17 Junho 2021
"Pesquisa mostra face nefasta da “austeridade” na pandemia. Desocupação sobe; renda e indicadores de bem-estar caem de forma vertiginosa. Já os bancos multiplicam suas fortunas. Mas, para a ortodoxia econômica, este é o equilíbrio perfeito", escreve Paulo Kliass, doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal, em artigo publicado por Outras Palavras, 15-06-2021.
A cada dia que passa crescem as evidências confirmando as hipóteses daqueles que sempre criticamos a estratégia de Paulo Guedes para o comando da economia brasileira. Ao contrário do discurso edulcorado divulgado pelos círculos do financismo, a opção pela austeridade obnubilada só tem provocado recessão, desemprego, desindustrialização e concentração de renda . Além disso, a adoção do chamado “Novo Regime Fiscal” (NRF) embutido na Emenda Constitucional (EC) nº 95 tem contribuído de forma severa para o desmonte das políticas públicas e para a destruição do Estado.
Assim, os recordes sucessivos nos indicadores de desemprego e informalidade/precariedade no mercado de trabalho somam-se à redução expressiva da capacidade que a administração estatal apresenta em oferecer os serviços públicos, tal como previstos na própria Constituição. A renda das famílias cai de forma abrupta, ao mesmo tempo em que o acesso a direitos como educação, assistência social, saúde e previdência social, entre outros, fica bastante debilitado. Ocorre que, de acordo com a visão da ortodoxia monetarista, o caminho seria esse mesmo. Para esse pessoal, não haveria alternativa para a busca do tal equilíbrio mágico entre as sacrossantas força de oferta e demanda.
Brasil – Taxa de Desemprego – 2012-2021
Fonte: IBGE
Não é por mero acaso que a curva do desemprego oficial, apurado pelo IBGE, apresenta essa inflexão para cima exatamente no início de 2015, quando Dilma Rousseff chama Joaquim Levy para chefiar o Ministério da Fazenda. Naquele momento tem início, de forma quase institucional, a implementação do austericídio. Ao alegar supostos problemas com crescimento do déficit público e volta da inflação, a velha receita de combinar corte nas despesas públicas com elevação da taxa de juros imperou sem dó nem piedade. Os resultados foram a queda na atividade de forma continuidade e a incapacidade cada vez maior de oferta de serviços públicos na medida justa e necessária.
Mas agora tudo indica que a gravidade da crise econômica e social terminou por incomodar até mesmo setores bastante influenciados pela ortodoxia conservadora. O isolamento político de Jair Bolsonaro e sua política extremista de direita afasta cada vez mais agrupamentos políticos e correntes de pensamento mais identificadas com o campo destro em termos ideológicos. Um dos exemplos mais significativos encontra-se na própria Fundação Getúlio Vargas (FGV), instituição reconhecida por suas posições nada progressistas e bastante próximas ao mundo das finanças.
Apesar de Paulo Guedes ainda manter um trânsito bastante íntimo na sede da entidade na Praia do Flamengo, no Rio de Janeiro, o fato é que aos poucos saem de lá cada vez mais relatórios, estudos, análises e declarações colocando em xeque alguns dos resultados da política econômica posta em prática pelo superministro. A identificação profunda do banqueiro com o projeto político de reeleição e avanço autoritário de Bolsonaro contribui para que essa relativa autonomia da FGV se faça presente de forma mais regular no debate de políticas públicas.
A novidade mais recente nesse domínio foi a divulgação da pesquisa “Bem-Estar Trabalhista, Felicidade e Pandemia”. Dentre os múltiplos resultados bem interessantes apresentados no relatório, gostaria de chamar a atenção para aqueles relacionados ao aumento da desigualdade social e econômica. Antes de mais nada, vale deixar registrado um alerta de natureza metodológica. As informações apresentadas baseiam-se nas sondagens realizadas pelo IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). Assim, ali estão contidas apenas as informações declaradas pelos entrevistados e não buscadas por outras fontes de renda e patrimônio, como a Receita Federal. Com isso, normalmente considera-se que as informações subestimam a real situação dos setores do topo da nossa pirâmide da desigualdade. Ou seja, a concentração real de renda da sociedade tende a ser maior ainda.
De qualquer forma, o estudo busca averiguar a quantas anda a situação da desigualdade de renda da nossa população, por meio do indicador conhecido como Índice de Gini (IG). Quanto mais próximo de 1 esteja o índice, tanto mais desigual será esse conjunto de indivíduos. Assim, por oposição, quanto mais próximo de zero for o índice, mais igualitária será a população estudada em termos de sua renda.
O gráfico apresenta a evolução do IG para o período 2012/21, com dados levantados a cada trimestre. O índice passa a crescer de forma contínua desde a virada de 2015, mas sofre mesmo uma forte aceleração durante 2020, o ano marcado pelos efeitos da pandemia de covid-19. Assim, o que se pode concluir é que o período iniciado com o aprofundamento do mesmo austericídio que acentuou o desemprego, também contribuiu para a piora na concentração de renda. E vejamos que se trata apenas de aferir a desigualdades entre rendimentos declarados pelos indivíduos selecionados por amostragem para serem entrevistados. Uma vez incluídos os setores vinculados ao rentismo, o IG deveria ser mais elevado ainda.
Outra informação relevante diz respeito aos rendimentos dos entrevistados e suas famílias. A variável também tem uma queda a partir de 2015, mas consegue uma recuperação razoável no período 2017/19, em razão de algum grau de crescimento, ainda que reduzido, observado nas atividades econômicas. Porém, a chegada da pandemia provoca uma queda abrupta na renda média per capita, apesar da destinação de recursos públicos sob a forma do auxílio emergencial para as famílias mais pobres.
Finalmente, a pesquisa apresenta também a evolução de uma variável chamada de “Bem Estar Social”, que resulta da combinação de dados de prosperidade e de igualdade. Assim, pode-se dizer que o resultado apresentado deriva do comportamento observado nas duas variáveis anteriores: evolução do IG e dos rendimentos. A partir da interpretação do gráfico, confirma-se a tendência à piora desde 2015, mas com alguma estabilidade no período 2017/19. E aqui, mais uma vez, observa-se uma queda acentuada na medida de bem-estar como advento da crise sanitária em 2020.
Ora, tais resultados da pesquisa só confirmam as denúncias daquilo que os economistas críticos ao austericídio vimos fazendo há anos. Enquanto não forem desmontados os mecanismos de austeridade fiscal de nossa institucionalidade e de nossa legislação, os pequenos efeitos de crescimento da economia não serão distribuídos para os setores de base de nossa sociedade. Os grandes bancos, as gigantescas cooperações do mundo financeiro, as multinacionais e os detentores de grandes fortunas não sofreram em nada pela recessão ou pela pandemia. Aliás, muito pelo contrário, o ano passado apresentou um crescimento do número de bilionários brasileiros e uma piora nos indicadores que medem a concentração de renda e patrimônio em nosso País.
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Brasil mergulha no fosso da desigualdade. Artigo de Paulo Kliass - Instituto Humanitas Unisinos - IHU