30 Outubro 2020
Precisamente neste tempo, as nossas Igrejas precisam se repensar e recomeçar, com um sobressalto evangélico: abandonar a nostalgia dos hábitos e correr o risco de mudar.
A opinião é de Francesco Cosentino, padre, teólogo italiano e professor de Teologia Fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana, em artigo publicado por Settimana News, 29-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Recebo de um querido amigo, no WhatsApp, uma citação do teólogo, filósofo e humanista Erasmo de Rotterdam:
“O homem não ama a mudança, porque mudar significa olhar para o fundo da própria alma com sinceridade, pondo em questão a si mesmo e a própria vida. É preciso ser corajoso para fazer isso, para ter grandes ideais. A maioria dos homens prefere se deleitar na mediocridade, fazer do tempo o pântano da própria existência”.
Eis o que poderia ser identificado exatamente como o caruncho mais prejudicial não só da vida humana, mas também da vida espiritual e pastoral: ser resistente à mudança, agarrar-se até os dentes aos próprios esquemas e às próprias ideias, defensores obstinados do hábito e do “sempre se fez assim”, mais comprometidos com a conservação do pouco seguro entre as nossas mãos do que corajosos aventureiros da novidade.
Pensando bem, esta é uma das maiores batalhas de Jesus: o Reino de Deus, a novidade absoluta de uma vida habitada pelo amor de um Deus Pai está aqui entre vocês, enquanto vocês abaixam o olhar apenas para vocês mesmos, nadando no mar tranquilo das suas tradições religiosas e espelhando-se no narcisismo da sua boa observância de normas, preceitos e abluções.
Aqui há um Reino que quer transformar a água em vinho e inaugurar espaços de vida para os pobres e os doentes, enquanto vocês se preocupam com a observância do sábado e com as longas vestes para passear no pátio do Templo.
É aqui que a força do Evangelho encontra a sua maior resistência: quando, em vez de se entusiasmar com uma pesca milagrosa, prefiro ficar na margem com as minhas pequenas redes. Quando, em vez de mudar e voar alto, prefiro uma vida estagnada, uma pastoral repetitiva e uma espiritualidade que se deleita na sua própria mediocridade.
Existe uma doença da alma que paralisa mais do que qualquer erro ou pecado. O Papa Francisco a denunciou muitas vezes, referindo-se a uma longa tradição espiritual que remonta aos Padres da Igreja, que a chamam de acídia ou preguiça: um inimigo invisível, uma névoa da alma, um estado de pessimismo interior, um pântano em que nada se move, enquanto se lamenta de tudo.
O Papa Francisco diz efetivamente: “É um pecado neutro. Ou seja, de quem não escolhe e não é nem branco nem preto, de quem não arrisca, não se questiona, não muda, não luta. Fica parado, brinca de ‘aquilo que é possível’, sem nunca exagerar: é preciso se proteger – afirma o papa – do perigo de escorregar nessa acídia, nesse pecado ‘neutro’: o pecado do neutro é esse, nem branco nem preto, ninguém sabe o que é. E este é um pecado que o diabo pode usar para aniquilar a nossa vida espiritual e também a nossa vida como pessoas” (homilia na Casa Santa Marta, 24 de março de 2020).
Esse sutil inimigo da vida e da alma pode chegar lentamente, de forma silenciosa e oculta, quando, simplesmente oprimidos pelos ritmos da vida ou assustados pelas mudanças possíveis, escolhemos ou nos aquietamos no caminho de uma comodidade fácil, acomodando-nos tranquilamente no sofá das nossas poucas seguranças e cultivando os nossos hábitos pacíficos: sem perguntas, sem entusiasmo, sem paixão.
A tibieza e a preguiça, então, levam a melhor. Não nos afastamos do fogo do Evangelho, mas também não nos aproximamos muito, por medo de que ele nos envolva a ponto de nos batizar como apóstolos do Reino. Henri de Lubac afirmava: “O hábito e a rotina têm um incrível poder de destruição”.
Chegou também uma segunda onda. O coronavírus ainda paira entre nós, como hóspede inquietante que vem alimentar medos, angústias e distâncias humanas e sociais.
Nesta fase, o reinício eclesial ainda sofre de uma resistência endêmica e estrutural à mudança. Contra as possíveis convulsões, a questão do coronavírus foi rapidamente arquivada como um incidente de percurso ou – para citar o bispo Derio Olivero, como um parêntese – para poder voltar a uma chamada “normalidade”.
E, assim, mesmo diante de um risco real e previsto de retorno dos contágios, prosseguiu-se sem aproveitar o momento presente como tempo e lugar de discernimento para imaginar o futuro, mas, pelo contrário, limitando-se a organizar às pressas e com fúria as comunhões e as crismas, com o resultado de que o dia marcado para essas celebrações muitas vezes coincidiu com um novo salto dos contágios e com novas restrições por parte do governo.
Graças a Deus, há também alguns exemplos de como, precisamente neste momento, em muitas paróquias italianas, optou-se por outro caminho, talvez adiando uma prática sacramental que agora também se tornou apenas cerimonial e tradicional, e desencadeando modalidades novas de encontro com os jovens; mas, em geral, nós, padres, estamos preocupados em preencher os vazios e cumprir as passagens obrigatórias, para que, apesar do vírus, tudo continue como sempre. Onde o “como sempre” remete àquela defesa do hábito e da rotina mencionada acima.
Repropor a forma e as modalidades pastorais de antes, as coisas com as quais estamos acostumamos desde sempre, pode ser para alguns – compreende-se – uma resposta para aplacar a ansiedade diante de uma situação nova que poderia abrir cenários inéditos. No entanto, afirmava Jorge Mario Bergoglio quando ainda era arcebispo de Buenos Aires, essa atitude revela que “o coração não quer problemas. Existe o temor de que Deus nos embarque em viagens que não podemos controlar. (...) Desse modo, amadurece-se uma disposição fatalista: os horizontes se encolhem à medida da própria desolação ou do próprio quietismo”.
E aqui, continuava, “já existe um sutil processo de corrupção: chega-se à mediocridade e à tibieza. (...) A alma, então, chega a se contentar com os produtos que o supermercado do consumismo religioso lhe oferece. (...) O mundanismo espiritual como paganismo em vestes eclesiásticas” (J. M. Bergoglio, Guarire dalla corruzione, Bolonha: EMI, 2013, pp. 38-40).
Não é fácil e não existem soluções fáceis. Mas há uma grande lição do Evangelho que a Igreja hoje deve voltar a escutar: no centro da experiência cristã e no seguimento de Jesus, está o convite à conversão, isto é, à mudança. Trata-se da descoberta de um novo modo de ver, de um novo mundo de significados, de uma nova modalidade de viver a vida e a fé.
O propósito da pregação de Jesus, de fato, não é fazer com que as pessoas se sintam culpadas diante de Deus e lhes indicar como ser bons e perfeitos, mas sim o de suscitar um novo modo de viver a própria existência. Ele conta histórias e realiza curas para indicar a cada um de nós como a nossa vida poderia ser diferente, nova, transformada e desperta. E diz a Nicodemos e a cada um de nós que a mudança é o mais difícil para o ser humano, mas, se te deixares transformar, renascerás de novo e receberás olhos novos.
Temos a possibilidade de experimentar novas modalidades de acesso a Deus e ao Evangelho? Podemos frear o hábito mecânico de ritos, atividades, devoções que até agora povoaram a nossa pastoral, para pensar juntos, padres e leigos, novas iniciativas de anúncio e de experiência de fé? Podemos pelo menos parar para nos perguntar como recomeçar, em vez de suprimir as perguntas e prosseguir como se nada tivesse acontecido?
Precisamente neste tempo, as nossas Igrejas precisam se repensar e recomeçar, com um sobressalto evangélico: abandonar a nostalgia dos hábitos e correr o risco de mudar.
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Igreja: além do vírus do hábito. Artigo de Francesco Cosentino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU