30 Janeiro 2017
“A Igreja na fila para distribuir preservativos”, dizem as manchetes. Na verdade, essa fila nada tem a ver com camisinhas. As profilaxias em questão, que poderiam ou não ser distribuídas em um projeto social levado a cabo sob os auspícios de uma antiga ordem católica, são apenas o gatilho para uma disputa que é mais importante do que o certo e o errado nos métodos contraceptivos, tema com o qual a Igreja tem se debatido há mais de meio século.
A reportagem é de Joanna Moorhead, publicada por The Guardian, 27-01-2017. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
O problema real em xeque, que resultou na saída do grão-mestre dos Cavaleiros de Malta, é a questão mais relevante de toda a Igreja Católica: Qual o jeito certo de representar o ensinamento de Cristo no mundo de hoje?
Por um lado, temos Matthew Festing, ex-leiloeiro de 67 anos, em seu traje vermelho claro com detalhes dourados. Ele representa a Igreja Católica de antigamente, a Igreja em que as normas eram ditadas do alto e aceitas pelos que abaixo se encontravam. A Igreja que ele amava, e que adoraria ainda fazer parte, era a Igreja da década de 1950, no último alvoroço da instituição que foi suplantada pelo Vaticano II e pelo liberalismo dos anos 60. Até onde lhe diz respeito, a Igreja Católica é uma instituição imutável cujos membros, uma vez casados, permanecem casados até a morte e que, caso queiram limitar o tamanho da família, devem assim fazer empregando somente métodos naturais de contracepção.
Por outro lado, temos o homem que, nos últimos quatro anos, se tornou num rock star da política mundial: o Papa Francisco, jesuíta de 80 anos, vestindo uma batina branca, surgido das sombras para se tornar um dos líderes mundiais mais autênticos, respeitados e impressionantes da nossa época.
“Eu gosto do papa”, disse uma muçulmana que conheci recentemente. Ela gosta dele, o ama; o mundo gosta dele. É dentro de sua própria Igreja que os inimigos mortais do ex-Jorge Bergoglio se espreitam.
São pessoas como o Cardeal Raymond Leo Burke, arquiconsevador americano que se pôs ao lado de Festing com respeito à distribuição de preservativos e que se tornou o ponto focal das esperanças dos fiéis que estão profundamente consternados com o que consideram um liberalismo impossível do Papa Francisco.
No ano passado, Francisco emitiu um documento chamado Amoris Laetitia, que deixou Burke e seus aliados cambaleando: a eles, parece que o documento compromete o pecado cardeal de deixar em aberto a questão sobre se um católico divorciado e recasado pode receber novamente a Comunhão.
O que Francisco parece dizer é: sejamos realistas; as pessoas se divorciam e se casam o tempo todo, inclusive os católicos. Nem todos os católicos divorciados e recasados são o diabo encarnado. Então, sim – eles (ou elas) podem muito bem ter condições de comungar. Vamos deixar essa decisão a eles, depois de uma conversa com um padre ou o bispo local?
Para você e para mim, trata-se simplesmente de uma pequena peça de senso comum eclesiástico, a emanar de um minúsculo Estado soberano de onde, há bastante tempo, não saem muitos exemplos de senso comum. Mas, para Burke e Festing, trata-se praticamente uma heresia.
Para eles, regras são regras e não podem simplesmente ser quebradas. Um Burke incandescente tentou distrair Francisco desafiando-o a definir exatamente o que ele quer dizer em Amoris Laetitia.
Até agora, Francisco fez duas coisas: ignorou Burke, o que, sem dúvida, irritou ainda mais o americano. A aproximação a Festing parecia um outro modo de conseguir atacar Francisco, mas não deu certo. Francisco interveio, e Festing se viu forçado a renunciar. O placar está 2 a 0 a favor da Argentina.
O Vaticano é, como todo analista católicos sabe, um viveiro de problemas, escândalos e situações espinhosas. Mas o que importa aqui – o que realmente importa – é que Francisco transformou a Igreja Católica de um modo verdadeiramente fundamental, e a transformou para sempre. É isso o que pessoas como Festing e Burke percebem, e é por isso que estão acabando sem nada para desafiá-lo. Porque o que Francisco fez é isto: substituiu o catolicismo vinculado a regras, tradicional, inflexível por aquilo que podemos chamar de um cristianismo instintivo.
Francisco não se incomoda tanto com os regulamentos; preocupa-se é com o tomar o caminho que ele crê que o homem/Deus que ele segue, Jesus Cristo, teria tomado. Divórcio, um segundo casamento, métodos contraceptivos – essas coisas não são o que mantém Francisco acordado à noite.
A presidência de Trump, a crise de refugiados e a guerra na Síria provavelmente são o que o mantém desperto. É por isso que o mundo gosta dele. E é por isso que ele é tão perigoso à antiga ordem da Igreja Católica. Pode muito bem haver mais terremotos por vir na Itália, e não de um tipo geológico apenas.
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A velha guarda da Igreja Católica enfrenta uma ameaça mortal. Chama-se Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU