25 Outubro 2019
"A palavra em inglês open source (código aberto) é usada para se referir a um tipo de software ou a seu modelo de desenvolvimento ou distribuição. Um software open source é tornado tal por meio de uma licença através da qual os detentores de direitos favorecem a sua modificação, o estudo, a utilização e a redistribuição".
O comentário é de Paolo Benanti, teólogo, sacerdote italiano, frei franciscano da Terceira Ordem Regular e professor de Teologia Moral da Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, em artigo publicado por Settimana News, 19-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Nota de IHU On-Line: Paolo Benanti, participará do XIX Simpósio Internacional IHU. Homo Digitalis. A escalada da algoritmização da vida, a ser realizado nos dias 19 a 21 de outubro de 2020, na Unisinos Campus Porto Alegre.
Coraline Ada Ehmke, uma programadora muito famosa no mundo das open source e conhecida por seu ativismo em defesa dos direitos humanos, propôs uma licença open source que exige que os usuários não prejudiquem os outros. O software de open source geralmente pode ser copiado e reutilizado livremente. Graças a esta licença, definida como hipocrática por analogia com o juramento médico, se querem impor vínculos éticos a essa prática.
O software deve esse nome ao fato de ser um produto basicamente imaterial - soft. No entanto, tem inúmeros efeitos no mundo real. E como a tecnologia de TI está tocando todas os âmbitos da nossas vidas, nem sempre tem um uso que pode ser definido como bom. A China usa a tecnologia de reconhecimento facial para rastrear muçulmanos uigures. As forças armadas dos EUA usam drones para matar suspeitos de terrorismo e todos os civis próximos. Os agentes de imigração e controle aduaneiro dos EUA - os mesmos que trancaram crianças filhas de migrantes em gaiolas perto da fronteira mexicana - dependem de software para a comunicação e coordenação, como todas as organizações modernas.
Alguém teve que escrever o código que torna tudo isso possível. Cada vez mais, alguns desenvolvedores estão pedindo a seus empregadores e ao governo que parem de usar seu trabalho de maneiras que consideram não éticas. Os funcionários do Google convenceram a empresa a interromper o trabalho de análise dos vídeos com os drones e cancelar planos de fazer ofertas para um contrato de cloud computing com o Pentágono. Os funcionários da Microsoft protestaram pelo trabalho da empresa para a US Immigration and Customs Enforcement (ICE) e para os militares, embora com pouco sucesso até agora.
Mas é difícil impedir que uma empresa ou governo use o software que já possui, especialmente se esse software for open source. No mês passado, por exemplo, um programador, Seth Vargo, excluiu parte de seu código open source dos repositórios online para protestar contra seu potencial uso por parte do ICE. Mas como o código open source pode ser copiado e distribuída livremente, seu código logo voltou on-line em outro local.
Coraline Ada Ehmke quer dar a seus colegas desenvolvedores mais controle sobre como seu software é usado. O software lançado com uma nova licença, que chamou de Licença Hipocrática, pode ser compartilhado e modificado para quase todos os fins de programação, com uma grande exceção: “Indivíduos, empresas, governos ou outros grupos de sistemas ou atividades que coloquem em perigo ativamente e conscientemente, prejudicar ou ameaçar o bem-estar físico, mental, econômico ou geral de indivíduos ou grupos em violação à Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas”.
No entanto, definir o que significa fazer o mal não é tão fácil e pode-se chegar a definições muito controversas. No entanto, Ehmke espera que vincular a licença aos padrões internacionais existentes reduza a incerteza. A declaração de direitos humanos "é um documento que tem 70 anos e está bem consolidado e aceito por sua definição de prejuízo e pelo que realmente significa violar os direitos humanos" - afirmou ela em entrevista à Wired.
É uma proposta audaciosa, mas é exatamente o tipo de coisa pela qual Ehmke é conhecida. Em 2014, ela escreveu o primeiro rascunho de um código de conduta para projetos de código aberto chamado Pacto dos Colaboradores. No começo, encontrou ceticismo, mas mais de 40.000 projetos open source o adotaram, da plataforma de inteligência artificial TensorFlow do Google ao kernel do Linux.
Por enquanto, poucos usam a Licença Hipocrática. A própria Ehmke ainda não a está usando. Ainda deve passar por uma revisão legal, pela a qual ela contratou um advogado, e existem muitos entraves em potencial, como a compatibilidade com outras licenças, a serem enfrentados. Mas Ehmke afirma que a licença é menos para induzir as pessoas a usá-la e mais para iniciar uma conversa sobre a ética das open source e o controle dos programadores sobre o próprio trabalho.
Ehmke reconhece que mudar a maneira como os técnicos concedem as licenças de seu trabalho não impedirá, por si só, a violação dos direitos humanos. Mas deseja fornecer aos tecnólogos uma ferramenta para impedir que empresas, governos ou outros atores potencialmente mal-intencionados usem o código aberto para cometer abusos.
A palavra em inglês open source (código aberto) é usada para se referir a um tipo de software ou a seu modelo de desenvolvimento ou distribuição. Um software open source é tornado tal por meio de uma licença através da qual os detentores de direitos favorecem a sua modificaçãoz, o estudo, a utilização e a redistribuição.
Portanto, a principal característica das licenças open source é a publicação do código fonte (daí o nome). O fenômeno se beneficiou bastante da Internet, porque permite que programadores distantes se coordenem e trabalhem no mesmo projeto.
Atualmente, a open source tende a assumir um relevo filosófico, consistindo em uma nova concepção da vida, aberta e hostil a qualquer prerrogativa exclusiva, que a open source se propõe a superar através do compartilhamento do conhecimentos.
Open source e software livre, embora frequentemente sejam usados como sinônimos, têm definições diferentes: a Open Source Initiative definiu o termo "open source" para descrever principalmente a liberdade no código fonte de uma obra. O conceito de software livre geralmente descreve as liberdades aplicadas a uma obra e é um pré-requisito que seu código possa ser consultável e modificável, geralmente se enquadrando na definição de open source.
A Iniciativa Open source no profit afirma que o software de código aberto "não deve discriminar nenhuma pessoa ou grupo de pessoas" e "não deve impedir ninguém de usar o programa em um campo específico de atividade".
Se as violações dos direitos humanos se qualificam como um "campo específico de comprometimento", no sentido de tal definição, é uma questão em aberto, porque Ehmke não submeteu formalmente a licença de Hipócrates à OSI para revisão. Mas em um tweet no mês passado, a organização sugeriu que a licença não se enquadra em sua definição de open source. O cofundador da OSI, Bruce Perens, também escreveu em seu blog que a licença entra em conflito com a definição da organização.
Ehmke espera reunir a comunidade open source para pressionar o OSI a mudar sua definição ou criar uma nova. "Acho que a definição da Iniciativa Open Source está terrivelmente ultrapassada", afirma Ehmke. "Neste momento como comunidade open source não temos as ferramentas para garantir que nossa tecnologia não seja utilizada por fascistas”.
As preocupações de Ehmke ressoam com as de outros tecnólogos. Michael Cafarella, cocriador da popular plataforma de análise de dados open source Hadoop, viu seu trabalho ser usado de maneiras que ele não esperava, mesmo pela Agência de Segurança Nacional.
"É uma boa ideia que as pessoas estejam muito preocupadas com o abuso de seu software", afirma. "Pessoalmente, estou mais preocupado com abusos de governos não democráticos, que possuem enormes recursos de engenharia que podem ser usados para modificar e implementar esses projetos. Não tenho suficiente background para saber se [a Licença Hipocrática] será eficaz com esse tipo de abuso”.
Tentar mudar a definição de open source para satisfazer preocupações éticas tem uma história longa e controversa. Ehmke não é a primeira a escrever uma licença para estancar usos prejudiciais de código livremente disponível. A GPU para aplicativos peer-to-peer foi lançada em 2006 com uma licença que proibia seu uso pelo exército. Até agora, teve pouco efeito, mas poderia mudar.
No início deste ano, dezenas de projetos de software adotaram a “Licença Anti-996”, que exige que os usuários estejam em conformidade com padrões de trabalho locais e internacionais, em resposta a relatórios de condições de trabalho exaustivas nas empresas de tecnologia chinesas. Ehmke acredita que a reação contra o ICE, que se estende além da comunidade tecnológica, pode ser um ponto de não retorno.
Outros indicam a possibilidade de estabelecer um novo termo para o código que é aberto para a maioria dos usos, mas limitado para outros. "Talvez paremos de chamá-lo de ‘open source‘ e passemos a chamá-lo de ‘open for good source’", twittou Vargo, o programador que eliminou o código para protestar contra o ICE no mês passado.
O termo "open source” foi adotado no final dos anos 1990 como uma alternativa ao "software livre", vinculado a propósitos mais ideológicos. Tudo começou na década de 1980, quando no MIT a substituição do computador fez com que os programadores não pudessem acessar a fonte do novo driver de impressora Xerox para implementar um recurso antigo bastante apreciado: o aviso automático de que havia problemas com o papel atolado.
Ao mesmo tempo, empresas privadas começaram a contratar vários programadores do MIT, e se espalhou a prática de não disponibilizar as fontes do programa assinando acordos de não divulgação (em inglês: NDA, ou Non-Disclosure Agreement).
Nesse contexto, muitos programadores - incluindo Richard Stallman, que se tornaria o porta-bandeira do software livre - se recusaram a trabalhar para uma empresa privada. Stallman fundou a Free Software Foundation (FSF) em 1985, uma organização sem fins lucrativos para o desenvolvimento e distribuição de software livre. Em particular, o desenvolvimento de um sistema operacional completo, compatível com UNIX, mas distribuído com uma licença permissiva, com todas as ferramentas necessárias igualmente livres.
Trata-se do projeto nascido no ano anterior, ou GNU, acrônimo recursivo para simultaneamente se conectar e se distinguir da UNIX, ou seja, "GNU's Not UNIX". “O principal objetivo do GNU era ser um software livre. Mesmo que o GNU não tivesse vantagem técnica sobre o UNIX, teria uma vantagem social, permitindo que os usuários cooperassem e uma vantagem ética, respeitando a sua liberdade.”
Tal projeto, financiado pela FSF, foi levado adiante por programadores assalariados para esse fim. As principais contribuições vieram do próprio Stallman: o compilador gcc e o editor de texto Emacs. Outros componentes do sistema UNIX também foram desenvolvidos, aos quais vários aplicativos e jogos reais foram adicionados. Esses programas foram distribuídos por cerca de US $ 150, o que, além de cobrir os custos de reprodução, garantiam um serviço de suporte ao cliente.
A única condição era que todas as modificações eventualmente feitas nesses programas fossem notificadas aos desenvolvedores.
Assim nasceu a GNU General Public License (GPL), cujo preâmbulo de descrição começa assim: "As licenças para a maioria dos programas destinam-se a tirar a liberdade do usuário de compartilhá-lo e modificá-lo. Ao contrário, a GPL visa garantir a liberdade de compartilhar e modificar o software livre, a fim de garantir que os programas sejam ‘livres’ para todos os seus usuários".
A licença hipocrática poderia parecer uma ideia ingênua ou uma forma de irreal pretensão, mas na realidade mostra uma questão muito significativa. Os programadores não estão apenas tomando consciência de seu trabalho, mas também do poder dos instrumentos que estão produzindo. Além disso, parecem emergir cada vez mais no cenário público com uma espécie de consciência corporativista que os torna um interlocutor politicamente significativo para o desenvolvimento e a inovação.
Movimentos como os implementados por Coraline Ada Ehmke devem não apenas ser ouvidos, mas também acompanhados, para que possam dar forma a novas instâncias algor-éticas que possam inervar o software, seu desenvolvimento e seu uso. Cabe a nós ouvir, acompanhar e concretizar essas instâncias de bem que nascem nas consciências dos profissionais do setor.
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Um ethos "hipocrático" para as 'open source'? Artigo de Paolo Benanti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU