil sob novas perspectivas, mais inclusivas e democráticas!
[1] Tendo por fundamento os princípios liberais remodelados pelas propostas dos economistas Friedrich Hayek, da Escola Austríaca, e de Milton Friedman, da Escola de Chicago. Tomou corpo na década de 1980, com o Consenso de Washington, por meio da adesão dos líderes dos EUA (Ronald Reagan) e do Reino Unido (Margaret Thatcher).
[2] Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2018.
BAUMAN, Z. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
BEGHIN, N. A filantropia empresarial: nem caridade, nem direito. São Paulo: Cortez, 2005.
BUCI-GLUCKSMANN, Christinne. Gramsci e o Estado. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes, 1998.
DOWBOR, L. O capitalismo se desloca: novas arquiteturas sociais. São Paulo: edições SESC, 2020.
DRAIBE, S. Welfare State no Brasil: características e perspectivas. Campinas: UNICAMP, 1993.
ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas do welfare state. Lua Nova, São Paulo, n. 24, p. 85-116, Set. 1991.
FERNANDES, F. A Revolução Burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar ed., 1976.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 23. ed. São Paulo: Graal, 2004.
MIOTO, R.; HORST, C. Serviço Social e o trabalho com famílias: renovação ou conservadorismo? Rio de Janeiro: Revista Em Pauta, UERJ, 2º semestre de 2017, nº. 40, v. 15, p. 228 – 246.
QUIJANO, A. Colonialidade do Poder e Classificação Social. In: SANTOS, B. de S;
MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009.
YASBEK, M.C. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: Cortez, 1993.
BRASIL. Lei Federal nº 8.742/93 – Lei Orgânica de Assistência Social/LOAS.
BRASIL. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2018 / IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. - Rio de Janeiro: IBGE, 2018.