12 Novembro 2020
"O culto pode ser verdadeiramente exercido onde a comunidade não tem que se camuflar de reunião entre estranhos. Na suspensão dos 'lugares comunitários eclesiais', a Igreja se reencontra celebrando nos 'lugares comunitários familiares', os únicos onde, quase sempre, continuam possíveis o toque e o contato", escreve Andrea Grillo, teólogo italiano e professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 11-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há quase dois séculos, não só para a vida civil, mas também para a vida de fé, a dimensão do culto não é mais um conceito óbvio. Não pode ser tratado nem simplesmente como “tarefa moral”, nem como “cumprimento jurídico”, nem como “dimensão espiritual”.
Nas primeiras décadas do século XIX, Antonio Rosmini, na Itália, e Prosper Guéranger, na França, tentaram “repensar a Igreja” precisamente em termos de culto. No culto, buscou-se um “recomeço eclesial” depois de Napoleão. Mas sem rejeitar as aquisições modernas.
O culto que “renasce” na Europa depois de Napoleão não é simplesmente o sinal da “restauração”. É também um modo de assimilação da modernidade. Tanto em termos da “superação da divisão do corpo da Igreja no ato de culto” (Rosmini), quanto na descoberta de que a primeira autoridade na Igreja não é o papa nem a instituição, mas sim o poder elementar da oração ritual (Guéranger).
O culto não “renasce” apenas em certo conflito com as instituições liberais, mas sobretudo em tensão com a autoconsciência eclesial. São as “chagas da Igreja” que estão em jogo no culto, não principalmente os limites do Estado.
Pode ser útil voltar ao início do discurso contemporâneo sobre a liturgia e sobre o culto para entender algo mais sobre o desacordo intra e extraeclesial sobre o culto “posto em questão” pela pandemia. E é notável que, entre a primeira e a segunda ondas, haja uma profunda diferença de reações.
Se o “fechamento” de março levantou na Itália, quase imediatamente, até mesmo nos mais sábios, alguns protestos argumentados em termos de “direito da Igreja ao culto” - como se estivesse em jogo exclusivamente uma questão de liberdade – agora, na segunda onda, essas palavras ressurgem em outro lugar – na França ou na Inglaterra – enquanto a Igreja italiana parece silenciosa. Talvez porque, ao não ver, pelo menos por enquanto, a liberdade ameaçada, ela não se vê envolvida em uma questão verdadeira? Deveríamos deduzir a partir disso que o culto é eclesialmente relevante apenas como “exercício de liberdade”? As reflexões que já foram feitas neste blog por Marco Gallo [aqui, em italiano] e por Dom Derio Olivero [aqui, em português] levantam uma questão candente, que eu gostaria de tentar desenvolver um pouco.
Aqui, parece-me, não está em jogo apenas uma questão de oportunidade, que também tem a sua relevância e pode ser objeto de discussão, mas sim a relação entre a “liberdade de culto”, o “dever de culto” e o “mistério/dom do culto”. Tentemos esclarecer um pouco essas delicadas relações.
Se falamos de liberdade de culto, facilmente permanecemos na sua “forma pública”, confiada à privacidade da crença de cada indivíduo e à sua organização formal. A insistência no “direito de culto” não é simplesmente a “defesa de um direito institucional”, mas sim o triunfo de uma leitura privada do culto. Poderíamos dizer que o fato de se sentir “ameaçada a liberdade de culto” responde muitas vezes à convergência de uma leitura meramente política da Igreja que coincide com uma privatização individual do pertencimento.
Por sua vez , o culto como “dever”, como “officium”, não se resolve simplesmente na primeira posição. Ele escava, na biografia dos sujeitos e na estrutura das Igrejas, uma obrigação mais intensa tanto em termos de testemunho quanto de interiorização. Se pode ocorrer que o “direito de culto” seja defendido até mesmo por quem nunca pôs os pés na Igreja – o que não significa que isso deva ser sempre julgado como uma hipocrisia –, sentir o dever de “celebrar a fé” às vezes se torna um mecanismo cego de repetição de gestos e de fórmulas que “não sentem razão” e “não conhecem condições”. A incondicionalidade do dever, por si só admirável, deve, porém, carregar sobre si o peso da contingência. E a contingência de uma pandemia não é uma variável indiferente.
Mas há uma experiência ainda mais radical e mais elementar: o culto como “dom da graça” foi o que a teologia redescobriu nos últimos 200 anos. E é evidente que essa redescoberta relativiza tanto os discursos em termos de liberdade quanto os discursos em termos de dever. Evidentemente, não os supera: porque permanece sempre verdade que a condição política de exercício do culto e a condição eclesial de autoridade do culto não são variáveis secundárias.
Mas o sentido do culto cristão recupera uma profundidade mais elevada quando se reconecta com a experiência elementar dos homens e das mulheres fiéis. Essa é a sua abençoada qualidade particular: exprimir a fé acima de tudo com as características primárias, simples e “baixas” da vida humana, que ele assume de modo especial. O rito, que interrompe, que exagera e que repete a vida – assim procede todo rito –, reúne a comunidade em torno dessas palavras-gestos primordiais, constitui o dom da identidade mais preciosa. E é, acima de tudo, um exercício do tato e dos sentidos: mas precisamente aqui o “confinamento sanitário” - com toda a sua escrupulosa razoabilidade – interfere no registo mais elementar e mais precioso. Suspende o contato para evitar o contágio.
Por isso, o culto exige condições primárias que não podem ser geridas de modo vistoso demais. Se você se reúne, mas não pode realmente fazê-lo, porque deve manter a distância; se você se reconhece, mas não pode realmente fazê-lo, porque seu rosto está coberto; se você canta o louvor, mas não pode realmente fazê-lo, porque as normas especiais impedem que se “fala em voz alta”... tudo isso pode sugerir que se suspenda o ato, porque pode expressar a liberdade, pode expressar o dever, mas não consegue expressar o dom.
Certamente, há também motivos “formais” que podem sugerir a suspensão das celebrações para não “provocar aglomerações”. Mas há lógicas diferentes nas diferentes celebrações. Acima de tudo, uma distinção é fundamental:
- há ritos de passagem que podem “impor” sua própria lógica “necessária”: um funeral, ou um casamento, tem a dimensão incontornável e não adiável da necessidade;
- os ritos que não são de passagem – como a missa diária ou a dominical – têm uma lógica gratuita em que as “condições de minoridade” podem aconselhar que se suspenda a sua realização no lugar “público” para deslocar a sua dinâmica para outro lugar.
Existem, portanto, razões diferentes que hoje podem sugerir um discernimento acurado das condições de exercício do culto. E poderíamos elaborar uma espécie de “catálogo” das hipóteses a serem levadas em consideração:
a) Se uma lei excepcional da autoridade pública introduz proibições ligadas às condições sanitárias possíveis, é evidente que a resistência em termos de “direito/dever” deve ser considerada uma extrema ratio muito rara e na qual se assume o risco de minar o bem comum;
b) Mesmo na ausência de leis que imponham explicitamente uma proibição, mas em uma condição em que “se recomenda que não se favoreçam as aglomerações”, uma Igreja pode legitimamente levantar a questão, a si mesma e também aos outros, sobre qual é o comportamento mais responsável e tirar as consequências para si mesma;
c) Para além dessa “lógica ad extra” – que também tem toda a sua relevância – a Igreja não se orgulha apenas de um “direito de exercício do culto” perante o Estado, mas também deve considerar a relevância de tal ato para a sua própria identidade.
d) A consideração do próprio “dever de culto” - com toda a sua tradicional seriedade – não deve esquecer a verdade do “dom do culto”, cuja expressão e experiência depende de “condições de fato” que nem sempre podem ser asseguradas e nem sempre são substituíveis ou permutáveis.
A redescoberta do culto cristão se tornou, nos últimos 200 anos, uma forma de “recomeço” depois da crise que inaugurou o mundo contemporâneo. Como disse, tal recomeço significou uma profunda reavaliação da “lógica cultual”, na redescoberta dos seus vínculos profundos com o anúncio da palavra e com o testemunho da caridade.
A Igreja dos nossos dias também sabe muito bem que pensar em “organizar o culto com segurança” significa perder uma grande parte do seu significado corpóreo, relacional, comunitário. Porque uma comunidade “que mantém o outro à distância” corre o risco de se tornar uma caricatura de si mesma. Não na realidade da luta contra a pandemia, mas na expressão da verdade da fé.
Por isso, o culto pode ser verdadeiramente exercido onde a comunidade não tem que se camuflar de reunião entre estranhos. Na suspensão dos “lugares comunitários eclesiais”, a Igreja se reencontra celebrando nos “lugares comunitários familiares”, os únicos onde, quase sempre, continuam possíveis o toque e o contato.
A consciência de que não se pode celebrar à distância é muito mais clara hoje do que há seis meses. Quando estávamos fechados e sem celebrações há semanas, desejávamos recomeçar, mesmo com graves limitações. Era óbvio e compreensível, até porque pressupunha uma relação simplificada tanto com o culto quanto com a pandemia.
Hoje, embora talvez estejamos destinados a um novo fechamento formal, vemos os limites ingentes de uma “condição de recomeço” que se tornou um “crônico distanciamento do culto”. A necessidade está salva, mas o gratuito está minado.
Talvez, precisamente nesses casos, pode ressoar aquela palavra forte, mas decisiva, daquele santo do nosso tempo que foi D. Bonhoeffer, quando disse: “Há casos em que a melhor forma de defender um direito é o de renunciar a ele”. Onde expressão e experiência não conseguem – mais ou menos por enquanto – se adequar, a renúncia ao culto “público” torna-se uma das formas de preservar a sua lógica “comunitária”.
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Direito e renúncia ao culto: uma questão candente para as “chagas” da Igreja contagiada. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU