Liberais e progressistas aprovam a Renda Básica. Quem vai pagar a conta, entretanto, é a disputa no modelo a ser adotado. Entrevista especial com Guilherme Mello

Enquanto liberais defendem que a Renda Básica deve substituir todos os demais programas de bem-estar social, progressistas sustentam que ela deve ser complementar às políticas existentes

Foto: Fernando Frazão - Agência Brasil

Por: Ricardo Machado | 25 Agosto 2020

As profundas transformações no mundo do trabalho colocam a Renda Básica de Cidadania na ordem do dia como algo prioritário, sendo capaz de criar pontos de convergência na sempre difícil e complexa relação entre liberais e progressistas. “Os liberais enxergam na renda básica uma espécie de substituto do Estado de bem-estar social. Já para os desenvolvimentistas/progressistas, a renda básica é um instrumento dentre outros na atuação do Estado no campo social”, pontua Guilherme Mello em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

 

Para Mello, a Renda Básica de Cidadania, no atual momento, parece ser uma política mais razoável para enfrentar os desafios econômicos e sociais emergentes. “A possibilidade de uma renda básica universal hoje parece mais improvável, já que para distribuir renda para todos, o custo fiscal é maior e o impacto distributivo, menor. Além disso, por ser universal, o valor do benefício tende a ser mais baixo, o que pode não resolver a vida dos muito pobres e ser totalmente indiferente para os mais ricos”, avalia. “Portanto, em um país tão desigual e com renda polarizada nos muito ricos, o ideal nesse momento seria pensar em uma renda básica universal para os pobres, ou seja, um complemento de renda suficiente para retirar as pessoas da pobreza”, complementa.

 

No Brasil, com a maior parte da população com necessidades de sobrevivência urgentes, os dividendos eleitorais da implementação de políticas de transferência de renda são, também, sempre muito relevantes. “O que o auxílio emergencial veio comprovar é que o eleitor brasileiro é mais racional do que pensam: ele aprova o governo de plantão que melhora sua qualidade de vida e reprova aquele que deteriora suas condições de sobrevivência. A questão sobre se o governo é ou não responsável de fato por essa melhoria importa pouco, o que importa é a percepção”, descreve.

 

Guilherme Mello (Foto: CBN)

Guilherme Mello é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo - USP e em Ciências Econômicas pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP. É mestre em Economia Política pela PUC-SP e doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, onde leciona atualmente e dirige o Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica do Instituto de Economia - IE/Unicamp.

 

Confira a entrevista.

 

IHU On-Line – Por que a renda básica é capaz de unir os chamados liberais e progressistas?

Guilherme Mello – A proposta de renda básica não é exclusividade do campo progressista. Milton Friedman, um dos fundadores do “neoliberalismo”, defendia a adoção de uma renda básica universal, através do imposto de renda negativo.

Historicamente, o campo progressista se preocupa mais com a questão do (pleno) emprego e dos serviços públicos universais, que são uma espécie de transferência de renda indireta. A constatação de que as novas revoluções tecnológicas irão promover uma verdadeira escassez de empregos leva uma parte crescente do campo progressista a defender a necessidade de uma renda básica de cidadania que garanta a sobrevivência digna, mesmo diante da falta de trabalho. O tema do Estado como empregador de última instância, que também vem ganhando força em alguns países através da chamada “Moderna Teoria Monetária”, seria uma forma diferente de resolver o problema do desemprego estrutural.

Curiosamente, o tema da redução da jornada de trabalho, uma das bandeiras progressistas mais importantes das últimas décadas, parece ter perdido força no debate para essas duas alternativas. Os liberais enxergam na renda básica uma espécie de substituto do Estado de bem-estar social.

 

 

IHU On-Line – Por outro lado, as razões que levam um e outro espectro a apoiarem esta política de transferência de renda são distintas. Quais são essas diferenças e, sobretudo, no que esses atores podem convergir?

Guilherme Mello – Essa renda deveria ser (na visão deles) a única forma de intervenção do Estado no tema social. Educação, saúde, previdência, cultura, tudo deve ser privado, aceitando-se no máximo a adoção de “vouchers” para os muito pobres acessarem o serviço privado.

Já para os desenvolvimentistas/progressistas, a renda básica é um instrumento dentre outros na atuação do Estado no campo social. Ela pode servir tanto como uma forma de evitar a pobreza, como uma maneira de garantir a cidadania, somada aos serviços públicos universais e a outras transferências de renda e direitos sociais.

Em suma, os liberais defendem a renda básica para eliminar todas as outras ações sociais e econômicas do Estado, substituindo o Estado de bem-estar social. Já os progressistas defendem a renda básica como um complemento importante da rede de proteção social, que deve incluir serviços públicos universais e outros direitos sociais e trabalhistas.

 

 

IHU On-Line – A renda básica que está sendo discutida no âmbito da Frente Parlamentar da Renda Básica é de que ordem? Trata-se de uma renda básica universal ou com condicionantes?

Guilherme Mello – As duas possibilidades aparecem no debate. O Brasil já possui um programa muito bem-sucedido de transferência de renda de caráter focalizado, que é o Bolsa Família. O que está em discussão é se devemos ampliar a transferência para todos, independente da renda, ou se devemos ampliar o escopo do foco, que atualmente é restrito aos muito pobres.

Dito isso, a renda universal possui algumas vantagens, por exemplo o fato de não ser necessário a fiscalização para seu recebimento (talvez apenas no Imposto de Renda de Pessoa Física - IRPF, já que a proposta é que aqueles que possuem renda suficiente para declarar imposto de renda devolvam o valor recebido na forma de imposto na sua declaração anual).

A possibilidade de uma renda básica universal hoje parece mais improvável, já que para distribuir renda para todos, o custo fiscal é maior e o impacto distributivo menor. Além disso, por ser universal, o valor do benefício tende a ser mais baixo, o que pode não resolver a vida dos muito pobres e ser totalmente indiferente para os mais ricos.

Creio que o mais provável é que se avance na ampliação do escopo de uma renda básica focalizada, usando o bolsa família como base, e deixando indicado para o futuro a adoção de uma renda básica universal.

 

 

IHU On-Line – Como você analisa um projeto de renda básica universal? Quais seriam as consequências em um país como o Brasil, com profundas desigualdades?

Guilherme Mello – Depende de como ele for desenhado. Se não houver devolução pelos muito ricos, o impacto distributivo não é grande. Mas é simples resolver isso: basta obrigar a devolução através do IRPF. O problema é que, como disse anteriormente, o valor será menor do que se fosse um benefício focalizado.

Portanto, em um país tão desigual e com renda polarizada nos muito ricos, o ideal nesse momento seria pensar em uma renda básica universal para os pobres, ou seja, um complemento de renda suficiente para retirar as pessoas da pobreza. Hoje, o BF retira muitas pessoas da miséria (extrema pobreza), mas é insuficiente para retirar muitas pessoas da pobreza. Ao criar um benefício que garanta que o cidadão não irá adentrar a pobreza, isso reduz sobremaneira a vulnerabilidade a que ele está sujeito, aumentando também a possibilidade dele se colocar no mercado de trabalho de maneira menos precária.

 

IHU On-Line – Na perspectiva política, tens acompanhado o trabalho da Frente Parlamentar pela Renda Básica? Quais têm sido os movimentos?

Guilherme Mello – Acompanho pelos jornais. Acho uma iniciativa fundamental, que pauta o debate público e incluiu o tema da renda básica na ordem do dia.

Acredito que no campo da política, dois debates serão travados nos próximos meses: o primeiro, a tentativa do governo Bolsonaro de renomear o Bolsa Família, corrigindo um pouco seu valor e abarcando um número um pouco maior de famílias. Não podemos nos esquecer de que, semanas antes da pandemia, estamos com filas para acessar o Bolsa Família, concentradas principalmente nos estados do Nordeste. Ou seja, há uma mudança na postura do governo diante dos ganhos de popularidade observados a partir da adoção do “auxílio emergencial”, que o governo queria que fosse de apenas R$ 200, mas a oposição conseguiu elevar o valor no Congresso.

O segundo debate político relevante será a possibilidade de realizar um programa mais ambicioso de transferência de renda diante das atuais regras fiscais. Com o teto de gastos, é impossível “fortalecer” o Bolsa Família, seja dando o nome que for. O aumento do valor do benefício e/ou o aumento do número de beneficiários só viria com a utilização de recursos de outros programas, como o salário família e o abono salarial. O problema é que o abono é pago para trabalhadores que ganham entre 1 e 2 SM, ou seja, seria retirar renda de trabalhadores pobres (talvez não estatisticamente pobres, mas pobres na realidade) e entregar renda para os muito pobres. Isso limita sobremaneira o impacto distributivo da medida, preservando os muito ricos e reduzindo os potencias ganhos políticos do governo. Ou seja, se for para realmente ampliar a transferência de renda para os pobres, teremos que rever as regras fiscais. É aí que se concentra a disputa de Bolsonaro com Guedes.

 

 

IHU On-Line – Do ponto de vista da origem dos recursos, a implementação da renda básica passa necessariamente por uma reforma tributária ou seria possível a aplicação a partir de um rearranjo do orçamento público? Como fazer isso com o teto de gastos?

Guilherme Mello – A reforma tributária não é necessariamente uma fonte de recursos novos. Você pode reformar a tributação e manter exatamente a mesma carga tributária, apenas aumentando a eficiência e a progressividade do sistema. Ou seja, a reforma tributária é a segunda perna do combate à desigualdade: de um lado, um programa robusto que retire as pessoas da pobreza; de outro, uma estrutura tributária que taxe os muito ricos e faça com que os recursos públicos utilizados para as políticas sociais venham das classes mais abastadas.

Já a questão do teto de gastos e do rearranjo orçamentário é um pouco do que comentei na última questão: com o teto valendo, só é possível ampliar as transferências sociais retirando outras que distribuem renda para trabalhadores pobres. Nesse sentido, caso se queira realmente reformar e ampliar o Bolsa Família, seria fundamental uma revisão do conjunto das regras fiscais brasileiras, criando-se uma nova regra (em substituição às atuais) que abra espaço para investimento público e gastos sociais distributivos, de alto multiplicador, que ajudem no crescimento da economia e melhorem a distribuição de renda, ao mesmo tempo que sinalize para a estabilização da relação dívida/ PIB no longo prazo. Atualmente, alguns economistas se apegaram ideologicamente ao teto de gastos como Brás Cubas ao seu emplastro. Lembremos o que as ideias fixas fizeram com o personagem machadiano.

 

IHU On-Line – De que forma a renda básica universal está, também, ligada às transformações no mundo do trabalho e, portanto, não se reduz a questões puramente econômicas?

Guilherme Mello – O futuro do trabalho está em xeque. O aumento da produtividade do capital pode ser exponencial com a nova revolução tecnológica, que inclui inteligência artificial, comunicação entre máquinas e impressoras 3D. Podemos chegar ao cenário que um famoso economista alemão descreveu ao dizer que chegaria um momento em que o “trabalho se tornará uma base miserável do valor”, em decorrência dos avanços do conhecimento aplicado à produção. Em suma, é possível que não haja emprego para todos no futuro, pelo simples fato de que as máquinas poderão fazer diversas atividades tipicamente humanas.

A ideia de que novas profissões e empregos surgiram é verdadeira, mas insuficiente. Em primeiro lugar, porque essas oportunidades de trabalho ficarão extremamente concentradas nos locais onde as grandes empresas transnacionais possuem seus centros de desenvolvimento e pesquisa, ou seja, nos países centrais. Em segundo lugar, porque mesmo o setor de serviços, maior empregador das economias modernas, estará sujeito à substituição do trabalho humano devido às novas tecnologias. O que ocorreu na agricultura, onde um percentual muito baixo da população mundial se encontra no campo e produz alimentos para todo o restante, dada a crescente mecanização, pode ocorrer na indústria. Já há indústrias de bens duráveis que contam com pouquíssimos funcionários, e com as novas tecnologias até o processo de elaboração do produto, prenhe de conhecimento especializado, será alterado.

Diante dessas mudanças, a renda básica universal se abre como uma alternativa para garantir renda a milhões de pessoas. O problema é que para isso o Estado precisará refundar suas bases de arrecadação, encontrando formas de tributar o capital financeiro, as altas rendas e a própria produção “imaterial”. Esses debates ainda são incipientes no mundo, mas já ocorrem fora do Brasil. Não será mais possível sustentar um Estado de bem-estar com base em arrecadação elevada, por exemplo, sobre folha de salário, já que o trabalho formal tradicional tende a se reduzir.

 

 

IHU On-Line – Como o tema tem sido tratado internacionalmente?

Guilherme Mello – No restante do mundo o debate tem avançado mais rapidamente do que no Brasil, mas aqui contamos com uma das experiências mais bem-sucedidas do mundo no combate à pobreza, exemplo para programas no mundo todo, inclusive o programa de renda de Nova Iorque. Ou seja, possuímos uma base sólida para iniciar a discussão e teremos mais facilidade que diversos países, graças à construção da tecnologia do Cadastro Único e a experiência que acumulamos nas últimas décadas com o programa Bolsa Família e Brasil sem miséria. Também facilitará o fato de ainda contarmos com bancos públicos bem posicionados nos municípios para viabilizar o pagamento dos benefícios.

 

 

IHU On-Line – Como você avalia o futuro de Paulo Guedes à frente do Ministério da Economia?

Guilherme Mello – Acredito que Paulo Guedes permanecerá à frente do Ministério, mas deve cobrar caro por cada concessão que fará no “teto de gastos”. Ele sabe que para prosseguir em sua agenda de destruição do Estado, precisa de Bolsonaro forte e reeleito, portanto deverá ceder algum espaço às demandas políticas por ampliação dos gastos, em particular para criar um programa similar ao Bolsa Família, mas com nome diferente. Mas para isso, ele exigirá a aprovação de reformas muito duras de ataque ao funcionalismo público e de venda do patrimônio público. É exatamente o debate que está ocorrendo nesse momento acerca da suposta reforma administrativa (que só produzirá efeitos no futuro, caso seja aprovada) e da PEC emergencial, que possibilita o corte de salário e jornada dos funcionários públicos, incluindo dos setores de educação e saúde.

Creio, no entanto, que o principal objetivo de Guedes seja avançar na venda, a preços módicos, das Estatais. Como estamos em uma profunda crise global, o valor das empresas está subestimado e isso abre espaço para excelentes negociatas para o “povo da bufunfa”, como diz, pressionado pelos seus contatos e amigos do mercado financeiro.

 

 

IHU On-Line – Uma troca ministerial, mesmo levando em conta o perfil dos ministros do governo Bolsonaro, poderia abrir caminho para a implementação de uma política de transferência de renda?

Guilherme Mello – Não acredito em troca ministerial, mas se ela ocorrer, pode sinalizar uma maior flexibilidade em relação ao teto de gastos, o que implica dizer que haverá mais espaço para um programa de transferência de renda mais robusto.

O problema aqui é político: caso Bolsonaro avance nessa direção, terá oficialmente abandonado seu verniz liberal (que nunca foi crível, dado seu longo histórico de defesa dos interesses corporativistas dos militares e outros grupos organizados) e assumido de uma vez por todas sua orientação política marcada pelo tema eleitoral.

Nesse sentido, não é simples se livrar de Guedes, diferente do que foi nos casos de Mandetta e Moro. Guedes representa mais do que uma ideologia ou um apoio político partidário. Ele representa os interesses materiais bastante evidentes daqueles que possuem a riqueza e o poder no Brasil. Ele está lá para garantir o avanço da agenda de liquidação do Estado e a entrega do futuro do país nas mãos de uma porção de ricos. Sem essa garantia, essa turma pode abandonar e balançar bastante o barco de Bolsonaro.

 

 

IHU On-Line – Quais são os dividendos políticos da renda básica e quais seus impactos econômicos?

Guilherme Mello – Os dividendos políticos são evidentes: em um país onde a pobreza graça e a miséria voltou a ser uma realidade, uma garantia de renda representa uma melhoria substancial na vida de milhões de brasileiros. Isso obviamente tem um importante impacto político, uma vez que a avaliação do governo depende da percepção das pessoas sobre suas condições materiais de vida.

Obviamente que este não é o único fator que pesa na escolha do eleitor: a ideologia, em particular para os menos pobres, tem um peso importante. Recentemente, o tema dos direitos civis e individuais (chamado erroneamente de pautas dos costumes ou identitárias) ganhou relevância, mas o que o auxílio emergencial veio comprovar é que o eleitor brasileiro é mais racional do que pensam: ele aprova o governo de plantão que melhora sua qualidade de vida e reprova aquele que deteriora suas condições de sobrevivência. A questão sobre se o governo é ou não responsável de fato por essa melhoria importa pouco, o que importa é a percepção.

Em que Bolsonaro foi de fato politicamente competente durante a pandemia não foi na aprovação do auxílio de R$ 600, a que ele era inicialmente contrário, mas na sua capacidade de transferir para outros (prefeitos, governadores, STF, a China) a responsabilidade pela tragédia que está sendo a pandemia no Brasil. Nem a quebradeira das empresas, que poderia ter sido evitada caso o governo tivesse ofertado crédito barato através dos bancos públicos desde o início da crise, tem caído na conta do Bolsonaro, já que boa parte do empresariado aderiu ao delírio liberal do “estado quebrado” e “inimigo dos negócios privados”. Isso facilitou para Bolsonaro jogar a responsabilidade da crise econômica nas medidas de isolamento social decretadas pelos governadores. Ao não fazer absolutamente nada para evitar a tragédia, Bolsonaro fez exatamente o que um neoliberal delirante espera dele.

 

 

IHU On-Line – Em contrapartida, existem riscos na implementação de uma renda básica universal?

Guilherme Mello – Existem dois riscos principais: o impacto nas contas públicas e no mercado de trabalho. Caso o valor do benefício seja muito alto, ele pode gerar uma pressão salarial sobre o setor privado. Não porque ele causaria desincentivo ao trabalho, o que parece não ser o caso quando analisamos as pesquisas sobre o tema, mas porque o trabalho e o rendimento informal podem fazer mais sentido do que o formal, caso a formalização implique abrir mão do benefício.

Neste sentido, uma renda básica universal talvez faça mais sentido do que uma renda focalizada, pois não há limite de renda para recebê-la, ela se soma ao rendimento do trabalho formal sem nenhum risco de exclusão do programa. Inclusive, o trabalho para verificar se a pessoa se enquadra nos critérios de renda fica cada vez mais difícil e custoso conforme a linha de corte sobe, já que a renda de pessoas pobres pode variar muito de um mês para outro, já que possuem em geral trabalhos informais.

Por outro lado, conforme já afirmei, o custo fiscal de uma renda universal é elevado e seu valor provavelmente será mais baixo, com menor impacto sobre a desigualdade do que um benefício focalizado nos pobres. Por isso acredito que, independente das dificuldades, o caminho escolhido será o de ampliação de um benefício focalizado. As tecnologias para controle e verificação da renda precisarão ser aprimoradas para evitar fraudes mais grosseiras e talvez o critério de “desenquadramento” terá que ser alterado, mas esse parece o caminho mais factível hoje.

 

 

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Guilherme Mello – Acredito que o debate da garantia de renda será um tema central nos próximos meses e anos no Brasil. O governo tentará aprovar um novo programa que, na prática, apenas corrige pela inflação o valor do benefício do Bolsa Família, incluindo algumas famílias a mais no cadastro.

O Brasil precisa de algo mais ousado e definitivo do que isso, que garanta uma redução mais expressiva da pobreza e o direito de cidadania efetiva a milhões de brasileiros em um cenário de crise profunda que enfrentaremos no pós-pandemia. Nesse sentido, destaco a proposta apresentada pela ex-ministra Tereza Campello denominada “Mais Bolsa Família”. Creio ser a proposta mais avançada que temos hoje no debate público, por ampliar o escopo e o valor da transferência de renda de modo a eliminar a pobreza no Brasil, ao mesmo tempo em que preserva os pontos fortes do Bolsa Família, como sua capacidade de atingir os mais pobres, valorizar a mulher e dinamizar as economias locais. Ele aproveita a estrutura que já temos para resolver o problema da pobreza e mostra como isso pode ser financiado, através de alterações tributárias. Curiosamente ela tem pouca inserção no debate público e na grande imprensa, talvez por ser uma proposta vinda do PT, que até poucos meses era tabu nos grandes jornais. Apesar disso, acredito que o debate deva partir dessa e de outras propostas, como por exemplo a que foca o benefício nas crianças, como forma de eliminar a pobreza infantil.

No entanto, para qualquer uma delas se tornar realidade, será preciso que o país aceite discutir racionalmente o papel do Estado e da política fiscal no processo de desenvolvimento. Será preciso substituir nosso atual arcabouço fiscal por um mais adequado às nossas necessidades e ao debate especializado internacional sobre o tema. Infelizmente, racionalidade e estratégia de desenvolvimento são palavras que pouco combinam com o governo atual.

 

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