08 Fevereiro 2021
Na catequese dessa quarta-feira, 3 de fevereiro (leia na íntegra, abaixo), o Papa Francisco tocou em um dos pontos decisivos da renovação eclesial desejada pelo Concílio Vaticano II: a oração litúrgica.
O comentário é de Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em Roma. O artigo foi publicado em Come Se Non, 04-02-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A saída de um “estilo intimista” de oração constitui um dos recursos fundamentais para a renovação da Igreja. Esta encontra em três conceitos fundamentais o seu vínculo com a experiência comum. Tento evidenciá-los de modo sintético, quase como uma introdução ao texto papal:
a) A liturgia é linguagem de todo o corpo, não só da consciência, da alma ou do sentimento. Esta é a primeira condição, que convida a sair dos estilos intimistas de oração.
b) A liturgia é o fundamento de toda a oração cristã, pois institui tanto a relação com Cristo quanto com a comunidade.
c) A liturgia não pode ser “ouvida”, mas deve ser celebrada por toda a comunidade eclesial, enquanto o presbítero ou o bispo a preside. O ato de celebrar é um ato comum.
Essas três afirmações simples, postas em fila, abrem para uma nova compreensão da reforma litúrgica como o instrumento que torna possível uma verdadeira reforma da Igreja. Só uma recepção límpida dessa reforma permite à Igreja se expor ao seu Senhor e “sair de si”.
Reconhecer o caminho feito nos últimos 60 anos significa também evidenciar quanta estrada ainda falta percorrer para sair da inércia das formas “intimistas” e “individualistas” do rezar eclesial.
Várias vezes se registrou na história da Igreja a tentação de praticar um cristianismo intimista, que não reconhece aos ritos litúrgicos públicos a sua importância espiritual. Muitas vezes, essa tendência reivindicava a suposta maior pureza de uma religiosidade que não dependesse das cerimônias exteriores, consideradas como um peso inútil ou prejudicial. Acabava no centro das críticas não uma forma ritual particular, ou um determinado modo de celebrar, mas sim a própria liturgia, a forma litúrgica de rezar.
Com efeito, podem-se encontrar na Igreja certas formas de espiritualidade que não souberam integrar adequadamente o momento litúrgico. Muitos fiéis, embora participando assiduamente dos ritos, especialmente da Missa dominical, hauriram alimento para a sua fé e a sua vida espiritual, em vez disso, em outras fontes, de tipo devocional.
Nas últimas décadas, caminhou-se muito. A constituição Sacrosanctum concilium, do Concílio Vaticano II, representa o ponto nodal desse longo trajeto. Ela reitera de maneira completa e orgânica a importância da divina liturgia para a vida dos cristãos, que nela encontram aquela mediação objetiva exigida pelo fato de Jesus Cristo não ser uma ideia nem um sentimento, mas uma Pessoa viva, e o seu Mistério, um evento histórico.
A oração dos cristãos passa por mediações concretas: a Sagrada Escritura, os Sacramentos, os ritos litúrgicos, a comunidade. Na vida cristã, não se prescinde da esfera corporal e material, porque em Jesus Cristo ela se tornou via de salvação. Poderíamos dizer que devemos rezar também com o corpo: o corpo entra na oração.
Portanto, não existe espiritualidade cristã que não esteja enraizada na celebração dos santos mistérios. O Catecismo escreve: “A missão de Cristo e do Espírito Santo que, na liturgia sacramental da Igreja anuncia, atualiza e comunica o mistério da salvação, prossegue no coração de quem ora” (n. 2655) A liturgia, em si mesma, não é apenas oração espontânea, mas algo cada vez mais original: é ato que funda a experiência cristã inteira e, por isso, a oração também é evento, é acontecimento, é presença, é encontro. É um encontro com Cristo.
Cristo se faz presente no Espírito Santo por meio dos sinais sacramentais: daí deriva para nós, cristãos, a necessidade de participar dos divinos mistérios. Um cristianismo sem liturgia, ousaria dizer, talvez seja um cristianismo sem Cristo. Sem o Cristo total. Mesmo no rito mais despojado, como o que alguns cristãos celebraram e celebram nos locais de prisão, ou no escondimento de uma casa durante os tempos de perseguição, Cristo se faz realmente presente e se doa aos seus fiéis.
A liturgia, precisamente pela sua dimensão objetiva, pede para ser celebrada com fervor, para que a graça derramada no rito não se disperse, mas alcance a vivência de cada um. O Catecismo explica muito bem e diz assim: “A oração interioriza e assimila a liturgia, durante e depois da sua celebração” (ibid.). Muitas orações cristãs não provêm da liturgia, mas todas, se são cristãs, pressupõem a liturgia, ou seja, a mediação sacramental de Jesus Cristo. Todas as vezes que celebramos um Batismo, ou consagramos o pão e o vinho na Eucaristia, ou ungimos com o Óleo santo o corpo de um doente, Cristo está aqui! É Ele quem age e está presente como quando curava os membros fracos de um enfermo ou entregava, na Última Ceia, o seu testamento para a salvação do mundo.
A oração do cristão assume a presença sacramental de Jesus. Aquilo que é externo a nós torna-se parte de nós: a liturgia exprime isso até com o gesto tão natural de comer. A Missa não pode ser apenas “ouvida”. É até uma expressão incorreta: “Vou ouvir Missa”. A Missa não pode ser apenas ouvida, como se fôssemos apenas espectadores de algo que nos escapa sem nos envolver. A Missa é sempre celebrada, e não só pelo sacerdote que a preside, mas também por todos os cristãos que a vivem. E o centro é Cristo! Todos nós, na diversidade dos dons e dos ministérios, todos nos unimos na sua ação, porque é Ele, Cristo, o Protagonista da liturgia.
Quando os primeiros cristãos começaram a viver o seu culto, fizeram isso atualizando os gestos e as palavras de Jesus, com a luz e a força do Espírito Santo, para que a vida deles, alcançada por aquela graça, se tornasse sacrifício espiritual oferecido a Deus. Essa abordagem foi uma verdadeira “revolução”.
São Paulo escreve na Carta aos Romanos: “Eu vos exorto, pois, irmãos, pela misericórdia de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual” (12,1). A vida é chamada a se tornar culto a Deus, mas isso não pode ocorrer sem a oração, especialmente a oração litúrgica.
Que este pensamento nos ajude a todos nós quando vamos à Missa: vou rezar em comunidade, vou rezar com Cristo que está presente. Quando vamos à celebração de um Batismo, por exemplo, é Cristo ali, presente, quem batiza. “Mas, padre, isso é uma ideia, um modo de dizer”: não, não é um modo de dizer. Cristo está presente, e na liturgia você reza com Cristo, que está ao seu lado.
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“Devemos rezar também com o corpo”. Uma catequese de Francisco. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU