27 Outubro 2020
“É bom que o Papa e os bispos preguem à sociedade civil, mas devem pregar acima de tudo à sua própria Igreja Católica, começando por eles próprios, através da sua própria instituição eclesiástica, profundamente patriarcal, clerical e homofóbica há um bom tempo – quase 2 mil anos. Fique claro ao Papa: o problema dos homossexuais não reside na sociedade civil, mas na instituição religiosa que ele preside, ainda incapaz de chamar de 'casamento' e de abençoar o amor de dois homens ou duas mulheres como um 'sacramento'. A Igreja qualifica como uma 'união civil', o que no jargão canônico é equivalente a dizer relacionamento imoral e adúltero e, portanto, um estado permanente de pecado mortal, a menos que renunciem a todas as relações sexuais”, escreve o teólogo espanhol José Arregi, em artigo publicado por Religión Digital, 25-10-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Muitos saúdam como um marco histórico e como terremoto doutrinal da Igreja Católica as últimas declarações do papa Francisco no recente documentário “Francesco”. Eu gostaria que assim fosse. Alegrar-me-ia que os setores católicos mais conservadores tenham voltado a soar os alarmes com razão para fazê-lo, mas penso que, infelizmente, seus fervores conservadores têm pouco a temer.
Aqui a integralidade da declaração do Papa: “Os homossexuais têm direito a estar em uma família. São filhos de Deus e tem direito a uma família. Ninguém deveria ser expulso ou se sentir miserável por isso. O que temos que fazer é criar uma lei de uniões civis. Assim estarão legalmente protegidos. Eu apoio isso”.
Pode se dizer que é um passo à frente, mas, dependendo de como se vê, pode se considerar igualmente um passo para trás, pois à frente e atrás são conceitos relativos, como o espaço, o tempo e a velocidade. Se eu avanço 50 metros em um minuto enquanto meu vizinho avança 100, eu ficarei para trás cada vez mais, como se estivesse parado ou se caminhasse para trás. Em pouco tempo, o meu vizinho me perderá de vista. Sinceramente, é o que penso que acontece com as declarações do Papa.
Afirma em primeiro lugar que os homossexuais têm direito a estar em uma família. Isso é, se tens um filho ou uma filha homossexual, não pode expulsá-la da família por isso. Fazia falta dizer isso? Há algum cardeal que defenda isso? Inquieta-me que um bom Papa como Francisco fale assim, não sei se por decisão consciente ou por lapso inconsciente. A razão que justifica não me parece menos inquietante: os homossexuais “são filhos de Deus”. Se eu fosse homossexual, estaria me sentindo humilhado, pois isso soa como se o Papa dissesse: “inclusive um homossexual é filho de Deus”. “Inclusive um ladrão, um assassino, um estuprador” é filho de Deus. Nem os teólogos mais rigorosos e retrógrados do passado, nem os monsenhores ultraconservadores de hoje – Müller e Burke e tantos outros próximos de nós – negaram isso.
Em segundo lugar, o Papa defende uma lei social que ampare a “união civil dos homossexuais, de modo que fiquem legalmente protegidos” (e assim alguém poderia, por exemplo, visitar seu companheiro/a hospitalizado/a, ou herdar ou cobrar uma pensão em caso de falecimento do seu par). Aqui é onde reside a novidade das declarações papais que comento, e é o que levou alguns a tocar campainhas e soar alarmes.
Celebro a reivindicação do papa Francisco. Entretanto, acontece que quase todos os países da Europa e muitos outros já possuem uma lei civil sobre o casamento homossexual, aprovada, sim, com a oposição frontal de seus respectivos episcopados católicos. E acontece que, depois de aprovada a lei, os bispos geralmente abandonam a resistência: foi o que aconteceu com quase todos os direitos humanos, foi o que aconteceu com a lei do divórcio e vai acontecer com a eutanásia e até com o aborto. A sociedade civil está há séculos à frente da Igreja em direitos humanos. E são precisamente os países de maioria conservadora socialmente religiosa (muçulmanos, cristãos-ortodoxos, católicos) que ainda carecem de uma lei civil sobre o casamento homossexual.
Em conclusão: é bom que o Papa e os bispos preguem à sociedade civil, mas devem pregar acima de tudo à sua própria Igreja Católica, começando por eles próprios, através da sua própria instituição eclesiástica, profundamente patriarcal, clerical e homofóbica há um bom tempo – quase 2 mil anos. Caso contrário, Jesus de Nazaré dir-vos-á, como disse aos escribas do seu tempo, “Ai de vós, especialistas em leis! Porque vós impondes sobre os homens cargas insuportáveis, e vós não tocais essas cargas nem com um só dedo” (Lc 11,46). Fique claro ao Papa: o problema dos homossexuais não reside na sociedade civil, mas na instituição religiosa que ele preside, ainda incapaz de chamar de “casamento” e de abençoar o amor de dois homens ou duas mulheres como um “sacramento”. A Igreja qualifica como uma “união civil”, o que no jargão canônico é equivalente a dizer relacionamento imoral e adúltero e, portanto, um estado permanente de pecado mortal, a menos que renunciem a todas as relações sexuais. E tudo isso por serem o que são, por se amarem de corpo e alma como Deus ou a Vida os criou.
Assim, enquanto este ou outro Papa e toda a instituição católica não curarem seus olhos e revogarem o Direito Canônico e o modelo clerical da Igreja, enquanto não deixem de considerar os homossexuais como doentes e menos ainda como pecadores, enquanto não reconheçam o amor e a mesma dignidade e santidade à relação sexual homossexual quanto ao amor e à relação heterossexual, e enquanto não os abençoar como sacramento de Deus ou do Amor, a Igreja continuará ficando para trás ou retrocedendo na história, até que deixe de ser inteiramente luz, sal e fermento desta sociedade, até que desapareça inteiramente das vistas dos homens e mulheres guiados pelo Espírito. Já está desaparecendo. Mas o Espírito de Vida continua a encorajar os corações dos seres.
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O Papa abençoou as uniões homossexuais? Artigo de José Arregi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU