05 Setembro 2019
"De que adianta evitar abortos ou salvar os idosos da eutanásia, ou garantir a eliminação da pena de morte, se não existir ar para respirar, água para beber, terra para cultivar, plantas ou animais para comer, habitats livres de inundações, furações, incêndios, tornados, terremotos ou qualquer outro fenômeno climático devastador? Não sugiro ignorarmos estas questões; elas demandam oração e ação também".
O artigo é de Daniel P. Horan, frade franciscano e professor assistente de teologia sistemática e espiritualidade na Catholic Theological Union, em Chicago, publicado por National Catholic Reporter, 04-09-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Este domingo marcou o início da celebração de “O Tempo da Criação”, atividade anual ecumênica que vai de 1º de setembro a 4 de outubro, Dia de São Francisco de Assis. É um tempo para os cristãos refletirem sobre o estado da criação via oração e ação.
É também uma oportunidade para focarmos a nossa atenção nos temas mais fundamentais de justiça e paz, em especial como eles se referem ao nosso compromisso ético com as questões da vida.
Nas últimas décadas têm havido brigas desagradáveis entre os católicos que discutem sobre qual assunto é o mais importante, em particular na orientação das escolhas políticas. Alguns grupos – geralmente os mais barulhentos – dizem que o aborto é a questão mais importante. Outros dizem a eutanásia, ou o suicídio assistido, como sendo o mais importante. Outros ainda, em concordância com a longa tradição da Igreja sobre a santidade de toda vida, dizem que não podemos escolher uma tal questão, mas reconhecem que, como católicos, devemos manter uma ética coerente da vida, perspectiva ética por vezes referida como a abordagem da “túnica inconsútil”.
Embora concorde com a integridade intelectual e moral do princípio da ética coerente da vida, que sustenta que toda vida humana – dada à luz ou não – é inerentemente valiosa, digna e deve ser protegida, vivemos um momento em que há, agora, um problema mais fundamental que ameaça toda a vida: as mudanças climáticas. Por essa razão, a mim parece ser uma postura perigosa propor voltarmos a nossa atenção, as nossas energias argumentativas e os nossos recursos financeiros a algum tema ético antropocêntrico singular. Os riscos são grandes demais. Não devemos agir como se fôssemos míopes.
As mudanças climáticas ameaçam toda a vida e representam um perigo existencial a toda condição de possibilidade para a vida futura neste planeta. Se somos chamados a ser os agentes morais guiados por uma abordagem da túnica inconsútil, como acredito que somos, então as mudanças no clima formam o corpo sobre o qual tal túnica se apoia. A preservação das vidas humanas particulares está predicada no futuro do planeta e em delicados ecossistemas sobre ele que tornam a vida possível.
De que adianta evitar abortos ou salvar os idosos da eutanásia, ou garantir a eliminação da pena de morte, se não existir ar para respirar, água para beber, terra para cultivar, plantas ou animais para comer, habitats livres de inundações, furações, incêndios, tornados, terremotos ou qualquer outro fenômeno climático devastador? Não sugiro ignorarmos estas questões; elas demandam oração e ação também. No entanto, há uma valência particularmente terrível com o que está acontecendo com o nosso planeta e uma janela muito estreita para fazermos algo visando salvar a própria possibilidade de vida aqui.
Há aqueles que entendem corretamente a gravidade das nossas circunstâncias e a urgência que deveriam governar a nossa resposta.
O Papa Francisco, por exemplo, situou a sua carta encíclica de 2015, “Laudato Si’ – Sobre o cuidado da casa comum”, dentro da tradição mais ampla do magistério moral católico, lembrando a Igreja e o mundo que, apesar da nossa compartimentalização autocentrada, só há uma “ecologia integral” em que o destino da humanidade e da criação não humana estão inextricavelmente entrelaçados. Embora os pobres são e serão sempre os primeiros a sofrer as consequências das mudanças climáticas, em última instância ninguém pode escapar da destruição da nossa “casa comum”.
Greta Thunberg, ativista ambiental sueca de 16 anos, é outra voz profética sobre a vida na atualidade. A sua recente viagem de barco a Nova York, atravessando o Oceano Atlântico para ir às negociações climáticas nas Nações Unidas, navegação que é um modo de transporte de longa distância com zero emissão de carbono, a colocou de volta em evidência. Aos 15 anos, a jovem ajudou a lançar uma série de greves escolares e protestos pelo clima pela Europa e além, o que mostra que a sabedoria não se reserva aos mais velhos somente, e que os nossos irmãos e irmãs mais novos podem nos ensinar e liderar. No entanto, como disse algumas vezes Thunberg, cabe aos adultos no poder fazer alguma coisa. Em uma fala de 2018, ela acusou os líderes mundiais de roubarem o “futuro dos seus filhos em frente dos seus próprios olhos”. Advertiu com sabedoria o mundo: “Até que comecemos a focar no que precisa ser feito ao invés de focar no que é politicamente possível, não há esperança. Não podemos resolver uma crise sem tratá-la como uma crise”.
O problema é que poucos ouvem as vozes inspiradas de Francisco e Thunberg. E alguns, incluindo o atual presidente dos Estados Unidos, têm feito exatamente o contrário do que é preciso.
Em vez de trabalhar para resolver a crise, Donald Trump e seu governo estão ativamente exacerbando-a. De acordo com uma reportagem do New York Times, publicada semana passada, o governo americano anulou, até então, 84 regras e normas ambientais. A reportagem, citando um estudo feito pela Universidade de Nova York, explica: “No geral, as anulações ambientais do governo Trump podem aumentar significativamente a emissão de gases do efeito estufa e levar a milhares de mortes por ano como consequência da poluição do ar”.
Ninguém que busca ser um verdadeiro pró-vida, que se preocupa com a justiça e a paz, pode apoiar as políticas ambientais de Trump. As numerosas políticas antivida deste governo, sem contar com as suas opiniões e ações danosas relacionadas com as mudanças climáticas, já servem para desqualificá-lo da alcunha de líder “pró-vida”.
Quando nos aproximamos de um outro ciclo eleitoral, católicos e outros começarão a escolher as lentes através das quais avaliarão os candidatos políticos. Alguns vão inevitavelmente dizer, pregar e anunciar que algum problema antropocêntrico relacionado à vida, como o aborto, é o único teste político decisivo que se deve fazer para julgar um candidato. Os bispos americanos já responderam repetidas vezes a esse tipo de absolutismo ilógico, declarando diretamente no guia eleitoral que escreveram: “Como católicos, não somos eleitores que veem um critério. A posição de um candidato em um tema singular não basta para garantir o apoio do eleitor”.
Concordo com os bispos. Não podemos ser tão simplistas e reducionistas a ponto de transformar uma decisão bem-informada e pensada sobre a nossa representação governamental em um referendo binário simples, de sim ou não, restrito ao nosso caso ético favorito ou à nossa visão ideológica. Precisamos considerar a panóplia inteira de questões relacionadas com a paz e a justiça quando lançarmos os nossos votos e avaliarmos as nossas escolhas de vida.
Mesmo assim, haverá uma inclinação natural para ordenar as nossas prioridades e fazer um balanço do que é o mais importante no momento. A magnitude da ameaça climática à vida – humana e não humana – eclipsa todo o resto. As pessoas já estão morrendo de suas consequências, e mais irão se seguir. A floresta amazônica continua a queimar em níveis alarmantes, o gelo polar continua a se derreter, os níveis do mar continuam subindo, milhares de espécies ficam ameaçadas e entram em extinção, além das inúmeras distorções que surgem desta crise ecológica. Tudo isso ameaça a vida no planeta (incluindo a nossa). Precisamos agir com seriedade enquanto pessoas de fé e precisamos reconhecer que a mudança climática é a questão, hoje, mais importante. E devemos agir de acordo com esta percepção.
Que não desperdicemos este Tempo da Criação. Em vez disso, permitamos que seja um tempo para reordenarmos as prioridades e formar as nossas consciências para sermos verdadeiramente pró-vida, porque o futuro de toda a vida conta conosco.
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Mudança climática é a questão de vida mais importante hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU