Brasil. Democracia de balas

Jair Bolsonaro (Fonte: Wikipédia)

Mais Lidos

  • Alessandra Korap (1985), mais conhecida como Alessandra Munduruku, a mais influente ativista indígena do Brasil, reclama da falta de disposição do presidente brasileiro Lula da Silva em ouvir.

    “O avanço do capitalismo está nos matando”. Entrevista com Alessandra Munduruku, liderança indígena por trás dos protestos na COP30

    LER MAIS
  • Dilexi Te: a crise da autorreferencialidade da Igreja e a opção pelos pobres. Artigo de Jung Mo Sung

    LER MAIS
  • Às leitoras e aos leitores

    LER MAIS

Revista ihu on-line

O veneno automático e infinito do ódio e suas atualizações no século XXI

Edição: 557

Leia mais

Um caleidoscópio chamado Rio Grande do Sul

Edição: 556

Leia mais

Entre códigos e consciência: desafios da IA

Edição: 555

Leia mais

03 Fevereiro 2019

“O exílio de Jean Wyllys, assim como o assassinato de Marielle Franco, destacam o ponto de tensão extrema entre as lutas feministas, antirracistas e lgbtq e um patriarcado mercenário que, invocando a regeneração da família e a restauração da autoridade do Pai, abre a porta para a violência de alguns negócios que não reconhecem qualquer limite, nem regulação”, escreve Gabriel Giorgi, mestre em Sociosemiótica pela Universidad Nacional de Córdoba e doutor em Spanish and Portuguese pela New York University, onde atualmente é professor, em artigo publicado por Página/12, 01-02-2019. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

Uma louca sempre sabe como responder a um fascista: cuspindo em sua cara. Jean Wyllys fez isso, como se recordará, durante a infame sessão em que se votou o impeachment de Dilma Rousseff, após receber insultos do então obscuro deputado Jair Bolsonaro. Diante das câmeras, Wyllys lhe lançou uma espetacular cusparada que condensava não apenas a repugnância diante do personagem, mas também demonstrava um limite que a democracia não deveria atravessar. Bolsonaro havia votado em nome do torturador de Dilma - Carlos Ustra -, celebrando a figura não só do milico anticomunista, mas também a do macho que tortura a inimiga política (os filhos de Bolsonaro passeiam, na atualidade, usando camisetas com a legenda “Ustra vive”). O gesto de Wyllys, deputado reconhecido por sua militância lgbtq, condensava isso: cuspir sobre um personagem que usava o parlamento para prometer o retorno de uma violência classista, racista e patriarcal como modelo de poder.

Esse personagem é agora presidente. Chegou ao poder prometendo regeneração, mão dura e uma democracia de balas – o gesto de metralhar todo mundo ao seu redor lhe serviu como branding da campanha eleitoral. As coisas, no entanto, são sempre mais complicadas que alguns gestos pistoleiros e alguns palavrões ressonantes. Antes de completar um mês de mandato, as evidências das alianças de Bolsonaro e sua família com milícias mafiosas estão vindo à luz. Especialmente com ex-participantes do grupo de tarefas especiais chamado BOPE (sua figura pode ser recordada em Tropa de Elite) que dirigem negócios sujos – drogas, operações imobiliárias, etc. – e que, por sua vez, lavam suas tramoias com a invocação de Deus, a família e a santidade redentora do Pai e sua “mão dura”. Mercenários que se colocam a serviço do poder político e econômico. De um desses grupos, muito próximo à família Bolsonaro, saíram, segundo investigações recentes, as balas que executaram nas ruas do Rio de Janeiro, Marielle Franco, a vereadora negra, lésbica e favelada, em março do ano passado. Negócios sujos, milícias no poder, bandos armados até os dentes sob a rubrica do Pai e seus valores, o mercenário mafioso. Disso é feita a “regeneração” prometida por Bolsonaro.

Há uma semana, Jean Wyllys anunciou sua decisão de deixar o Brasil. Agiu assim invocando razões de peso: diante do volume de ameaças que vem recebendo diariamente, há mais de um ano, Wyllys vive com segurança permanente, e só sai de sua casa para cumprir seu trabalho (inclusive, sua última campanha eleitoral foi realizada principalmente on-line). A execução de Marielle Franco, junto ao plano, denunciado em dezembro, de assassinar Marcelo Freixo (líder do partido ao qual pertence Wyllys, o PSOL) dão a pauta do grau de realidade das ameaças que Wyllys recebe. A proteção do Estado – nas mãos de seus inimigos políticos mais acérrimos, tanto em nível nacional como em nível local – oferece poucas garantias: Wyllys sabe que é um objetivo móvel. Por duas razões: porque é a encarnação do que o bolsonarismo odeia – o deputado gay que, além disso, humilhou o “Mito” –, mas também porque a defesa de direitos de setores populares – incluindo a população negra, mulheres, comunidades trans e lgbtq -, especialmente nas periferias, enfrenta diretamente os interesses econômicos e políticos das milícias empoderadas por Bolsonaro. Marielle Franco condensou isto e foi executada em uma rua do Rio. Seu crime segue impune. Outrxs – Wyllys entre elxs – seguem na lista.

Jair Bolsonaro não teve constrangimento em comemorar pelo Twitter o exílio de Wyllys. Há tempo que a pulsão assassina não se dissimula mais; ao contrário, torna-se espetáculo e gestualidade pública. Bolsonaro encarna isso. De qualquer modo, a comemoração não durou muito: David Miranda, também militante gay, é quem sucederá Wyllys na Câmara dos Deputados. “Nos vemos em Brasília”, respondeu Miranda ao tuíte de Bolsonaro.

O exílio de Wyllys fala principalmente de duas coisas. Em primeiro lugar, denuncia uma democracia que começa a ser ocupada, sem nenhum filtro, nem disfarce, por milícias. Uma democracia das balas, digamos, referendada por um governo que dá rédea à posse de armas, supostamente como resposta à reivindicação de segurança. E que faz dessas balas e do porte de armas o símbolo de uma masculinidade que se supõe vir para regenerar um Brasil corrupto. Esse macho armado, esse Pai regenerador, se revela imediatamente (como levou pouco tempo!) o Mafioso e o Mercenário. O que encarna a permissão de matar para atacar indígenas e se apropriar de suas terras, para assegurar seus pactos com uma polícia extremamente corrupta, para perseguir e eliminar faveladxs, tipicamente jovens negros. Essa permissão é o que se verifica como perigo efetivo – além de realidade inabitável – na decisão do exílio.

Porque também se trata de uma democracia armada (alguns inclusive falam de “desdemocratização”), na qual se traça o perfil de seus inimigos mais nítidos, os mais reconhecíveis, aqueles que povoam os sonhos de extermínio do bolsonarismo: os corpos que desafiam as normas de gênero, os que cultivam a autonomia dos prazeres e os afetos, os raros e raras que indisciplinam o corpo para tramar formas da liberdade. Esses são os corpos que são odiados e perseguidos no planeta Bolsonaro: os que cospem na cara do fascista e do macho.

O exílio de Wyllys, assim como o assassinato de Marielle Franco, destacam o ponto de tensão extrema entre as lutas feministas, antirracistas e lgbtq e um patriarcado mercenário que, invocando a regeneração da família e a restauração da autoridade do Pai, abre a porta para a violência de alguns negócios que não reconhecem qualquer limite, nem regulação. É esse patriarca mafioso que se revela na figura de Bolsonaro e em seus filhos abismais; essa é também sua obscenidade. Porque o patriarcado não é somente um conjunto de preconceitos morais e de violências disciplinadoras; é também um conjunto de interesses e de privilégios econômicos, de ambições mesquinhas, de misérias combinadas.

E isto não é um acidente, nem uma exceção: como o bolsonarismo deixa muito claro, está no próprio coração dessa máquina de violência que chamamos patriarcado.

Leia mais