18 Abril 2017
O Catecismo da Igreja Católica oferece alguns sábios conselhos sobre como interpretar as palavras de uma outra pessoa. No artigo 2478, diz: “Para evitar o juízo temerário, cada um procurará interpretar em sentido favorável, tanto quanto possível, os pensamentos, as palavras e os atos do seu próximo”.
O comentário é de Rita Ferrone, publicado por Commonweal, 05-04-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Buscando explicar isso, o Catecismo cita uma passagem dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus: “Todo o bom cristão deve estar mais pronto a interpretar favoravelmente a opinião ou afirmação obscura do próximo do que a condená-la. Se de modo nenhum a pode aprovar, interrogue-se sobre como é que ele a compreende: se ele pensa ou compreende menos retamente, corrija-o com benevolência; e se isso não basta, tentem-se todos os meios oportunos para que, compreendendo-a bem, ele regresse do erro são e salvo”.
Refleti sobre este conselho ao ponderar algumas declarações do Papa Francisco sobre as mulheres. Como muitos notaram, apesar da intenção declarada de incluí-las e promovê-las, o papa vem causando consternação com algumas de suas afirmações concernentes a elas.
Ao escrever para o sítio eletrônico Religion News Service em 2014, David Gibson catalogou alguns destes comentários problemáticos e observou: “Quando fala sobre as mulheres, Francisco pode soar bem parecido com o eclesiástico argentino de (quase) 78 anos que ele é, usando analogias que soam alternadamente condescendentes e pouco oportunas, mesmo se bem-intencionadas”.
Vejamos alguns exemplos. Após uma rodada de novas nomeações para a Comissão Teológica Internacional, acabou que cinco de seus membros eram mulheres. O Papa Francisco expressou alegria com este número aumentado, mas disse que ele não era suficiente. Precisamos de mais teólogas. “Elas são a cereja do bolo, mas queremos mais!”.
Num discurso às mulheres que optam pela vida consagrada, o papa disse do comprometimento delas: “Que seja uma castidade frutífera, uma castidade que gere filhos e filhas na Igreja. A mulher consagrada é uma mãe, ela deve ser uma mãe, não uma solteirona”.
Quando Francisco generosamente disse: “É necessário ampliar os espaços de uma presença feminina mais incisiva na Igreja”, também acrescentou: “Temo uma solução que possa se reduzir a uma espécie de ‘machismo de saias’”.
Francisco tem contornado perguntas desconfortáveis com humor à custa das mulheres, o que acaba piorando a situação. Por exemplo, quando lhe perguntaram se havia um pouco de misoginia no histórico de suas referências às mulheres principalmente como esposas e mães, ele brincou dizendo que “a mulher foi tirada de uma costela”. Ao ser perguntado sobre se tomaria decisões históricas, como nomear uma mulher para liderar algum departamento vaticano, ele escapou da pergunta com um estereótipo “engraçado”: “Ora, os pastores muitas vezes se rendem à autoridade da empregada”. Claramente, esta evasiva não é engraçada.
Em declarações mais sérias também, o papa por vezes parece não notar que certas imagens que emprega podem ofender. No discurso ao Parlamento Europeu, por exemplo, ele diagnosticou uma “impressão geral de cansaço e envelhecimento”. Mas não se referiu ao continente como um pobre e velho avô. Em vez disso, usou a imagem de uma “avó que já não é fecunda nem vivaz”.
Esta imagem de uma velha, patética e desgastada, “que já não é fecunda”, provocou uma onda de críticas em defesa... das avós. As avós fazem a maior parte do trabalho na Igreja, algumas salientaram, com indignação, que a infertilidade não significa que a mulher não seja vivaz.
Há dois problemas gerais, subjacentes que fazem com que as mulheres (e os homens) se irritem com tais declarações. Eles não são específicos do Papa Francisco, de forma alguma, mas, quando este papa diz determinadas coisas, acaba gerando dúvidas sobre as suas verdadeiras intenções. O que ele quis dizer afinal? É isso o que ele realmente pensa?
O primeiro problema é a persistência de uma visão estreita de mulher dominada por pensamentos a respeito da capacidade delas gerar filhos. Ao comentar sobre a passagem em torno da “avó não mais fecunda”, Joanna Moorehead escreveu no The Guardian: “O valor posto às mulheres através dos séculos de história católica, desde a Virgem Maria em diante, tem estado associado à capacidade delas de gerar filhos; desvinculá-las desta visão unidimensional do que significa ser fêmea é um movimento desesperadoramente necessário no Vaticano”.
Melinda Henneberger, em artigo publicado no The Washington Post, mostrou-se igualmente consternada com o pensamento de as freiras estarem sendo aconselhadas a não se tornarem “solteironas”. Escreveu: “Não consigo ver [essa afirmação] senão como um insulto a estas mulheres que já abriram mão de suas famílias para servir a Deus”.
Uma ênfase demasiado estreita sobre a capacidade feminina de ter filhos como sendo a fonte de identidade e valor é um problema profundo e ancora-se em escritos papais produzidos nos tempos modernos. Ela aparece nos escritos de Pio XII, e mais recentemente nos de São João Paulo II. A discussão sobre as mulheres, desde Pio em diante, tem girado em torno da noção da maternidade, mesmo quando o tópico não é sobre a geração de filhos, e sim sobre a maneira como elas comportam-se no mundo. Quando a ideia de um “gênio feminino” se faz presente nas falas do Papa Francisco, geralmente significa que ele está pegando de empréstimo o pensamento de João Paulo II.
Francisco, por sua vez, diz repetidas vezes que precisamos de uma “teologia mais profunda da mulher”. Para mim, isso quer dizer que, em certo nível, ele “sabe que não sabe” o que vem a ser este “gênio feminino” – assim como ninguém mais o sabe. Tendo uma certa humildade e um certo realismo – quer dizer, uma preferência reflexiva para afirmações baseadas na evidência dos fatos e não em deduções de princípios a priori –, Francisco não supõe saber de tudo. Ele evidentemente sente profundamente que as mulheres são importantes e sabe que elas são subvalorizadas na Igreja. Mas quando se trata de dizer por que elas são importantes e o que é valioso nelas, há uma menor clareza.
O segundo problema subjacente aqui é que as mulheres não são facilmente “definidas” e, talvez, nem devam ser. O Papa Francisco tem buscado generosamente falar sobre o “papel das mulheres”, da “necessidade das mulheres”, do “lugar das mulheres” na Igreja. Por que estes esforços estão tendo um sucesso limitado? A meu ver, a razão é que uma pressuposição questionável subjaz todo o debate, a saber: as mulheres são, de algum modo, um mistério, um problema, uma “questão”. Os homens, por outro lado, são meramente pessoas. Nunca conversamos sobre o “papel das pessoas na Igreja”. Nunca dizemos: “Precisamos de pessoas na Igreja”. Isso seria ridículo. As mulheres, por outro lado, são tratadas essencialmente como uma subespécie que necessita, de alguma maneira, ser levada em conta. Quer façamos isso por meio de uma referência brilhante ao “gênio feminino” delas, quer o façamos preocupando-nos com os motivos pelos quais Deus as criou, ou debatendo a questão clássica do por que Deus tornou o homem sujeito à mulher (um outro mistério da gestação!), ou ainda por que a mulher deve estar sujeita ao homem (São Paulo!) – a mulher continua sendo um enigma. Ela não pode apenas “ser”. O seu próprio ser é um problema. E o mais irritante de tudo: a assunção decorrente é que devemos buscar por soluções aos desafios que ela, a mulher, enfrenta não via referência à sua humanidade, mas via referência a um padrão diferente: a feminilidade.
Alguns dos comentários do Papa Francisco parecem ser a expressão direta destes problemas mais profundos. Mas será que os pensamentos dele concernentes às mulheres se restringem inteiramente a elas? Creio que não. Outras declarações feitas por ele mostram que seu pensamento vai além. Francisco fez afirmações significativas sobre as mulheres que são profundamente animadoras. Vejamos alguns exemplos.
Deixando de lado o que afirmou sobre as mulheres como sendo a cereja do bolo, não devemos esquecer que Francisco logo em seguida acrescentou: “Precisamos de mais teólogas”. Disse isto com todas as palavras: 5 de um total de 30 na Comissão Teológica Internacional não são suficientes. Continua sendo um número muito pequeno. Seria uma infelicidade perder de vista o cerne desta declaração por causa das reações negativas à metáfora infeliz que empregou na ocasião. Francisco está interessado no pensamento das mulheres, não na capacidade reprodutiva delas.
O Papa Francisco também disse que “ainda é preciso ampliar os espaços para uma presença feminina mais incisiva na Igreja” (Evangelii Gaudium, n. 103). A palavra “incisiva” é bem forte. Agora, convenhamos, não vejo os bispos se organizando para tornar realidade este imperativo. Porém o seu chamado ao desenvolvimento nesta área é definitivo e inconfundível.
Eis uma outra citação de Francisco válida de nota: “Por que é dado como certo que mulheres devem ganhar menos que homens? Não! Elas possuem os mesmos direitos. A discrepância é um escândalo”. Ele disse também que os católicos precisam “definitivamente apoiar o direito de igualdade salarial para trabalhos iguais”. Temos aqui um desafio a toda a Igreja, especialmente para os leigos. Essas palavras do Papa Francisco sustentam uma ação positiva neste fronte.
Francisco nunca cita São Paulo sobre o marido como o chefe da esposa. Diferentemente, disse que a tradição religiosa cristã adota a “igualdade radical” entre os cônjuges. Ele também aproximou o matrimônio e a família à justiça econômica. Para que as famílias possam prosperar, disse, devemos “nos tornar mais exigentes” quanto a alcançar a igualdade das mulheres nos locais de trabalho.
Por fim, o Papa Francisco defendeu, com vigor, a emancipação feminina, dizendo que é um insulto sugerir que os movimentos pelos direitos das mulheres devem levar a culpa pelo declínio no número de casamentos. Fazer isto é uma “forma de chauvinismo que sempre quer controlar a mulher”.
No voo de volta do Rio de Janeiro, onde esteve participando da Jornada Mundial da Juventude, Francisco teceu alguns comentários sobre as mulheres que são sugestivos de uma agenda inacabada. Desde então ele teceu declarações semelhantes em outros ambientes. Vale a pena olhá-las em detalhe.
“O papel da mulher na Igreja não deve circunscrever-se a ser mãe, trabalhadora... Limitá-la não! É outra coisa!”, disse Francisco. Ele lutou para expressar este pensamento. Elogiou as mulheres do Paraguai que reconstruíram depois de uma guerra devastadora que dizimou 90% da população, um exemplo secular da coragem feminina. Depois, falou: “Limitamo-nos a dizer que pode fazer isto, pode fazer aquilo, agora faz a coroinha, depois faz a Leitura, é a presidente da Caritas... Mas, há muito mais! (…) profundamente mais, inclusive misticamente mais (…)”. E conclui: “a mulher, na Igreja, é mais importante que os bispos e os presbíteros; o como é que devemos procurar explicitar melhor, porque eu acho que falta uma explicação teológica disso”.
Como podemos interpretar esta citação do Papa Francisco? Será que a afirmação de que as mulheres são “mais importante[s] que os bispos e os presbíteros” é apenas mais uma tentativa de colocá-las num pedestal sem dizer nada em específico? Vejamos isto tendo a injunção de Santo Inácio em mente.
A primeira coisa a notar é que Francisco está insistindo em algo. Está pressionando contra uma coisa que ele pensa estar errado. Ele está chamando a atenção para o fato de que as mulheres não estão recebendo o que lhes é devido, não estão tendo a correta prioridade que têm na vida da Igreja, enquanto os clérigos são supervalorizados. Além disso, Francisco está dizendo que não basta “conceder” cargos menores a mulheres que anteriormente pertenciam exclusivamente a homens; as mulheres devem ser valorizadas por direito próprio. E, por último, quando forem valorizadas por direito próprio e em sua verdadeira dignidade, o valor delas na vida da Igreja ultrapassa aquele da hierarquia masculina.
Penso que Francisco expressa uma intuição aqui, em lugar de uma posição bem-articulada. O respeito dele pelas mulheres, como a sua reverência por Maria e a honra que confere à Igreja, é algo que excede o seu poder para expressá-lo em palavras, mas que é, não obstante, real e importante. Não é algo que ele deduziu a partir de princípios. Diferentemente, a ele parece ser uma verdade apreendida na vida e, só depois, é algo refletido. Ele está dizendo que respeita as mulheres pela coragem e pelo valor delas. Está afirmando também, sem medo de errar, que ele as tem em alta estima, mais do que em relação aos bispos e presbíteros.
Em Evangelii Gaudium, Francisco desenvolve esta ideia, muito embora ainda não venha a cristalizar o pensamento que lutou para manifestar durante o voo que o trouxe do Rio de Janeiro. Primeiramente o papa reconhece as mulheres como indispensáveis e diz que os homens e mulheres são iguais em dignidade, e que os direitos legítimos delas devem ser respeitados. Em seguida, distingue entre dignidade – que é algo mais fundamental e mais importante do que as coisas que fazemos – e funções. “A grande dignidade vem do Batismo”, diz ele (Evangelii Gaudium, n. 104). Esta dignidade pertence a homens e mulheres indistintamente.
Por outro lado, diz ele, “quando falamos da potestade sacerdotal, ‘estamos na esfera da função e não na da dignidade e da santidade’” (Evangelii Gaudium, n. 104). A chave para o sacerdócio ministerial, declara, não é o poder de domínio, mas a potestade de administrar o sacramento da Eucaristia. Conclui desafiando os pastores e teólogos a reconhecerem as implicações desta declaração e a ver “o que isto implica no que se refere ao possível lugar das mulheres onde se tomam decisões importantes, nos diferentes âmbitos da Igreja”. A pressuposição que ele faz aqui está muito clara: as mulheres podem exercer a autoridade nas tomadas de decisão apesar do fato de não poderem administrar a Eucaristia.
Quando se compreende corretamente a ordenação, segundo o Papa Francisco, os dons das mulheres para a liderança podem ser compartilhados dentro da Igreja. As mulheres podem se engajar nos ambientes decisórios da Igreja. Ele parece estar dizendo simplesmente que a ordenação é menos importante que o batismo no grande plano das coisas. E para qualquer igreja dominada pelo clero, isso não é pouca coisa – para as mulheres e para os homens.
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As palavras de Francisco sobre as mulheres. O que ele realmente pensa? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU