21 Setembro 2018
Ela sobreviveu ao nazismo e fugiu de um estado totalitário, escolheu o lado dos marginalizados e enfrentou a ditadura no Brasil. Hoje lembrada pelo ativismo na causa indígena, a fotógrafa tem toda uma obra a ser redescoberta. Em agosto, recebeu a Medalha Goethe do governo alemão. Nesta entrevista, ela diz: 'a luta de jeito nenhum acabou'
O comentário é de Douglas Portari, jornalista, em artigo publicado por Jornal GGN, 17-09-2018.
Com um olhar terno e real interesse pela alteridade ela conseguiu equilibrar o desconhecimento da língua. Criou sua ponte para o outro pela fotografia jornalística e deu aos anos 1960 imagens como a de uma confortável Clarice Lispector com a máquina de escrever ao colo; aflitivas operações do médium Zé Arigó; nordestinos despachados de São Paulo para seus estados de origem; pacientes psiquiátricos no Hospital Juqueri. A dureza do preto & branco relativizada pela empatia.
Mas o jornalismo é uma força que possui agendas e urgências próprias. E nem sempre estas coincidiram com os anseios e tempos da imigrante Claudia Andujar. Ela sentia ser fundamental propor períodos mais dilatados de convivência com aqueles para os quais voltava seu olhar. Abriu mão, assim, da condição de colaboradora na revista Realidade, marco da imprensa brasileira, para ganhar a floresta atrás de um povo. Era 1971 e de fotógrafa ela passaria também a ativista.
Fim de agosto de 2018, Weimar. Stephen Corry, antropólogo inglês e diretor da ONG Survival International, fez as honras de apresentação de entrega da Medalha Goethe, que a Alemanha e o Instituto Goethe conferem todo ano àqueles que tenham se empenhado pelo intercâmbio cultural internacional. Andujar, uma das premiadas, tinha a seu lado o amigo de quatro décadas Davi Kopenawa, xamã yanomami e uma das lideranças indígenas mais reconhecidas do mundo.
Consagrado, o trabalho de Andujar, como artista e ativista, humanizou os Yanomami – e o termo é literal. Nos anos 1970, não apenas os indígenas em geral eram considerados selvagens, um entrave ao desenvolvimento (ideia que ainda subsiste), como os Yanomami em particular eram vistos pelo Ocidente sob a ótica do antropólogo norte-americano Napoleon Chagnon, cujo estudo dos anos 1960 os chamava de povo feroz, alegando um constante estado de guerra e uso da violência.
Em sua introdução, Corry destacou como o trabalho da fotógrafa derrubou esse mito e lembrou de seus esforços, do missionário italiano Carlo Zacquini e do antropólogo francês Bruce Albert, a partir de 1978, no apoio aos Yanomami para a criação de um território próprio, algo que só seria efetivado em 1992. Duas semanas após o prêmio, já em seu apartamento, em São Paulo, o sorriso de Andujar desaparece e ela crava: “A luta de jeito nenhum acabou. Os Yanomami estão conscientes disso”.
Aos 87 anos, tendo fugido de estados totalitários na Europa, vivido sob uma ditadura no Brasil e escolhido o lado dos marginalizados, Andujar contou vitórias e construiu um legado. Mas ao falar do fosso que o país atravessa atualmente não é otimismo o que ela tem para oferecer. “Não penso que é uma coisa do momento, faz parte do que as pessoas acham que seria o progresso: para progredir, se desenvolver, tem que ocupar, devastar todas essas terras”.
E por “essas terras” não entenda somente os territórios indígenas. Ela fala de todo o país. Seu lar. “Sinceramente, a primeira vez que me senti bem desde que saí da Europa foi aqui. Cheguei com 24 anos, gostei do Brasil e dos brasileiros. Estava bem aqui e estou aqui até hoje”. Nascida em Neuchâtel, na Suíça, em 1931, a hoje brasileira, então Claudine Haas, passou a infância na região da Transilvânia, à época, território húngaro de Nagyvárad, atual Oradea, Romênia.
A Segunda Guerra Mundial varreu qualquer sonho que a menina pudesse ter. “Meu pai e toda sua família foram deportados porque eram judeus. Morreram em um campo de concentração. Minha mãe era suíça, protestante, e já não vivia com ele. Fui morar com ela durante a ocupação alemã. No fim da guerra, com o avanço russo, voltamos para a Suíça. Após alguns anos, um irmão de meu pai que havia conseguido fugir para os Estados Unidos me convidou a ir para lá”.
Além de aprender o inglês e trabalhar como intérprete para as Nações Unidas, a jovem Claudine se casaria, em 1949, com um espanhol refugiado da Guerra Civil. Separaram-se meses depois por ela não concordar com o alistamento do marido para a Guerra da Coreia. De Julio Andujar, Claudine manteria o sobrenome. Quando sua mãe lhe ofereceu um novo porto – ela havia acompanhado um namorado, também refugiado de guerra, ao Brasil – ela partiu novamente.
Seria esse desterro responsável por seu “olhar estrangeiro”, sua curiosidade, atenção ao outro? “Nunca pensei nisso. Mas não me senti estrangeira aqui. No Brasil eu me senti em casa”. Era 1955, e a nova casa de Andujar, ainda que conturbada pelo suicídio de Getúlio Vargas, teria pela frente Juscelino Kubitschek, a construção de Brasília e a bossa nova. Mesmo com o português precário, ela começou a viajar pelo Brasil e países vizinhos com uma Rolleiflex recém-comprada.
“Comecei a fotografar no Brasil, me entrosei na fotografia com muita facilidade. Por ter dificuldade com o português, era também uma maneira de me comunicar”. Assumiu o nome Claudia, abandonou a pintura, que tinha como hobbie, e seguiu o conselho do antropólogo Darcy Ribeiro, que encontrou por amigos em comum: foi conhecer os índios. Era 1958 e Andujar teve uma estadia com os Karajá, na Ilha do Bananal, hoje estado do Tocantins.
Em seguida, iria aos Bororo, no Mato Grosso; aos Kayapó Xikrin, no Pará… e a um périplo por Nova York para tentar vender as fotografias, pois no Brasil, nenhum jornal havia se interessado. Isso rendeu colaborações para as revistas Life e Look e ainda a aquisição de seu trabalho por Edward Steichen, curador de fotografias do MoMa. A partir dos anos 1960, ela passaria a colaborar com publicações nacionais recém-criadas, como Claudia e QuatroRodas.
Mas o descompasso entre as pressões do jornalismo e o tipo de olhar e vivência aos quais Andujar almejava continuavam. Entre 1962 e 1964, a fotógrafa acompanhou o cotidiano de quatro famílias de diferentes classes sociais, em Minas Gerais, Bahia e São Paulo. “Eu sentia que para fazer uma coisa mais íntima, eu tinha de entender quem são”. Nenhuma revista publicou o material, que viria à tona somente em 2015, na mostra No Lugar do Outro, do Instituto Moreira Salles, no Rio.
Ao fim dos anos 1960, Andujar pôde exercer algo dessa intimidade ao colaborar com a revista Realidade, que permitia aos fotógrafos e jornalistas reportagens de maior fôlego. É dessa época a maioria dos registros citados no início deste texto. É também o período em que a fotógrafa iniciou experimentações com sobreposição e inversão de cores, ensaios de nus artísticos. Eles já previam sua necessidade de suplantar o fotojornalismo, de registrar mais do que aquilo que o olho vê.
“Eu prefiro as fotos mais introspectivas e pra isso se tem de entender as pessoas. Acho que tem a ver com minha personalidade, essa procura de entender o outro”. A busca chega à maturidade com os Yanomami, com quem Andujar foi ter aos 40 anos, em 1971. “Eu decidi que queria me dedicar a um tempo sem limites para conhecer bem uma população. A primeira vez fui com George Love [também colaborador da Realidade, fotógrafo norte-americano com quem estava casada].
Ficaram por duas semanas, mas Andujar voltaria. Com uma bolsa da Fundação Guggenhein, optou por passar mais tempo com os Yanomami, entre Roraima e Amazonas. “Ficava um mês, depois mais, cheguei a ficar um ano por lá. Me sentia muito bem entre eles”. Paradoxalmente, a fotógrafa percebeu que o rigor formal tinha de ser abandonado. O real surgiria das sobreposições e efeitos, ao abraçar a subjetividade do tema. “Por conhecer a cultura, eu tentei traduzir a visão mais espiritual deles”.
Esse apogeu estético, uma etnografia do metafísico, foi acompanhado pelo imperativo ético. Ao vivenciar as ameaças aos índios – a construção da Rodovia Perimetral Norte, garimpo, avanço de doenças –, Andujar passou a vocalizar o interesse Yanomami, formando em 1978, ao ser expulsa do território indígena pelos militares, uma ONG que auxiliaria na demarcação, em 1992. “A gente lutou muito para conseguir a terra. Mas ainda hoje há ocupação de garimpeiros, por conta do ouro”.
Desde o início, sua relação com os indígenas também se fez no arranjo financeiro. “Trabalho com uma galeria de arte, comercial, vendem para colecionadores. Meu entendimento com eles, desde quando começamos, através da galeria é: vendemos, de tudo o que se ganha, um terço vai para a galeria, um terço para os índios, e um terço para mim. A gente obedece isso desde o começo até hoje”. O arranjo dos Yanomami com sua própria iconografia, contudo, é complexa.
O antropólogo Bruce Albert, co-autor com Davi Kopenawa do livro A Queda do Céu, abordou o tema há alguns anos: “eles viviam muito isolados, não tinham tradicionalmente imagens como as entendemos, representações plásticas. Eles tinham pinturas corporais geométricas, simbolizando alguns traços ornamentais dos antepassados animais da mitologia. Utupë significa ‘imagem’, ‘duplo’, mas pode se referir também ao reflexo na água e à sombra”.
Esse conceito sofreu influência com o contato com formas de representação do mundo exterior, como fotos, vídeos, pinturas. Mas um tabu surgiu: imagens de pessoas mortas têm de ser destruídas. “Não sei de onde veio essa ideia”, diz Andujar. “Só senti depois que fotografando você roubava a alma da pessoa. Quando cheguei em algumas aldeias já disseram que não podia fotografar. Davi me falou que dos meus livros, quando alguém morre, ele rasga as fotos. Não sei se ainda faz isso...”.
A intimidade e a confiança, sempre tão buscadas pela fotógrafa, a ajudaram a quebrar essa barreira. “Esse medo está lá até hoje. Mas eu não caí em cima deles para fotografá-los. Eu queria primeiro que eles se sentissem à vontade comigo. No começo, eles sequer sabiam o que eu fazia quando fotografava. Quando eu levei algumas fotos que havia feito, eles pegaram assim, viraram, olharam do outro lado e jogaram no chão. Eles não se reconheciam naquele papel”.
Para Davi Kopenawa, esse é apenas um traço de sua cultura. “Para Yanomami, a foto tem de morrer também. Faz uma festa, uma cerimônia, chora e joga a foto no fogo. Não pendura na parede como napëpë [o homem branco]”. Mas o uso de imagens como forma de divulgação da cultura e preservação da memória é admitido por Davi e outras lideranças. Para Andujar, isso é algo novo. “Mas é uma coisa normal, hoje há yanomami com celular, com máquina fotográfica”.
O tema da memória leva a conversa para a questão do acervo de Andujar. Com mais de 50 anos de trabalho, homenageada entre outras formas, com um pavilhão permanente no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, ela possui mais de 50 mil fotogramas – 30 mil deles apenas sobre os Yanomami. “Tenho uma grande preocupação a respeito. Estou em reuniões para discutir isso, uma maneira de manter meu arquivo aqui. Porque mandá-lo para fora eu não quero”.
Segundo a fotógrafa, em dezembro, a unidade paulista do Instituto Moreira Salles fará uma grande exposição sua, com 300 fotografias, ocupando dois andares do prédio da Avenida Paulista. “Eles têm uma preocupação com meu acervo, sabem que os negativos podem se deteriorar. Já chegamos a discutir isso, mas nunca acertamos nada”. Ainda que os Yanomami não entendam a importância do arquivo hoje, Andujar é enfática: “Ele deve ficar no Brasil”.
Seu apartamento em São Paulo lembra uma galeria. Repleto de cerâmicas e artes plumárias, em uma das paredes há um quadro com a imagem que serve de capa ao livro-antologia de 2005 A Vulnerabilidade do Ser: um menino yanomami de olhos fechados, às margens do Rio Catrimani. Instada a comentar se tinha alguma fotografia ou série predileta, Andujar responde candidamente: “Não tenho fotos favoritas. Cada vez que olho meu acervo eu descubro coisas novas”.
Há algo que não tenha feito? “Nunca fotografei a cerimônia funerária, de morte, dos Yanomami. Nunca fiz o que sentia que eles não queriam. Mas sempre tentei fazer algo que eu acreditasse, às vezes é mais difícil, mas não me arrependo”. Para Andujar, os Yanomami não foram apenas protagonistas de suas fotos, mas de sua própria luta. Hoje, possuem uma organização, a Hutukara, e são reconhecidos internacionalmente. E devotam à amiga um carinho especial.
No fim do ano passado, foi recebida com alegria em uma visita à terra indígena Yanomami, na região do Catrimani, Roraima. Mas aos 87 anos, a mulher que palmilhava por aldeias agora anda com dificuldade – ela quebrou a bacia há dois anos. “Eu tenho de pensar no fato de que estou realmente ficando… não quero usar a palavra velha, mas frágil”, Ela também não pegou mais a máquina fotográfica. “Eu deixei de fotografar, estou trabalhando com o que já tenho”.
Para alguém que pensa só ter encontrado um lar quando chegou ao Brasil; e uma família, quando conheceu os Yanomami, é natural o pedido que Andujar confessa ter feito a Davi. “Não tenho mais parentes, ninguém. Tenho amigos. Cheguei a falar sobre a possibilidade de formalizar um testamento. Quero que meu corpo fique na terra Yanomami, passe pelos rituais funerários. Não quero ser enterrada ou cremada em São Paulo. Quero minhas cinzas na terra Yanomami”.
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Um lar para Claudia Andujar - Instituto Humanitas Unisinos - IHU