02 Setembro 2016
Através destes vários episódios propostos ao exercitante, parecia ser possível trazê-lo para o clima típico da primeira semana, isto é: quem sou eu, qual é minha situação, como me sinto como catecúmeno que começa seu trabalho: confuso, necessitado de autenticidade, incapaz de viver dignamente minha vida na Igreja, inexperiente e desajeitado diante do mistério do Reino e, portanto, incapaz de recebê-lo. Assim, pois, ficava determinado, de alguma maneira, o ponto de partida.
O texto é do Cardeal Carlo Maria Martini, falecido em 31 de agosto de 2012, publicado por Avvenire, 28-08-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
O jornal Avvenire antecipou a publicação de um trecho do livro que traz as reflexões sobre o Evangelho do Cardeal Carlo Maria Martini. Segundo o periódico, "uma rota em que o grande exegeta descreve como um incentivo para novos catecúmenos".
Eis o texto.
A experiência pode ser também comunicada, apresentando-se o resultado final, e, neste caso, então, poderei ler o título de alguns dos panfletos publicados pelo Centro Inaciano de Espiritualidade. Relatarei como, na primeira vez, apresentei os Exercícios não partindo diretamente do texto de Santo Inácio – o que fizera por muitos anos, seguindo-o rigorosa e fielmente - mas tomando um único Evangelho. Disto tudo vou tirar algumas indicações sobre o “como” esta experiência ocorreu, ou o “porquê” ela ocorreu, e, em seguida, “quais” poderiam ser as dicas extraídas.
Eu não podia seguir materialmente o itinerário dos Exercícios, porque teria criado, desde o início, um sentimento de rejeição. Por outro lado, não queria lidar com o que se pode chamar de "transposição temática" dos Exercícios de Santo Inácio com temas bíblicos. Isto sempre se pode fazer. Sempre se pode tomar cada uma das grandes meditações inacianas e aproximá-las de uma série de textos bíblicos, a partir dos quais elas podem ser reformuladas. Não quis seguir este método, porque não via usado nele, uma dinâmica característica de vários livros da Escritura.
Não sei porquê, mas senti-me levado a propor outro tipo de experiência.
Já que era óbvio que aquele grupo proporia algo da Escritura – uma realidade que mais facilmente tenho à mão, e, de modo particular os Evangelhos – decidi-me por uma leitura continuada.
Poderia ter seguido, por exemplo, este método: comentar um Evangelho, a partir de uma leitura integral, e apontando gradualmente, capítulo por capítulo, aqueles momentos particulares do texto, que lembram uma rota de exercício. Isso também é possível, e certamente pode-se realizar, sem dúvida, em determinadas situações. Mas, encontrava-me numa situação diferente. Tinha diante de mim um problema de crise. Refletindo sobre o significado da situação, num certo momento, pude vê-la materializada no versículo do Evangelho de Marcos, que lê: "A vós foi dado o mistério do Reino de Deus, aos que estão fora, porém, tudo acontece em parábolas" (Mc 4,11).
Pareceu-me - ao ler este versículo naquela situação concreta - uma chave para entender a dinâmica do Evangelho de Marcos. Existe a condição de quem está fora - embora acredite estar dentro - do mistério do Reino. E, então, "tudo lhe aparece em parábolas"; ou seja, tudo é capturado por meio de figuras, sinais, rituais, sacramentos, procissões, situações externas que ele reproduz em sua vida, porque foram propostas pela tradição, mas com sentido de estranheza, com sentido de inautenticidade. Pelo contrário, há uma situação em que o Reino é dado, ou seja, entra-se em contato direto, autêntico, com o mistério do Senhor. A passagem do estar do lado de fora - e, portanto, de ver o Reino com estranheza e desconfiança, de onde, então, nascia, neste grupo, uma forte crítica à Igreja institucional, um forte desconforto com tudo o que era estrutura diocesana, paroquial etc. -, a passagem, digo, de fora para dentro, da parábola para a realidade do encontro com o Senhor: eis a dinâmica que o Evangelho de Marcos me oferecia, que parecia corresponder à situação concreta daquele grupo. Então pensei comigo mesmo: Leio e releio cuidadosamente o Evangelho de Marcos, tentando ver nele como um homem do lado de fora - mesmo que esteja em contato com a situação eclesial, isto é, ainda no momento da primeira análise - é trazido para dentro, ou seja, para a imediata presencialidade do mistério do Senhor.
Esta situação pareceu-me típica daquela para a qual o Evangelho de Marcos tinha sido escrito. Propus-me então, esta hipótese de trabalho a ser verificada na exposição das meditações individuais: Marcos como Evangelho do catecúmeno.
Isto é, o Evangelho que parte do homem no seu limite, no limiar do mistério cristão, ainda tomado por sua mundanidade, mas desejoso de entrar; incapaz de conhecer o significado das parábolas, isto é, das figuras, das formas externas religiosas que lhe são propostas, mas ansioso para dar o salto, para entrar no mistério cristão.
E então, quando se prospecta, desta forma, a leitura do Evangelho, retorna muito fácil a comparação com o livro dos Exercícios que são, de fato, uma rota, levando o praticante de um determinado ponto de partida, através de um série de etapas sucessivas, conduzindo-o a um ponto de chegada, que será sempre a eleição ou a sua conformidade com Cristo, no estado de vida escolhido, e assim por diante, segundo o modo com que se descreve este itinerário final, esta configuração com o mistério.
A leitura de Marcos mostrava o caminho a ser percorrido com este grupo. Descobrir o itinerário do catecúmeno no Evangelho de Marcos, os pontos de partida, as etapas sucessivas, o ponto de chegada, para confrontá-los com a própria experiência. Ler, portanto, a própria experiência e repeti-la, seguindo as etapas, as pistas que o Evangelho de Marcos propõe. É claro que, nesta leitura, era preciso ter sempre presente a correspondência entre o ponto de partida, as diferentes etapas e o ponto de chegada dos Exercícios.
Foi assim que, sem procurar abstrata ou artificialmente, percebi facilmente que voltava, ao determinar o ponto de partida, as etapas sucessivas e o ponto final, às etapas do itinerário dos Exercícios. Estes, na verdade, representam um fundamental itinerário cristão que, de maneira análoga, com diferente proporcionalidade, reproduzem o conjunto das situações nas quais alguém procura, desde a condição periférica, aproximar-se do centro aproximar-se do mistério do Senhor.
Aqui estava traçado, portanto, uma tentativa de programa para ajudar o praticante a cumprir seu caminho, dando-lhe, como manual, o manual do catecúmeno. Qual é o ponto de partida para o grupo de catecúmenos que recebiam o Evangelho de Marcos como itinerário batismal? Como determinar este ponto de partida? É claro que ele não se encontra expresso explicitamente no Evangelho, porque este não é, de fato, um manual abstrato, mas sim um vade-mecum que guia, que segura pela mão; isto é, não apresenta um percurso já construídos teoricamente de acordo com certos critérios, exatamente, de tipo abstrato. Deste modo, a primeira tarefa foi buscar nas páginas do Evangelho, a situação do ponto de partida dos catecúmenos, em seu itinerário, e compará-la com a situação do nosso grupo. Entre alternativas possíveis, procurei, no Evangelho de Marcos, as repreensões de Jesus; isto é, o que, segundo Jesus, "não se deve ser". Por meio das censuras pude colher, de tabela, a situação real daqueles que começavam seu próprio itinerário catecumenal; o que eram convidados a deixar.
Então, propus a leitura das muitas censuras que Jesus fez em relação à ignorância dos discípulos: "não entendem", "cuidado com isso, ouvi", "como é que ainda não tendes fé", "não compreendestes nada em relação aos pães", "o coração deles permaneceu endurecido, não entendiam a conversa"; todas citações tomadas de Marcos a partir de 4,40; 6,6; 6,52; 9,32 etc.
Nesta leitura, confrontada com a situação do exercitante, ele deveria poder dizer: "portanto, eu também começo este itinerário deixando-me xingar, admoestar pela Palavra de Jesus e reconhecendo que sou ignorante em relação ao mistério do Reino de Deus". Ou seja, que "esta minha atitude de desilusão, de derrotismo, de crítica amarga é provavelmente resultado de falta de compreensão do mistério do Reino. Também eu tenho o coração endurecido".
Eis, então, a primeira atitude a despertar no exercitante. Como se vê, aqui estamos no clima da primeira semana. Se quisermos especificar mais esta atitude, leremos mais censuras feitas por Jesus no Evangelho de Marcos, por exemplo, nas controvérsias do cap. 2. Mc 2,25: "Nunca lestes o que fez Davi e seus companheiros quando estavam em necessidade e com fome?" Ou Mc 3,5 "Repassando então sobre eles um olhar de indignação, e entristecido por causa da dureza de seu coração, Jesus disse ao homem: ‘Estende a tua mão'".
A partir da coleção das passagens em que Jesus repreende a ignorância dos discípulos, o exercitante poderá compreender: "se aceitas a Palavra de Deus, deverás começar este mesmo itinerário, reconhecendo que sabes pouco e que precisas aprender mais". Desde as repreensões pela ignorância chega-se a especificações temáticas mais precisas, reprovações concretas que Jesus faz; censuras diretas, portanto, feitas à comunidade de Marcos, censuras diretas feitas ao catecúmeno, que começa o caminho e, portanto, que se traduzem em censura concreta à pessoa que pressupõe saber muito do mistério do Reino de Deus, mas que realmente se encontra em situação de pouca autenticidade e carência, em muitos aspectos. Daí, uma meditação sobre a situação de inautenticidade no que diz respeito ao mistério do Reino de Deus; a ignorância da liberdade verdadeira dos filhos de Deus - repreendida em Mc 2,25 -; medo de se expor realmente pelo Reino e, uma sensação contínua de ter que se resguardar, se proteger, nunca comprometer-se de fato - Mc 3,5, também, Mc 3,21; 8,35 - e, sobretudo, indo mais para dentro de si, “um coração doente", "a situação do coração do qual pode sair todo tipo de miséria e todo tipo de degradação": Mc 7,21-23.
Através destes vários episódios propostos ao exercitante, parecia ser possível trazê-lo para o clima típico da primeira semana, isto é: quem sou eu, qual é minha situação, como me sinto como catecúmeno que começa seu trabalho: confuso, necessitado de autenticidade, incapaz de viver dignamente minha vida na Igreja, inexperiente e desajeitado diante do mistério do Reino e, portanto, incapaz de recebê-lo. Assim, pois, ficava determinado, de alguma maneira, o ponto de partida.
Mas, naquele momento, o que me aconteceu? Percebi que os exercitantes colhiam bem o ponto de partida e sua situação de inautenticidade; faltava, no entanto, parecia-me, aquele sentimento de reverência com o mistério de Deus e a dedicação à oração que é suposto na anotação quinta e no Princípio e Fundamento. Por isso, na condução da experiência, não só continuamente me comparava com a condição das pessoas que estavam na frente, mas também comparei a experiência dessas pessoas com o livro dos Exercícios. Então, pareceu-me, naquela situação, que deveria haver uma reflexão que apresentasse a eles o sentido de Deus típico de Santo Inácio, sem repetir a linha do Princípio e Fundamento - que já conheciam de cor e da qual não tirariam muito - e sem repetir a exortação de colocar em pratica a anotação quinta, que é a da "liberalidade para com o Senhor e Criador", e a anotação terceira, sobre a "maior reverência aos atos da vontade do que aos do intelecto".
Para não propor estas coisas de maneira temática, perguntei-me: qual seria o sentido da reverência do mistério divino, daquele momento inicial da relação com Deus, suposto no catecúmeno, que iniciava seu itinerário no Evangelho de Marcos? Esta é uma pergunta posterior, que se pode responder a partir do próprio Evangelho. Ou seja, é preciso ver como Marcos fala de Deus ao catecúmeno. E, com relação a isso, aqui vai uma séria de indicações.
Marcos não fala muito disso. O sentido do mistério de Deus é proposto não só através de palavras, mas também através do silêncio, através da reverência e da adoração. Quando Marcos fala, ele fala com algumas indicações que nos mostram, por um lado o Deus criador, o ser do qual dependemos completamente, por outro, sua presença entre nós: "chegou o Reino de Deus"; e em terceiro lugar, seu mistério indescritível. O Deus que depois de ter vindo ao nosso encontro, no momento certo, parece abandonar-nos. Da simples resenha das passagens de Marcos que falam de Deus - são umas quinze – pode-se tirar os elementos fundamentais a serem apreendidos, em vista de ajudar os exercitantes a colocarem-se diante deste mistério com reverência e expectativa. Estamos diante de Deus, que não só nos possui, mas que pode nos surpreender. Devemos, portanto, exercitar-nos na oração, para chegarmos àquela condição que se pede ao catecúmeno no início do caminho.
E, neste momento, pode-se iniciar o itinerário positivo. Qual é, mais uma vez, o referimento de partida? É o que está descrito, parece-me, especialmente nos capítulos de Mc 1-2, através do "chamamento dos discípulos", "as primeiras curas", "os primeiros milagres de Jesus". Através da leitura destas passagens, a Igreja primitiva fazia o catecúmeno tomar consciência de que há um chamado de Jesus para ele, que se implementa concretamente na relação direta com o Senhor que o chama para a conversão. Por conseguinte, explicita-se mais o primeiro passo, que o exercitante deverá fazer.
Aqui, se for necessário - e pareceu-me necessário naquela situação - com base no próprio Evangelho de Marcos, pode ser interessante analisar quais são os aspectos dessa conversão.
Antes de tudo uma conversão moral, isto é, uma mudança de atitude ética. Assim temos em Mc 7,21-22 a conversão moral; em Mc 7,23, a conversão do coração, a partir de dentro e, portanto, capaz de mudar o homem naquela que é a raiz de todas as suas ações; em Mc 1,15, a conversão que se realiza não através do próprio esforço, mas abandonando-se à ação de Deus, em Jesus: "Crer no Evangelho!"; e, finalmente, aceitando abandonar-se à ação de Deus, acolher, pelo menos de modo vago e genérico, o seguimento d'Aquele que pode realizar grandes obras de potência.
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Exercícios espirituais, ginástica do mistério cristão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU