20 Julho 2015
Dário Kopenawa, 33 anos, olha para o álbum de fotografias aberto em cima da mesa, um livro pesado, com mais de cem imagens de cerimônias yanomami, e balança a cabeça. “Isso vai dar uma choradeira”. Seu pai, Davi Kopenawa, 59 anos, concorda, mas diz que apenas algumas fotos serão devolvidas a parentes – as dos mortos. “O álbum fica aqui na Hutukara guardado”. O diálogo, travado em Boa Vista, Roraima, numa tarde de inverno de julho, leia-se sol e calor amazônicos, é apenas um dos desdobramentos do acaso recente e de uma história que começou há 20 anos.
A reportagem foi publicada no sítio Fundação Perseu Abramo, 17-07-2015.
Maior liderança indígena do mundo na atualidade, Davi é presidente da Hutukara Associação Yanomami, entidade criada em 2004 pelos próprios índios para defender seus interesses e seu espaço, o Território Indígena Yanomami. 97 mil km2 demarcados em 1991 e homologados no ano seguinte, uma área que cobre parte dos estados de Roraima e do Amazonas. Nela vivem 25 mil yanomami (outros milhares vivem no lado venezuelano da Floresta Amazônica), em um universo de quase 900 mil indígenas no país, segundo dados do Censo Demográfico do IBGE, de 2010.
O trabalho de Davi – e dos diretores da Hutukara, como seu filho Dário, além de dezenas de outros líderes indígenas – muitas vezes os colocam em risco. No ano passado, Davi teve sua vida ameaçada, represália ao combate ao garimpo nas terras yanomami, um dos principais problemas enfrentados pelos índios. Em 2012, a Polícia Federal deflagrou a Operação Xawara, que levou à prisão pilotos, donos de balsas e de joalherias, após uma ação sistemática dos indígenas fornecendo mapas dos locais de garimpo, prefixos de aeronaves, apelidos de pilotos e nomes de financiadores.
Isso explica, em grande parte, a desconfiança dos índios quando estranhos surgem pleiteando uma entrevista, por exemplo. E sobre uma questão, no mínimo, incomum: a história de um álbum repleto de fotos de yanomami, contendo somente uma legenda na capa, “2ª Assembleia Yanomami 1995”. O registro de um encontro realizado na Missão Catrimani, no território indígena, em Roraima, e descoberto em uma caçamba de lixo de uma rua de São Paulo, em 2014. Mas para Davi, a defesa da cultura de seu povo inclui suas imagens e ele concordou com o encontro em Boa Vista.
O achado gerou um pequeno projeto de documentários curta-metragens do cinegrafista e editor audiovisual Marcelo Vinci, e do jornalista Douglas Portari, ambos integrantes da Comunicação da Fundação Perseu Abramo (FPA), que abarcou o projeto, dentro de seu escopo de difusão do conhecimento e de sua atuação na causa indígena (vide pesquisa Indígenas no Brasil). O primeiro filme, produzido apenas com fotos do álbum, já está pronto. O segundo, em produção, vai trazer, além da entrevista com o líder yanomami, relatos, entre outros, da fotógrafa Cláudia Andujar e do missionário Carlo Zacquini, fundadores, junto com o antropólogo francês Bruce Albert, da Comissão Pró-Yanomami, no fim dos anos 1970.
Vinci, que encontrou o álbum no entulho, explica o projeto. “Percebemos que o material merecia tratamentos diferentes, que havia mais de uma narrativa ali: uma contida dentro do álbum, que as fotos contavam. A outra, o caso do álbum propriamente dito, quem tirou aquelas fotos, por quê, quem era seu dono e como ele se perdeu”. Para ele, o objetivo é contar uma história curiosa e particular, mas cujas implicações são gerais e amplas. “Uma assembleia yanomami não é um evento trivial, o que os índios reivindicavam em 1995? O que mudou em 20 anos?”
Contando com o auxílio de Marcos de Oliveira, indigenista e coordenador-adjunto do programa Rio Negro do Instituto Socioambiental (ISA), a dupla iniciou o processo de pesquisa em janeiro. Segundo Vinci, o primeiro filme é uma tentativa de reconstrução naturalista da assembleia, “como ela poderia ter acontecido, mas sem um viés didático, é um breve mergulho na cultura yanomami”. Já o segundo curta-metragem irá tentar descobrir a história do álbum, abordando lateralmente a realidade yanomami atual e um ponto crucial para seu povo: a representação.
Bruce Albert, em uma entrevista para o ISA há alguns anos, abordou a questão: “eles viviam muito isolados, não tinham tradicionalmente imagens como as entendemos, representações plásticas, eles tinham pinturas corporais geométricas, simbolizando alguns traços ornamentais dos antepassados animais da mitologia (…) utupë; significa 'imagem', 'duplo', 'representação miniatura', mas pode se referir também ao reflexo na água e à sombra”. Segundo Albert, esse conceito sofreu influência com o contato com as formas de representação do mundo exterior: fotos, vídeos, pinturas.
Os yanomami fazem uso de vídeos e fotografias e sabem de sua importância para a permanência da memória e para a promoção de sua cultura entre o homem branco (napëpë), mas um ponto, contudo, é quase um tabu: a imagem de uma pessoa já falecida. “Homem branco bota na parede a foto de quem morreu. Yanomami não faz isso. A gente briga se ver foto de parente morto exibida”, diz Davi. O que acontece é um ritual em que a família chora seus mortos e destrói com fogo a sua representação. Este será, portanto, o destino de parte do álbum: do lixo para o fogo cerimonial.
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Do lixo para o fogo cerimonial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU