02 Setembro 2020
Em anos recentes, certas discussões econômicas têm explorado seriamente a possibilidade de implementar um “salário mínimo universal”, ou seja, o direito de qualquer pessoa receber uma renda fixa mínima, sem distinção de qualquer tipo.
A reportagem é publicada por PijamaSurf, 30-08-2020. A tradução é do Cepat.
Para muitos, esta ideia é impensável ou intolerável. Sob o sistema em que vivemos, que tem implicações econômicas, mas também culturais e ideológicas, a possibilidade de receber algo “gratuitamente” soa incrível, como se, com efeito, em troca de outras formas de auxílios sociais nada fosse dado em troca. Já estamos tão condicionados a trocar nossa força de trabalho por um salário, que qualquer outra maneira de obter algum tipo de renda nos parece extraordinária ou francamente impossível.
Há pessoas que inclusive se rebelam à ideia de “receber sem fazer”, sem notar que, de fato, nas sociedades contemporâneas, caracterizadas por uma economia baseada no consumo, praticamente todas as ações que realizamos, das mais importantes às mais triviais, acabam gerando algum tipo de lucro para o sistema econômico em que vivemos.
Entre outros efeitos psicológicos e culturais, essa maneira como o ser humano considera sua condição trabalhista e produtiva, quase exclusivamente sob o esquema de troca de força de trabalho por um salário, conduz à ideia um tanto estreita de que uma pessoa é valiosa só pelo que faz ativamente e pelos lucros econômicos que obtém por tais atividades, como se sua definição como ser humano fosse apenas derivada do trabalho assalariado que realiza (sendo que, como sabemos bem, uma pessoa também é valiosa por seus afetos, suas habilidades, as relações que sustenta com outros, seus divertimentos, sua maneira subjetiva de se colocar no mundo e outras).
O trabalho, com efeito, é importante, e nas sociedades modernas tem de fato uma primazia difícil de se esquivar. Seria possível um mundo do humano onde o trabalho como é concebido e realizado atualmente não existisse? Não parece simples sequer imaginá-lo. No entanto, a ideia do “salário mínimo universal” e a reflexão que a acompanha talvez não nos aproxime dessa possibilidade, mas, sim, de algumas perguntas fundamentais a propósito do tempo, energia e recursos que dedicamos para produzir algo, não em um sentido econômico, mas existencial, ou seja, de tudo aquilo de nossa vida que podemos considerar “em ativo” e que no curso dessa atividade transforma nossa existência, ao mesmo tempo em que gera um efeito sobre o mundo.
De um ponto de vista que pode ser qualificado como humanista (em oposição ao meramente econômico ou utilitário, ou seja, que considere o ser humano como ser vivo e consciente e não apenas como uma peça a mais do sistema econômico), a noção de uma renda universal básica tem como um de seus fundamentos a ideia de que se uma pessoa pudesse se desvincular por um momento da preocupação de “ganhar o sustento”, então, teria maior margem de ação e de liberdade para desenvolver seu potencial como ser humano. Dito em outros termos, passaria de somente buscar a mera sobrevivência a, em vez disso, empreender o caminho da vida autêntica, a vida em consciência plena, a vida realizada.
Como dizíamos no início, a ideia do salário mínimo universal passou a fazer parte de certas discussões econômicas de nossa época. Entre outros, o economista de origem francês Thomas Piketty, um dos estudiosos mais sérios do capitalismo contemporâneo, defendeu a necessidade de implementar tal medida, particularmente sob a premissa de que poderia contribuir significativamente para reduzir a desigualdade inerente ao sistema econômico em que vivemos.
A partir de outras perspectivas fora da economia, esta proposta não é recente, nem nova. Em vários momentos na história do capitalismo, ficou evidente para alguns pensadores que se a humanidade almeja viver em condições mais justas, mais pacífica, inclusive mais harmônicas, é imprescindível atacar de algum modo a desigualdade que resulta inevitavelmente dos processos econômicos próprios do capitalismo e que, por outro lado, é necessária para que o sistema econômico se mantenha em marcha, em uma espécie de círculo vicioso entre necessidade e miséria.
Entre outros autores, Erich Fromm foi um desses defensores da ideia da renda universal básica, para todos e sem distinções. Segundo escreve em sua obra “Ter ou ser?” (1976), já desde 1955, em outras obras suas, defendeu que uma renda anual garantida contribuiria para fazer desaparecer o que ele chamou de “males” das sociedades, tanto capitalistas como comunistas (divisão geopolítica relevante em sua época). A esse respeito, Fromm descreve:
“A essência desta ideia [a renda universal básica] é que todas as pessoas, trabalhem ou não, devem ter o direito incondicional de não morrer de fome, nem de ficar sem teto. Receberão só o que necessitam basicamente para se manter, mas não receberão menos. Este direito expressa um novo conceito na atualidade, ainda que seja uma norma muito antiga, proclamada pelo cristianismo e praticada por muitas tribos “primitivas”: os seres humanos têm o direito incondicional de viver, sem importar se cumprem o seu “dever para com a sociedade”. Conferimos este direito a nossos animais favoritos, mas não a nossos semelhantes”.
Como vemos, o argumento central de Fromm para defender a implementação de um salário mínimo universal é sumamente elementar: os seres humanos têm o direito incondicional de viver. Por que esta ideia tão simples provoca tanta polêmica e, sobretudo, oposição? Não é, para dizer de alguma maneira, a atitude solidária mínima que teríamos que ter em relação a nossos semelhantes? Não somos todos parte de um mesmo gênero – a humanidade – e, como tal, poderíamos fazer o esforço de viver conjuntamente, em paz, cooperativamente, trabalhando juntos em prol de um bem comum? Por que este panorama nos parece a priori tão utópico, tão idílico, tão inalcançável?
Com certa proximidade às linhas finais de “Elogio ao Ócio” (1932) de Bertrand Russell, Fromm continua, agora, aprofundando os benefícios humanos e sociais de se ter uma renda mínima garantida:
“O campo da liberdade pessoal se ampliaria enormemente com esta lei, uma pessoa que é economicamente dependente de outra (de um pai, de um esposo, de um chefe) já não se veria obrigada a se submeter à extorsão da fome [...] A renda anual garantida asseguraria uma liberdade e uma independência reais. Por isso, isto é inaceitável para qualquer sistema baseado na exploração e no domínio [...].
Este ponto pode provocar um interesse especial porque, com efeito, a partir de uma perspectiva psicológica, econômica e social, o intercâmbio entre força de trabalho e salário tem como fundamento um sistema de domínio e exploração que não muitas pessoas estão dispostas a questionar, mudar e, às vezes, nem sequer a aceitar que vivem submetidas a ele. Dado que o ser humano, por sua própria condição, passa seus longos primeiros anos em uma relação de sujeição e domínio frente ao Outro (tal e como o descreveu com precisão Hegel, com sua ideia da “dialética do senhor e do escravo”), as formas de ser associadas à obediência, a subordinação, a submissão e outras, instalam-se profundamente na subjetividade, gerando subjetividades “úteis” a um sistema econômico baseado na exploração.
Este é um processo cultural sumamente complexo que, para poder ser entendido, é necessário olhar e analisar sem moralismo, nem dogmatismo ou preconceitos, mas com objetividade e inclusive com ânimo científico (no sentido mais amplo da palavra ciência). Não é que seja “mau” ou “ruim” que se forme na sujeição de outro e que, depois, isto sirva aos fins do sistema econômico capitalista. Essas categoriais morais são inúteis por ser imprecisas. Em todo caso, o importante é, de início, perceber que tal processo faz parte da condição humana e, em um segundo momento, nos perguntar se há possibilidade de transformá-lo.
A resistência em implementar um salário mínimo universal poderia ser explicada à luz de tal elemento tão estrutural do ser humano. Talvez, no fundo, aqueles que se opõem categoricamente a que se ofereça uma renda monetária a todas as pessoas, sem distinção de qualquer tipo, sustentem tal relutância porque não tomaram consciência da submissão a qual ainda estão sujeitos, da exploração em que vivem, do medo de sua própria liberdade e, por conseguinte, ainda não consideram a possibilidade de se viver de outra maneira, sob outras condições, tanto para si mesmos como para os outros.
No entanto, a história do ser humano demonstra que as mudanças são possíveis, tanto em nível pessoal como coletivo. Não são simples, nem imediatas, tampouco fruto do azar (ou ao menos não completamente), mas muito mais resultado de um trabalho sustentado, comum, constante. Por mais elementar que pareça, talvez uma medida como o salário mínimo universal poderia, como disse Fromm, contribuir para estabelecer uma melhor convivência não apenas entre os seres humanos, mas também entre o ser humano e a vida na Terra e outros âmbitos onde a exploração se estabeleceu como modo quase exclusivo de vínculo com o outro.
No fundo, esta é a circunstância que valeria a pena atender com urgência.
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Salário mínimo universal para todos e sem distinções: um argumento humanista para implementá-lo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU