17 Setembro 2020
Especialistas destacam diferença entre essa política e a atual renda emergencial; "Teto de gastos" atrapalha.
A reportagem é de Cristiane Sampaio, publicada por Brasil de Fato, 16-09-2020.
Palco de uma das principais disputas ideológicas atuais do país, a ideia de uma maior participação do Estado na assistência financeira à população continua mobilizando a energia de atores políticos e sociais. Nesse cenário, dois conceitos aparentemente vizinhos concentram hoje as atenções de parlamentares, especialistas e organizações civis: renda emergencial e renda básica. As duas propostas dialogam, mas também se diferenciam diante do olhar clínico de quem se debruça sobre o tema.
A economista Juliane Furno explica que os dois guardam diferenças essenciais. A primeira se trata de uma renda que o Estado transfere para determinado grupo de cidadãos em caráter temporário e emergencial, sendo voltada a quem responde a critérios específicos estipulados pelo programa. É o que ocorre atualmente, por exemplo, no contexto da pandemia, em que o Congresso Nacional articulou e chancelou uma política de auxílio emergencial destinado a trabalhadores informais e outros grupos. O objetivo é socorrer parcialmente o contingente mais afetado pela piora do desemprego e da crise socioeconômica.
Já a renda básica – também chamada por alguns de “renda mínima” – tem horizonte diferente, com caráter mais universal e voltado à melhoria do bem-estar da população. “Independentemente da situação laboral, ela não substitui o trabalho. Seria uma renda básica universal pra que as pessoas tivessem direito a uma dignidade mínima. Alguns países e, inclusive, cidades no Brasil adotam esse modelo”, afirma Furno, que atua na Consulta Popular.
O Alasca, nos Estados Unidos, está entre os pontos do globo onde essa política virou uma realidade. O estado distribui uma média de US$ 2 mil ao ano para cada habitante seu, sem distinções de classe, idade, gênero, etc. Outros balões de ensaio se espalham em países como Finlândia, Espanha, França e até mesmo no Quênia, no leste da África, continente onde as desigualdades saltam aos olhos do mundo.
Já no Brasil, o município de Maricá (RJ), por exemplo, vive uma experiência-piloto que busca a implementação gradual de uma renda básica universal. A prefeitura local iniciou a política em 2016 por meio do pagamento de cerca de R$ 20 mensais para o estrato mais pobre da população. No ano passado, o programa passou a atingir todos os cidadãos com renda familiar de até três salários mínimos. O contingente abarca 42 mil pessoas do total de 163 mil habitantes do município, que se tornou referência no assunto e pretende universalizar o benefício até o ano de 2024.
Já em termos federais, a implementação de uma política de renda básica no Brasil segue sendo considerada um desafio de grande porte. O país já tem, desde 2004, uma norma que prevê a implementação de uma renda básica de cidadania, a Lei Nº 10.835. De autoria do ex-senador Eduardo Suplicy (PT), hoje vereador de São Paulo, a legislação tem o petista como seu principal divulgador até os dias atuais, quando o país ainda não viu nascer uma regulamentação que possa garantir a aplicação da política.
O objetivo seria assegurar o pagamento anual de uma renda que auxilie o cidadão em gastos como educação, saúde e alimentação, sem fazer distinções com base nas condições sociais de cada beneficiado.
E por que a medida ainda não saiu do papel? Quem responde a questão é o diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), Fausto Augusto Jr., para quem a proposta exige um esforço político descomunal e contínuo. Tais características são tidas como um desafio para toda e qualquer política pública diante das mudanças de governo em um país como o Brasil. O cientista social lembra que a ideia original de Suplicy bebia na fonte de programas como o do Alasca.
“Na lógica de implementação, isso é muito difícil pra um país tão grande como o nosso, que é bastante populoso e tem muita desigualdade. Então foi construída, ao longo da história, por meio do Bolsa Família, a implantação de uma parte dessa ideia. Foi um primeiro movimento e ele está dentro da LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social, a lei que dá origem à prestação paga pela previdência social que visa garantir um salário mínimo mensal para pessoas que não possuam meios de prover à própria subsistência ou de tê-la provida por sua família ao benefício social)”, resgata Fausto Augusto Jr., ao mencionar a Lei Orgânica da Assistência Social.
“Quando você avançar pra uma renda básica, esse vai ser um segundo movimento, em que se vai incorporar mais um conjunto grande de famílias, de brasileiros, e aí você deveria ter um outro momento depois, em que se implementasse de fato uma renda universal”, frisa o diretor do Dieese.
Nos últimos meses, o debate sobre a renda básica ressurgiu em meio à atual política de renda emergencial, aprovada a contragosto pelo governo Bolsonaro, cuja equipe econômica segue na defesa das medidas ultraliberais. A agenda é voltada para a redução dos investimentos estatais.
Paralelamente, a gestão encampa hoje um discurso de possível criação de um novo programa, mas a ideia oscila entre um discurso e outro do presidente da República, que ainda não apresentou um escopo definido e vem sofrendo novos desgastes políticos diante das primeiras formulações já divulgadas.
A ideia inicial apresentada pelo governo aponta para o fim de algumas políticas sociais, como o seguro-defeso (para pescadores) e o programa Farmácia Popular, para que fosse financiada uma outra iniciativa. A proposta ganhou a etiqueta de ‘populista’ e segue na linha do enxugamento dos gastos públicos, afastando-se do debate sobre a criação de uma renda básica universal.
“O que o Bolsonaro está propondo vai muito mais na linha de uma política focalizada, além de outros problemas que ela traz. O fato é que o que está em debate hoje no Brasil são muito mais diferentes modalidades da renda emergencial ”, observa Juliane Furno.
Ela lembra que a proposta nasceu no seio do próprio neoliberalismo como forma de evitar uma asfixia social de maior porte que possa travar totalmente a economia por conta da indisponibilidade de renda dos trabalhadores. Tal cenário não seria favorável nem mesmo para aqueles que defendem uma menor participação do Estado nos fluxos de mercado, pois colocaria em xeque os interesses dos setores que concentram a renda e que, portanto, dão oxigênio ao sistema capitalista.
Além do debate sobre a aprovação e a prorrogação do atual auxílio emergencial, a criação também de uma efetiva renda básica emperra diante da política de austeridade fiscal. A agenda vive um maior aprofundamento desde 2015 e dificulta os planos dos diferentes setores que defendem uma ação forte do Estado para amenizar problemas estruturais da sociedade brasileira.
PT, Psol e atores civis – como é o caso da campanha “Renda básica que queremos”, que reúne mais de 100 entidades – têm conduzido e tensionado esse debate por meio de diferentes propostas. Um empecilho já conhecido, entretanto, impõe-se pelo caminho: a Emenda Constitucional 95, que oficializou o atual ajuste fiscal. Aprovada durante o governo Temer (2016-2018), a medida estipula limites estreitos para os gastos públicos, especialmente na área social.
“Qualquer ideia que surja, seja as desses partidos, a da sociedade civil ou mesmo a do Bolsonaro, sem romper o Teto dos Gastos, significaria necessariamente tirar renda de pobres ou da classe média baixa pra transferir pros muito pobres ou, então, significaria retirar recurso de outras políticas para compor uma renda que seria muito mais focalizada”, assinala Furno.
O deputado federal Henrique Fontana (RS), que conduz hoje a bancada do PT na Câmara no tema da reforma tributária, sublinha que para o avanço desse debate, é preciso mudar a lógica que norteia o pagamento de impostos no Brasil. A sigla defende a ampliação e o aprimoramento do Bolsa Família, que é uma política focal, para ajudar a tratar as desigualdades.
O grupo, assim como um leque de especialistas, propõe a aplicação de um pacote de impostos. O conjunto de medidas incluiria: taxação sobre grandes fortunas, volta do imposto de renda (IR) sobre a distribuição de lucros e dividendos, aumento da alíquota máxima do imposto sobre transmissão de heranças acima de R$ 10 milhões, ampliação da tributação sobre o sistema financeiro e ainda impostos sobre embarcações de luxo, como iates e jatinhos.
“O Brasil é tão injusto do ponto de vista tributário que um jovem que trabalhe no Uber pra ganhar a vida paga IPVA sobre o carro que utiliza pra trabalhar e um grande empresário que anda de jato ou que tem um iate ancorado num clube pro seu lazer não paga imposto sobre esses veículos de locomoção. Então, seria um pacote tributário que poderia garantir em torno de R$ 250 bilhões de arrecadação por ano para o país”, destrincha Fontana.
A proposta do PT está expressa no Projeto de Lei (PL) 4086/2020, que instaura o chamado “Mais Bolsa Família”. O PL não tem data para apreciação pela Câmara.
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Renda básica universal: o que falta para concretizarmos essa ideia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU