18 Novembro 2020
O professor Umberto Galimberti, filósofo agudo e analista do pensamento humano, publicou recentemente “Heidegger e il nuovo inizio. Il pensiero al tramonto dell’Occidente” (Heidegger e o novo começo. O pensamento no ocaso do Ocidente, em tradução livre). Pedimos a ele que faça uma análise do que está acontecendo, no fundo das consciências, no terremoto produzido por esses meses angustiantes.
A entrevista com Umberto Galimberti é de Walter Veltroni, publicada por Corriere della Sera, 17-11-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
“Na primeira parte, com o lockdown em março, o que ocorreu foi uma espécie de angústia. Que não é medo, porque o medo é um excelente mecanismo de defesa. Vejo um incêndio, saio correndo. Tem como seu objeto algo definido. Enquanto a angústia não tem algo claro diante de si. É o que as crianças sentem quando se apaga a luz no quarto e ainda não pegaram no sono. A sensação desagradável de não ter mais pontos de referência. Tanto Heidegger quanto Freud, que nem mesmo se conheciam, ou pelo menos não leram os trabalhos um do outro, definem a angústia como o nada a que se segurar. Durante a primeira crise, a angústia com a ameaça representada pelo risco de contágio - qualquer um pode infectar qualquer um - gerou angústia e permitiu, como reação, uma disciplina generalizada. Hoje, porém, após o relaxamento do verão, o cansaço de ficar confinados e uma espécie de imprevisível superficialidade ao considerar o perigo nos fizeram cair de novo no pesadelo. E a condição então é a de desorientação, não mais de angústia. O que devemos fazer, como devemos nos comportar ... Areias movediças. É um sentimento que oscila entre a rebelião, a resignação e o desespero não só dos parentes daqueles que morrem, mas também daqueles que perdem o emprego ou fecham a loja ou a empresa. Movemo-nos em uma atmosfera de absoluta desorientação. Já não temos a paisagem aonde viver o nosso quotidiano com um certo sossego. Perdemos a normalidade do nosso viver”.
O que essa desorientação pode produzir?
Essa desorientação acaba invocando de alguma forma uma forte demanda para a tomada de decisões. E isso não é o melhor no âmbito democrático, porque do desejo de decisão à clonagem do homem forte o passo é muito curto. O que queremos é que alguém seja capaz de definir os limites, para construir uma paisagem onde possamos viver com uma certa previsibilidade e um certo sossego. E a desorientação é uma condição psicológica bastante perigosa. Há quem invoque o ditador esclarecido, por exemplo. Mas não estamos na época de Frederico II. E, além disso, onde estaria o ditador iluminado? Esse sentimento atravessa também a parte da esquerda, isto é, pessoas que não são populistas, mas que não conseguem suportar o estado de incerteza causado pela desorientação.
O distanciamento social é suportável como condição existencial?
Eu o chamaria de distanciamento viral e não social, porque se começarmos a colocar em jogo a sociedade de relações, acabamos por nos habituar a considerar a sociedade um apêndice do indivíduo. Isso é típico da cultura cristã, devo dizer isso claramente. Os gregos, por exemplo, Aristóteles costumava dizer ‘Se alguém entra numa comunidade e pensa que pode viver sem os outros, ou é uma besta ou é Deus’. E sobre Deus ele diz: ‘Talvez Deus não seja feliz porque é monakos’. Porque ele está sozinho. Em vez disso, o cristão colocou em circulação o conceito de indivíduo: ‘A alma é salva no nível individual’. A certa altura, a sociedade foi percebida simplesmente como algo que não deve construir o bem comum, mas, como diz Santo Agostinho, se encarrega de remover os obstáculos que impedem a salvação da alma. Portanto, apenas um trabalho negativo. No Contrato Social, Rousseau afirma que o cristão não é um bom cidadão, pode sê-lo de fato, mas não por princípio, porque seu objetivo é a salvação da alma. Ora, essa cultura do indivíduo, que não era grega, mas propriamente cristã, fez com que hoje nos lastimemos do individualismo, do egoísmo, do narcisismo. Basicamente, pelo fato que cada um pensa apenas em si mesmo.
Por dois mil anos, a Itália foi governada por uma população estrangeira. Por isso introjetou-se e espalhou-se o conceito de que o Estado é o inimigo, o inimigo a ser combatido, o inimigo a ser eliminado. Essa cultura que persiste mesmo depois de cento e cinquenta anos de unificação da Itália gerou formas macroscópicas de individualismo. Isso explica comportamentos não frequentes em outras democracias: sonegação de impostos, corrupção, subir no emprego, do mais humilde ao mais importante, por meio de recomendações. Tudo nos faz pensar que nós, italianos, ainda não somos cidadãos por nosso mérito. Ainda somos parentes, em função de uma estrutura social familiar. Desse ponto de vista a Máfia é apenas a ponta do iceberg de uma cultura difundida, no sentido de que a dimensão da família, portanto do conhecimento pessoal, da recomendação, tem vantagem sobre tudo e sobre cada um. Não é por acaso que hoje um número infinito de jovens vai ao exterior para poder expressar plenamente tudo o que estudou e se empenhou em aprender.
Uma série de fios sociais fundamentais estão se rompendo: uma pessoa não vai mais ao escritório, fecha sua loja, não pode mais ver os outros. Que efeito isso pode ter sobre os indivíduos?
Não acho que seja catastrófico, as pessoas ainda vivem sob o pressuposto de que o contágio não será a forma eterna de nossa convivência. Mais cedo ou mais tarde isso vai passar. É claro que essa suspensão nos coloca em um estado de espera bastante desconfortável e não apenas porque as atividades são interrompidas. Na verdade, as atividades não são apenas produção, trabalho, lucro, todas coisas legítimas. Mas também são ‘O que estou fazendo na minha vida nesta suspensão?’. No que antes chamamos de desorientação?
Conseguimos viver muitas vezes arrastados, mas também tranquilizados nos nossos hábitos cotidianos e, quando estes são interrompidos, começamos a nos perguntar quem somos. Essa pergunta seria interessante se fosse realmente aprofundada. O que nos tornamos? Somos funcionários de aparatos que perdem automaticamente sua identidade quando a vida cotidiana é interrompida? E quem nos dá a nossa identidade? O aparato? O papel que desempenhamos conta mais do que quem somos? Na minha opinião, esses são os sentimentos apenas acenados no espírito de cada um e depois logo removidos, pois são perturbadores. Em vez disso, seria melhor que cada um, precisamente nesta dimensão estagnada, começasse a pensar se a sua vida foi o que queria ou se foi delegada aos aparatos que te dão, além do salário, também a identidade e tudo o restante.
Você não tem a sensação de que estamos vivendo em uma época em que as três dimensões passado, presente e futuro se achataram em uma só? Em outras palavras, foi um pouco perdida a tridimensionalidade da vida?
Também aqui a cultura cristã estabeleceu que o passado é mal, o pecado original, o presente é redenção e o futuro é a salvação. Essa cultura se tornou universal no Ocidente principalmente porque o cristianismo introduziu uma espécie de otimismo induzido em nossa cultura. Sem se esconder de forma hipócrita por trás de um dedo, é preciso dizer que o Ocidente deu um grande passo em frente, por si mesmo, com esse otimismo. Ele estabeleceu que o futuro é sempre positivo. Até a ciência, que tende a se contrapor à religião, pensa que o passado seja mal, ignorância, o presente, pesquisa e o futuro, progresso. Cristianismo puro. Sob esse ponto de vista, Marx também pode ser considerado cristão: o passado é negativo, injustiça social, o presente é para fazer explodir as contradições do capitalismo e o futuro é a justiça na Terra. Freud também escreve um livro contra a religião: a neurose é colocada no passado, o presente é terapia e o futuro é cura. Não é verdade que o futuro é, por definição, um tempo positivo. O futuro é positivo se agirmos, certamente; não pelo fato de ser futuro automaticamente ele é um remédio para os males do passado.
Concordo com Pasolini quando disse que havia tirado a palavra esperança de seu vocabulário. Sempre que ouço políticos dizendo ‘esperamos, desejamos, almejamos’, penso que são palavras de passividade: vamos ficar parados e esperar para ver o que acontece. Nada acontece se não nos esforçarmos. Isso os jovens o entenderam perfeitamente, pelo menos a maioria. Nem todos. Existe um pequeno setor de jovens que chamo de "niilistas ativos", que não negam que estão se movendo em uma época niilista, não renegam o niilismo. Niilismo significa, segundo Nietzsche, que falta o propósito, que o futuro não é mais uma promessa. Falta a resposta para o porquê da existência. Porque eu tenho que me esforçar muito, porque eu tenho que trabalhar muito.
O futuro não é mais uma promessa. Há uma parte do mundo juvenil que vive uma espécie de resignação: não há mais nada a fazer e então o que eu faço? Cheguei até a pensar que o álcool e as drogas, aos quais os jovens hoje se dedicam particularmente, não são apenas um elemento de prazer para eles, mas acabam desempenhando uma função anestésica. Não olho para a frente porque o futuro me angustia, não me parece como uma promessa, mas sim uma ameaça. Pelo menos como imprevisível e um prenúncio de ansiedade. Por isso vivo o absoluto presente.
Hoje, a profissão de viver é difícil para os jovens ...
Hoje temos uma humanidade muito mais fraca, muito mais frágil, muito mais incerta do que aquela que saiu da Segunda Guerra Mundial. Cada geração que teve que lidar com guerras, depois se empenhou em reconstruir a sociedade e sua própria vida. E nisso encontrou o sentido, individual e coletivo, de seu próprio caminho. Há setenta anos estamos em um estado de paz, beneficiados por uma cultura consumista que satisfazia todo nosso desejo. Mas uma sociedade psicologicamente desguarnecida para enfrentar as dificuldades. Uma sociedade fraca, não acostumada ao sacrifício, ao esforço, ao empenho e à solidariedade. E então é mais difícil suportar tragédias como pode ser esta atual. Porque somos menos fortes, muito menos fortes do que antes.
O que é em uma sociedade o trauma de uma guerra ou aquele, como neste momento, de uma guerra sem armas? É uma linha de ruptura?
A diferença é abismal. A guerra significava bombas, casas desabando, parentes no front. Agora a guerra não é mais uma guerra entre dois exércitos, é uma ameaça generalizada em todo o território e em todas as camadas sociais. A guerra era uma coisa muito mais trágica, obviamente, do que o contágio e até mesmo uma pandemia. Além disso, a guerra era animada pela dimensão do inimigo: um inimigo conhecido e de alguma forma visível. Mas agora existe a invisibilidade do inimigo, uma percepção ruim de quem é o inimigo.
E depois há essa dimensão negacionista que colabora na não visualização da ameaça. Um vírus não pode ser visto, então qualquer um pode dizer o que quiser e aí nascem aquelas elucubrações paranoicas com as quais se diz que tudo isso foi uma operação política mundial para tutelar interesses específicos, aliás, como sempre desconhecidos e misteriosos. Essa negação contribui para a falta de percepção do inimigo e torna nossos comportamentos não rigorosos, responsáveis. São imprecisos pela falta de percepção de onde ele está e quem ele é, o isso nos deixa mal.
De onde vem esse preconceito crescente em relação à ciência?
Da ignorância daqueles que a criticam. O que precisamos entender é que a ciência não diz a verdade, diz coisas exatas. A palavra exato vem do latim ex-actu que significa obtido a partir das premissas das quais se parte. Ser “exatos” é um objetivo que se atinge de acordo com uma lógica experimental e processual. O que acontece agora? Toda vez eu ouço gente falando mal dos cientistas que se contradizem entre si, reclamando que cada um fala uma coisa diferente da outra. Mas, senhores, este é o caminho normal e natural da ciência. Porque a ciência diz as coisas que obtém das premissas que a movem. Algumas dos quais serão verificadas, outras irão falhar na verificação e, portanto, serão abandonadas. A ciência procede por tentativa e erro. Justamente por isso não devemos nos surpreender com a diversidade das opiniões científicas, assim como não devemos acreditar que a ciência diz a verdade. Diz as coisas que a experimentação permite que ela verifique como positivas ou negativas. Não há um critério de verdade na ciência, não devemos nos casar com os modelos de verdade que temos, por exemplo, na religião. Alguém acredita em Deus e ele é a fonte da verdade. Não, a ciência não procede dessa maneira, procede através da experimentação. Temos que nos acostumar com esse relativismo.
O outro de si, nestes meses, é ao mesmo tempo uma necessidade e uma ameaça, sentimos o peso da solidão, mas, ao mesmo tempo, quando encontramos outra pessoa, ela pode ser a fonte da nossa doença. Como disciplinar essa dupla dimensão dentro de si mesmo?
Já havíamos nos afastado bastante da socialização com a informática, sejamos claros. Não precisávamos do Covid para criar outra forma de distanciamento. Porque há muito tempo os jovens falam pelo computador, muitas pessoas trabalham não com o próximo diante de si, mas com uma tela. A informação já criou um distanciamento social, uma comunicação que não é olhar na cara um do outro, um diante do outro. A relação já se diluiu na configuração informática que não é mais eu e tu, mas eu e tua representação na tela que está na minha frente.
Claro, esse trabalho remoto, essa forma de comunicação à distância tornou-se paradoxal durante a pandemia. Paradoxal também do ponto de vista didático. Quando dizemos que a escola pode funcionar à distância, apoiamos um desejo, não uma realidade. À distância não se ensina, a formação exige a relação dos alunos com o professor, com o local, com os colegas. O cardeal Ravasi também disse isso. E depois tem um perfil que tem a ver com a justiça social: nem todo mundo tem acesso a essas máquinas. Acrescento que nem todo mundo quer mostrar a própria casa.
Da mesma forma, não posso julgar se o trabalho remoto é melhor ou pior. Para as pessoas que têm um forte senso de dever, torna-se um excesso de trabalho, porque elas têm uma espécie de policial interior muito mais severo do que aqueles que os supervisionam no local de produção. Mas muitos outros que não têm esse senso de dever, movem-se em um contexto de relaxamento e desresponsabilidade. Não sei se o smart working tem as mesmas características positivas de quando trabalhamos juntos, trocamos constantemente experiências e palavras.
De repente, o homem moderno, que vivia com um tempo organizado, cadenciado e frenético, se vê diante de campos infindáveis de horas. Qual a melhor forma de ocupá-lo?
Se alguém não foge de si mesmo como do pior inimigo, pode ser uma boa oportunidade para começar a refletir sobre a própria vida. Como me comporto em termos de afetividade com meus filhos e com minha esposa ou marido? Como é minha relação com os outros? Este deve ser um momento de interiorização. Minha impressão é que, em vez disso, as pessoas têm medo de se questionar e isso também podemos deduzir do fato de que, se é verdade que sou um funcionário de aparato de segunda a sexta-feira, aos sábados e domingos poderia usá-los para ler um livro, para ver outros horizontes, para assistir outros cenários, para entender quais são as formas autênticas de relação e sentimento.
Mas não é assim que acontece. O fim de semana é uma fuga para fora, não uma jornada para dentro de si. Deveríamos começar a fazer isso quando criança, ensinando as crianças a compreender e degustar quem se é, o que se faz e o que quer fazer amanhã no mundo. Se esses pensamentos começassem a ser introduzidos já na escola, talvez houvesse um modelo internalizado para fazê-lo mais tarde como adultos. Porque viver sem conhecimento de si é a pior coisa que pode acontecer na própria existência.
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“Desorientados entre o trabalho remoto e os hábitos perdidos”. Entrevista com Umberto Galimberti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU