05 Dezembro 2014
"Ao termos presente o contexto dos comentários passados a respeito das mulheres, o discurso do papa no colóquio começa a parecer menos surpreendente. Começa a parecer menos como uma concessão aos conservadores do que uma afirmação sincera dos papéis patriarcais de gênero", escreve Kelly Stewart, mestre em Arte Religiosa pela Yale Divinity School, onde estudou teoria feminista e queer, e ética sexual e reprodutiva católica, em artigo publicado pela National Catholic Reporter, 03-12-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O Vaticano organizou um colóquio inter-religioso – intitulado “Humanum: A Complementaridade do Homem e da Mulher” – no mês passado que atraiu uma considerável atenção da imprensa, em grande parte porque ele apresentou uma série de destacados conservadores religiosos: Rick Warren, Tony Perkins, Russell Moore, N.T. Wright, Dom Charles Chaput, o rabino Jonathan Sacks, entre outros.
As apresentações do colóquio, a sua série de vídeos [1] e seu documento final – intitulado “Uma Nova Afirmação sobre o Matrimônio” [2] – celebram o casamento procriativo e heterossexual como o fundamento da Igreja e da sociedade, uma “base a partir da qual [se constrói] uma família e daí uma comunidade”. Eles advertem, também, que o matrimônio está sendo atacado.
Em seu discurso de abertura no evento, o Papa Francisco disse:
“Sabemos que o matrimônio e a família estão em crise. Hoje vivemos numa cultura do temporário, na qual cada vez mais pessoas estão simplesmente desistindo do casamento como um compromisso público. Esta revolução nos costumes e na moral tem levantado a bandeira da liberdade, mas, na verdade, ela vem trazendo uma devastação espiritual e material a inúmeros seres humanos, especialmente os mais pobres e vulneráveis”.
Os críticos liberais centraram-se naquilo que o envolvimento do Papa Francisco no colóquio significa para as pessoas LGBTs e a qualidade do casamento. Perguntaram-se como deveríamos compreender a contradição aparente entre a recente defesa do pontífice sobre a complementaridade e a sua famosa indagação: “Quem sou eu para julgar?”. Em muitos casos, eles concluíram que Francisco está afirmando o ensinamento oficial sobre gênero, matrimônio e a família para apaziguar os conservadores.
Por exemplo, Nick Squires, do jornal The Telegraph, escreve: “O Papa Francisco pareceu se curvar à pressão dos católicos conservadores nesta segunda-feira, quando proferiu uma afirmação forte sobre a importância da família tradicional”.
Adam Withnall, do jornal The Independent, interpreta as declarações do papa como uma “mudança no sentido de conciliar os conservadores na Igreja com um papa que certa vez se perguntou ‘quem sou eu para julgar os homossexuais’ e quem Elton John descreveu como ‘o meu herói’”.
E Jay Michaelson, do jornal Daily Beast, teve o cuidado de enfatizar que até mesmo os comentários mais positivos do Papa Francisco sobre os homossexuais marcaram somente mudanças no tom, não mudanças na doutrina. Ele também, no entanto, parece interpretar as palavras do papa, e o próprio colóquio, como uma prova de que o papa deve responder “às forças conservadoras poderosas de dentro da Igreja Católica e além dela”.
Francis DeBernardo, diretor executivo do New Ways Ministry, discorda. No post publicado em seu blog Bondings 2.0, intitulado “Pope’s Comments on Marriage Raise Questions About His LGBT Outreach”, DeBernardo escreve: “Acho que o que estamos vendo é o que o Papa Francisco vem fazendo há muito tempo: defender a doutrina tradicional, mas evitando enfurecer aqueles que se opõem a ela”.
Há um outro sentido daquilo que Francisco está fazendo. Embora as declarações polêmicas de Francisco no colóquio são mais aguçadas do que a sua retórica usual a respeito dos gays, elas são típicas de sua retórica a respeito das mulheres. Consideremos alguns poucos exemplos:
• Em julho de 2013, durante a sua famosa entrevista em que disse “Quem sou eu para julgar?”, Francisco falou que “as portas estão fechadas” para a ordenação de mulheres.
• Em junho de 2014, Francisco desviou-se de uma pergunta sobre a misoginia na Igreja, brincando que “a mulher foi feita de uma costela”. Quando pressionado sobre a questão da exclusão feminina na liderança institucional, acrescentou: “Os padres, geralmente, acabam sob o domínio de suas trabalhadoras domésticas”.
• Em outubro de 2014, Francisco realizou o primeiro encontro do Sínodo dos Bispos sobre o matrimônio e a família. O evento reiterou a oposição oficial relativo ao controle de natalidade, celebrou o testemunho dos casais que praticam o planejamento familiar natural e encerrou com a beatificação do Papa Paulo VI.
• E, no mês passado, Francisco discursou no colóquio Humanum, onde falou apaixonadamente do “declínio da cultura do casamento”, da “crise na família”, da “beleza da complementaridade do homem e da mulher no casamento” e do “direito dos filhos de crescerem numa família com um pai e uma mãe”.
Ao termos presente o contexto dos comentários passados a respeito das mulheres, o discurso do papa no colóquio começa a parecer menos surpreendente. Começa a parecer menos como uma concessão aos conservadores do que uma afirmação sincera dos papéis patriarcais de gênero.
Então, por que outros críticos do colóquio não ressaltaram a história da retórica conservadora do papa a respeito das mulheres? O texto intitulado “Complementarity of the Sexes: A Trap”, publicado no blog de Maureen Fiedler, é uma das poucas respostas que tratam do sexismo como uma preocupação primária. Outros mencionaram o sexismo, sim, porém mencionaram-no de passagem e trataram-no como secundário à homofobia.
Este fato limitou as análises, pois o sexismo não é um subconjunto ou um ramo da homofobia. O complementarismo não é apenas um álibi para o preconceito contra as pessoas gays. No ensinamento oficial, as crenças no status de subordinação das mulheres, as capacidades naturais para o martírio e as responsabilidades procriativas são lógica e historicamente anteriores às crenças a respeito da homossexualidade ou da igualdade matrimonial.
Isso não quer dizer que as questões sobre as mulheres são, de alguma forma, “mais importantes” do que as questões sobre as pessoas LGBTs na Igreja. Que dizer que se nós, realmente, queremos compreender as atitudes do papa quanto ao casamento, à família, ao gênero, à sexualidade e à autoridade, a sua história de sexismo fornece um ponto de partida mais útil para o debate do que a sua história de declarações relativamente pastorais sobre os católicos gays.
Se tomarmos o sexismo como um ponto de partida para se compreender o colóquio, o papado atual ou a teologia católica ou, de forma mais geral, a eclesiologia, o quão, afinal, as nossas análises teriam sido diferentes? O que tais mudanças significariam para a forma como focamos o nosso trabalho, e onde colocamos as nossas esperanças, para a justiça na Igreja?
Notas:
[1] Vídeos disponíveis aqui.
[2] Texto disponível em inglês aqui.
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A retórica do Papa a respeito das mulheres é, infelizmente, consistente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU